divórcio ou casamento eterno?...

2010-10-22

Mineiros do Chile (2): Viagem ao centro da Terra

Todos vivemos com emoção a libertação dos 33 mineiros soterrados a 622 metros de profundidade na mina de Atacama no Chile. Talvez os tenhamos recordado intermitentemente durante os 69 dias que estiveram soterrados. Mas poucos devem ter perdido as imagens das chegadas em directo. Neste dia e meio todos fomos chilenos. Nestas poucas horas todos formamos uma única humanidade, todos os corações batiam em uníssono para tudo corresse bem, todos tomamos consciência de que somos uma só família e sentimo-nos irmãos dos que estavam no fundo da mina e dos que cá fora os esperavam. Aconteceu a humanidade.
Todos nos comovemos. Muitos de nós chorámos. De emoção. De alegria. De alívio.
Este acontecimento único na história da humanidade (alguns recordaram um outro: a recuperação dos astronautas da Apolo XIII) deixou-nos muitas lições e todas elas, numa coincidência tão rara, positivas. Não sei estabelecer uma hierarquia, vou apenas deixar-me conduzir pelo teclado do computador.
Ressalta logo a coragem dos mineiros que suportaram mais de quinze dias sem saber nada nem ver nada e souberam organizar-se e manter a esperança. Depois, os outros cinquenta dias, de enorme tensão psicológica, agudizada pela esperança de que seriam retirados até ao Natal e o receio de que todos estes esforços pudessem falhar. Trinta e três pessoas, com os temperamentos diversificados, capacidades psicológicas muito diferentes, obrigados a partilhar um espaço fechado, saturado de humidade e com temperaturas elevadas deve ser uma experiência inimaginável. Bastaria um deles “perder a cabeça” para que, por efeito dominó o descalabro tomasse conta dos restantes. “Eu vi Deus e o diabo. E estendi a mão a Deus!” É uma frase de que não alcançamos toda a profundidade, mas que diz bem o que terá sido aquele ambiente. A presença de um líder forte deve ter tido aqui um papel fundamental.
Depois, a equipa de psicólogos de que pudemos apreciar nos seus frutos: a calma com que foi possível escalonar as saídas sem que o nosso “salve-se quem puder” irrompesse do fundo dos recantos escondidos onde controlamos tão dificilmente o pânico e o instinto de sobrevivência; a calma dos familiares que os recebiam com gestos de carinho tão bem controlados. Tenho de destacar esta viagem até ao centro da alma de toda aquela gente, que soube manter uma dignidade e força psicológica que nos leva a pensar nas nossas reservas interiores que ultrapassam em muito a mediocridade diária de uma sociedade egoísta. Este é o mistério da pessoa, o nosso mistério como pessoas, a certeza de que poderemos sempre ir um pouco mais além do que pensamos.
Embora as técnicas de perfuração estejam hoje muito aperfeiçoadas, a exigência, o rigor, o risco de falhar devem ter sido uma fonte angustiante a pressionar a equipa internacional de especialistas. Também eles tiveram de ter “nervos de aço” para não se deixarem paralisar pelo receio de falhar e serem capazes de manter o sangue frio para tomar, no mais curto espaço de tempo, decisões complexas das quais dependiam a vida daqueles homens. Falhar a perfuração de um poço de petróleo acarreta perda de dinheiro, mas pode retomar-se mais ao lado e continuar com novas tentativas. Mas ali não havia margem para erros. E foram precisas 13 perfurações até os encntrarem. Não se tratava só da perfuração, mas de criar condições para que os mineiros pudessem sair em segurança máxima. Por isso todos olhávamos com apreensão para aquela caranguejola, sempre que ela aparecia riscada e aparentemente tão frágil, mesmo sabendo que se tratava de um hino à ciência e á sabedoria da humanidade. Ah! E gostaria de recordar também homens muito esquecidos mas que também foram heróis: os bombeiros que desceram lá baixo para coordenar as subidas!
Este desastre serviu para unir dois presidentes, o do Chile e da Bolívia, países que viviam relações políticas e militares bastante tensas entre si. Todos fazemos votos para que a sua presença e união ali os possa ajudar a resolver os seus problemas.
O acompanhamento planetário deste acontecimento foi também certamente um estímulo à esperança para uma humanidade que se debate com uma crise grave. Se podemos salvar mineiros a 622 metros de profundidade, se podemos entrar nas suas almas e dar-lhes a calma e a serenidade que esmaga o desespero e o desânimo, o que não seremos anos capazes de fazer se nos unirmos? Este acontecimento deixou-nos mais humanos. E mais humanos significa mais construtores da história, mais capazes de superar as dificuldades, mais capazes de construir a paz, esse desejo universal. O que precisamos é de ter vontade para tal.
João Paulo II proclamava que “a Igreja tem também confiança no homem, embora conhecendo a perversão de que ele é capaz, porque sabe bem que, não obstante a herança de pecado e o próprio pecado que cada um pode cometer, há na pessoa humana qualidades e energias suficientes, há nela «bondade» fundamental, porque é imagem do Criador, colocada sob o influxo redentor de Cristo, que «se uniu de certo modo a cada homem», e porque a acção eficaz do Espírito Santo «enche o mundo» (SRS 47). Também a humanidade deve ter confiança na pessoa, em cada pessoa, na sua bondade e na sua capacidade de coisas belas e generosas.
Estes corajosos trinta e três homens conseguiram unir conhecimentos interdisciplinares, esforços múltiplos, sinergias eficazes. Por que não conseguimos fazer estes mesmos esforços para salvar a vida de milhares de pessoas que todos os dias morrem de causas cuja solução não exige nem uma tecnologia tão sofisticada nem peritos tão especializados?

2010-10-16

Mineiros do Chile (1)

A propósito desta acção verdadeiramente espectacular a que pudemos assistir em directo escrevi dois artigos - um, mais genérico, para a revista Além-Mar e outro, mais específico, para o semanário Correio de Coimbra - que gostaria de partilhar com os amigos que aqui me visitam.
Hoje reproduzo o que irá sair para o mês que vem na revista missionária:   

“DEMASIADO GRANDE PARA FALIR”
Neste momento em que os mineiros chilenos acabam de ser resgatados, para lá do sentimento de alegria e emoção, da admiração pela coragem dos mineiros e da capacidade da nossa inteligência, para lá de muitos outros factores que alimentam a nossa esperança na capacidade do género humano, vislumbrámos como a globalização pode ser realmente um bem para a humanidade. Neste momento todos nos sentimos chilenos e todos, portanto, nos sentimos irmãos de uma única e mesma família, em que a fraternidade esteve realmente presente: todos, cada um no seu âmbito, puxámos para o mesmo lado. E é esta conjugação de esforços que tem faltado. Mas este acontecimento veio mostrar que se tem faltado não é porque não sejamos capazes de tal fraternidade, mas simplesmente porque não temos “vontade política” (de polis, “cidade”, portanto cívica) para a pôr em prática e porque não temos a “vontade moral” suficientemente forte para nos mantermos fiéis a um ideal, a uma conversão dos nossos estilos de vida, para superar o desespero de quem não vê os resultados “logo ao virar da esquina”, para nos empurrar, com coragem e determinação, para a frente, mesmo nos momentos em que o desânimo e a angústia nos fazem perder ou ignorar a esperança.
A humanidade percebeu, neste acontecimento, visto em directo, que tem capacidades enormes para resolver problemas tão complexas como este ou como ida do homem à Lua. O que possivelmente não percebeu ainda é que essa sua capacidade pode também servir para salvar milhões de pessoas que morrem de fome e de doenças perfeitamente curáveis. E enquanto não o perceber e não o puser em prática, somos dominados pelo lado negro da globalização.
Da globalização económica todos conhecemos os seus efeitos perversos. Mas também não chega uma globalização “política”, que assenta nas resoluções da ONU ou doutros organismos internacionais, mas que depois, muitas vezes, não passam do papel: “A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade” (CinV 19). Do que efectivamente precisamos é da globalização da solidariedade e da fraternidade: esta vai progredindo, mas tão lentamente que quase passa despercebida.
Bento XVI congratulou-se, no Parlamento inglês, com o compromisso do Reino Unido de “destinar, até ao ano de 2013, 0,7% da renda nacional a favor das ajudas ao desenvolvimento”. Este compromisso, que foi uma proposta da ONU, já “tem barbas” e pouquíssimos cumpriram. O Papa reconhece que há “sinais positivos de um aumento da solidariedade para com os mais pobres”, mas lamenta que tão pouco se faça: “Para traduzir esta solidariedade em obra eficaz são necessárias ideias novas, que melhorem as condições de vida em campos importantes como a produção dos alimentos, a purificação da água, a criação de postos de trabalho, a formação, a ajuda às famílias, especialmente dos migrantes, e os serviços médicos básicos. Quando a vida humana está em jogo, o tempo torna-se sempre breve”. E fez a acusação que todos fazemos: “O mundo tem sido testemunha dos vastos recursos que os Governos são capazes de reunir para salvar instituições financeiras consideradas «demasiado grandes para falir». Contudo, o desenvolvimento integral dos povos não é menos importante: trata-se de um empreendimento digno da atenção do mundo, verdadeiramente «demasiado grande para falir»”.
Este problema de escala é dramático: “o que é demasiado grande para não falir?”. A resposta só pode vir de critérios éticos, que assentem na centralidade da pessoa, de cada pessoa, do Norte ou do Sul, rica ou pobre. Com as pessoas, não pode haver problemas de escala, porque uma pessoa não vale mais que duas. Cada pessoa é única e irrepetível. As pessoas assassinadas nas Torres Gémeas de Nova Iorque não valem mais que as pessoas massacradas no Ruanda ou no Médio Oriente. Os números perdem sentido, têm de perder sentido, quando está em jogo a vida humana. E nós todos concordamos com isso. Este acontecimento do Chile veio prová-lo: se olhássemos só para os números, o que são 33 em tantos milhões de pessoas?
A pessoa, cada pessoa, não tem preço, “não é um número, não é um anel de uma cadeia, nem uma peça da engrenagem de um sistema” (ChL 37). Não pode ser contabilizada assim. Não! A pessoa está no centro, ou melhor, no vértice da pirâmide da hierarquização das prioridades.
Por isso, é a única que é “demasiado grande para falir”.

2010-10-08

CONSCIÊNCIA COMUNITÁRIA

Um amigo enviou-me a entrevista de Frei Ventura (FV) à SIC.
Foi uma lufada de ar fresco. Foi bom ouvir alguém que fala outra linguagem diferente dos comentadores que sistematicamente vão às televisões, que falam de tudo e tudo sabem, que falam do que pensam que sabem mas que nunca acertam, que não dão sugestões nem fazem propostas para uma sociedade mais justa e solidária, que não estimulam nem incentavam sedutoramente à mobilização de todos.
Era bom que mais profetas fossem chamados à televisão, em vez de tantos economistas, tantos opinion makers que já estamos fartos de ouvir, tantos políticos em que cada um olha para o seu (do partido) umbigo e não para o bem global do povo português. É bom que eles defendam os seus programas, mas os seus programas são sempre sectoriais e parecem muitas vezes sectários (no sentido etimológico, de seita). Mas são estes peritos, de todas as áreas, que são chamados continuamente, quase nunca deixando tempo para os profetas.
Gostei muito de o ouvir FV e, por isso, gostaria de deixar duas notas: uma sobre uma ideia que esteve sempre subjacente, mas que acho que não foi devidamente vincada e outra sobre uma “falha”.

1. É incontornável, sem cair em generalizações injustas, a crítica aos políticos, governantes e “de todos os quadrantes”. Mas acho que, sobretudo neste momento, é fundamental insistir também e até talvez mais na responsabilidade dos cidadãos. É correcto, mas também é muito libertador para a nossa consciência acusar os políticos. É correcto que os políticos devam ser responsabilizados e seriamente julgados pelo que fazem. Citou o exemplo da Irlanda e era bom que ele pegasse. Mas também seria bom tê-lo citado relativamente ao comportamento cívico de todos os cidadãos.
Acho, pessoalmente, que os maiores culpados somos nós, os cidadãos que não somos “cidadãos”, que, como FV disse, juntamos o fado ao messianismo, que achamos que são os outros que devem resolver os nossos problemas, que apontamos o dedo a todos menos a nós próprios, que temos também opinião sobre tudo mas não fazemos nada, que estamos preocupados primariamente com os nossos interesses pessoais, que tornámos a nossa sociedade fortemente corporativista, que defendemos, com unhas e dentes, os “privilégios adquiridos” da nossa tribo e que achamos que são as outras tribos que devem pagar a crise.
Claramente, como já o escrevi várias vezes, que temos falta de líderes e que este “inverno de líderes” é uma catástrofe a nível nacional e mundial. Mas eu gostaria de, com FV, recordar a frase do Kennedy: "Não perguntes o que faz o teu país por ti, mas o que fazes tu pelo teu país", que também cito muitas vezes. Mas já quanto à sua citação de Camões ("Que um fraco Rei faz fraca a forte gente" Os Lusíadas III,138,8), estou cada vez mais inclinado a inverter a ideia: “Que uma fraca gente faz um fraco Rei”.
Subscrevo por inteiro a sua proposta de despedir os políticos profissionais por profissionais (tecnicamente (inteligência) competentes, eticamente (vontade) irrepreensíveis e emocionalmente (coração) sensíveis aos outros, ao bem comum) políticos. Mas como se faz isso? Não sei como é. O que ssei é que os nossos actuais políticos saem da sociedade que todos nós alimentamos com os nossos estilos de vida, saem do meio de nós. Os nossos políticos não são piores que nós: são iguais a nós, ou, pelo menos, são iguais à média dos cidadãos portugueses, sobretudo do ponto de vista ético.
É por isso que eu digo se não começarmos por mudar a sociedade, e isso não está só nem principalmente na mão dos políticos, não vamos a lado nenhum. Porque, desculpem a violência, mas somos um país em que predominam os oportunistas, os medrosos e os cobardes. É a isto que chamo a “fraca gente” que só pode fazer sair do seu seio “um fraco Rei”.

2) Fez bem em lembrar o papel fundamental de tantos padres, religiosos e leigos que estão, quais samaritanos, junto dos carenciados de pão, de esperança, de sentidos de vida. Eles são o Deus invisível que passa na “brisa suave”(cf. 1Rs 19,11-12), são a ternura de Deus que ama de graça, junto desses esquecidos da nossa sociedade exclusógena, isto é, esquecidos por nós, por ti e por mim.
Infelizmente os que testemunham esta ternura do nosso Deus são uma minoria. E isto tem também de ser denunciado. A maior parte não passa de “oportunistas” que procuram comprar (não vivemos nós numa sociedade mercantilista!?) o Reino dos céus com idas à missa, uma esmolinha para os pobres ou um gesto de solidariedade aos soluços, isto é, não como estilo de vida mas ao ritmo das catástrofes. Mas que não o fazem nem para testemunhar a ternura misericordiosa de Deus que é Pai de todos e está em todos especialmente nos mais pobres (crentes) nem para se colocar aos serviços dos outros e com os outros (cidadãos).
Eu (como muitos) conheço gente na Igreja que fala assim,de modo diferente, mas raros são os que vivem coerentemente com o que dizem. Não julgo ninguém, apenas recordo que só entrarão no Reino dos céus “os que fizeram isto” (matar a fome, a sede, visitar na cadeia e no hospital, vestir os nus, dar saúde aos cegos e coxos e levar a Boa Nova – “Deus ama-te de graça” - a todos os desesperados da vida).

Termino com duas perguntas.

1) Será que estamos condenados a não passar de um “Resto”, de que falavam os Profetas? Mas ai de nós, os outros, para quem há palavras muito duras e solenes: “Ouvi isto, vós que esmagais o pobre e fazeis perecer os desvalidos da terra, dizendo: ‘quando passará a Lua Nova para vendermos o nosso trigo e o sábado para abrirmos os nossos celeiros, diminuindo o peso (efá) e aumentando o preço (siclo) e falseando a balança para defraudar? Compraremos os necessitados por dinheiro e o pobre por um par der sandálias e venderemos até as alimpas do nosso trigo’. O Senhor jurou sobre a soberba de Jacob: não esquecerei jamais nenhuma das suas obras” (Am 8,4-7).

2) Será que não nos atormenta aquela pergunta de Jesus: “Mas, quando o Filho do Homem voltar, encontrará fé sobre a terra? (Lc 18,8)? Aqui fica uma contextualização da frase para quem ache que isto é uma brincadeira de Jesus. A frase é escrita por Lucas para a sua comunidade que viveu várias décadas depois da morte de Jesus: “Lucas anima os crentes a permanecer fiéis ao Senhor mesmo quando a fé vai perdendo importância na sociedade. O atraso da vinda do Senhor e a hostilidade do mundo que rodeava a comunidade lucana tinham apagado o entusiasmo da fé. A pergunta transforma-se assim numa exortação a preservar na fé” (Comentário La Casa de la Biblia, p.239).

2010-10-05

A República constrói-se

Não sou um grande fã destas ou doutras comemorações, sobretudo se se ficam por manifestações epifenoménicas, quantas vezes sem qualquer repercussão no crescimento de uma cidadania responsável.

A República aparece num contexto histórico da evolução da humanidade, como outros regimes anteriores e certamente outros futuros. É uma mudança de paradigma, como outros houve antes e outros haverá depois. Muitos problemas surgem aos povos quando cristalizam ou se deixam mumificar numa dada organização social. A incapacidade de acompanhar o ritmo da História só traz dissabores, por vezes, bem dolorosos. O que vivemos hoje em Portugal (e não só) é um bom exemplo. Falta-nos criatividade para “explorar” ao máximo as potencialidades e temos demasiada inércia para nos deixarmos explorar pelas debilidades de um regime, que, e porque é humano, é sempre uma mistura de aspectos positivos e negativos. Esta ambiguidade não é boa nem má, faz parte intrínseca de tudo o que é construído pela humanidade e por cada pessoa em particular. Característica tão evidente que acaba por ofuscar a sua existência e nos leva tanto aos píncaros do orgulho legítimo como nos arrasta para o inferno do desânimo, da desistência e da inacção.
Vivemos na História e vivemos a História, uma História de que toda a humanidade é agente, muito mais visível nesta época de globalização. Isto para dizer que de nada valem as lamentações, os miserabilismos, os “cruzar de braços”, que apenas têm um efeito corrosivo sobre o compromisso empenhado, a única solução para construir a História.

Curiosamente as Leituras de domingo passado colocam muito estas questões, pelo menos aos cristãos e crentes em geral. Habacuc faz-se porta-voz de muitos crentes: “Até quando clamarei contra a violência e não me enviais a salvação? Porque me deixais ver a iniquidade e contemplar a injustiça?” (1,2-3). E lá continua com as lamúrias. É tão fácil delegar a “salvação” nos outros. É tão fácil ficar de braços cruzados à espera que os outros resolvam as dificuldades e os desafios do dia a dia. É tão fácil atirar as responsabilidades para cima dos outros. É tão fácil ignoramos não só as nossas responsabilidades mas também as nossas culpas neste estado de coisas.
É, por isso, e agora falo para os meus irmãos cristãos, que Deus está cada vez menos visível nesta sociedade. Porque somos nós, pessoal e comunitariamente, que lhe devemos dar visibilidade na luta contra as injustiças, no combate contra as violências, no exercício da solidariedade e do cuidado do outro, de todos os outros, especialmente os mais esquecidos. O mundo não fica melhor se eu apenas pedir a Deus que o faça melhor. O mundo fica melhor quando eu me assumo como o representante e o instrumento de Deus e luto por um mundo melhor. Aliás era o que nos dizia o Evangelho ao recordar que “somos inúteis servos (porque) fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10). Desta expressão violenta retiraria duas conclusõess:
- ninguém pode vangloriar-se de já ter feito o suficiente por muito que tenha feito; há sempre mais para fazer: o mundo e a História estão em construção e em construção contínua e interminável;
- este trabalho não pode ser feito para ser “remunerado”, não implica recompensa em termos de justiça, mas sim em termos de graça e de dom: na vida cristã tudo é graça, tudo é dom, e porque tudo recebemos de graça, tudo devemos dar e fazer de graça.

Isto também se aplica à sociedade civil porque todos somos (devemos ser) servidores públicos. E das duas uma: ou vivemos segundo a lógica do dom e da graça (o que não significa que cada um não deva ser remunerado segundo a justiça e a função que desempenha honestamente) ou nos arrastamos enlameados pela lógica da ambição ilícita, da corrupção ou do dinheiro que quero receber, justa ou injustamente, ao fim do mês, independente da minha dedicação, do meu empenho, da minha criatividade, do meu sentido de servir e cuidar dos outros. Também aqui temos muitos exemplos para perceber a escolha dos portugueses.

E termino com a segunda Leitura de domingo: “Deus não nos deu um espírito de timidez, mas de fortaleza, de caridade e de bom senso” (2Tim 1,7). Dar, deu; nós é que não o aceitámos. Porque se o tivéssemos aceitado, faríamos o que S. Paulo recomenda: “Portanto, não te envergonhes de dar testemunho de Nosso Senhor”.
Pois… Sem disso darmos conta, a nossa vida, exceptuando a ida à missa e outros rituais mais ou menos rotineiros, é um exercício de vergonha de testemunhar Jesus Cristo e os valores do Reino de Deus. Vergonha, bastantes vezes, na palavra, mas sobretudo nos nossos actos.
E por isso, Deus é tão esquecido por esta sociedade, que só vê uns cristãos, na sua maioria apenas preocupados com os seus problemas pessoais e internos da sua comunidade eclesial e uma hierarquia em cujas intervenções predominam não só proibições e condenações mas também uma certa demonização de um mundo que esperava não “profetas de desgraças” mas “agentes da misericórdia” de Deus, como tanto desejou João XXIII na abertura do Concílio.