divórcio ou casamento eterno?...

2012-12-26

Um Livro inesperado

Há dois aspectos do último post que gostaria de retomar: o problema dos crentes e dos não crentes perante as contradições da vida e a última frase de Bento XVI sobre Auschwitz.
Para o primeiro aspecto, iria servir-me de um pequeno livro da Bíblia: o Qohelet ou Eclesiastes.

É um livro inesperado na Bíblia. É um livro para adultos, adultos na vida e adultos na fé. Mesmo estes poderão ficar escandalizados com muitas das afirmações. Contudo, apesar de ter sido escrito em Jerusalém, no século III aC, na primeira fase da helenização da Palestina, revela-se extremamente actual pela sua postura e pelas interrogações que coloca.

O autor deve ter sido alguém abastado, pois tem uma visão idílica da vida do trabalhador: “Doce é o sono do trabalhador, quer tenha comido pouco ou muito” (5,11).

É um crítico radical de quase tudo na vida, que não se cala perante nenhum aspecto da realidade:
- o prazer que, para ele, se identifica com o poder (2,1-11) e com a riqueza (5,9-10);
- a mulher: “Considero que mais amargo que a morte é encontrar uma mulher que é uma armadilha, cujo coração é uma rede e as suas mãos são cadeias” (7,26);
- a sociedade que está organizada de modo injusto (5,7; 9,11.9,14-16; 10,5-7), sem liberdade de expressão (10,20), movida pela inveja (4,4) e na qual “o rei faz o que lhe apraz” (8,3-4);
- a ciência que chega a um beco sem saída (1,13);
- o poder, no qual reina a incompetência (nescidade, qualidade do que é néscio): “o insensato ocupa os mais altos postos e os homens de valor estão colocados nos postos inferiores” (10,6-7); aliás, a incompetência parece ser universal: “o que é torto não se pode endireitar” (1,15);
- o trabalho porque acaba por não ser para o homem pois o que realiza será herdado por um estranho (2,18-19; 4,8; 6,2);
- os filhos de quem diz que serão os seus herdeiros mas ele não sabe se serão sábios ou néscios (2,18-21).

É alguém que parece céptico sobre tudo, radicalmente céptico, até relativamente à Sabedoria tradicional, não só porque não consegue chegar a lado nenhum (“é loucura e nescidade”) mas também porque traz consigo muito sofrimento (“o que aumento o conhecimento, aumenta o sofrimento”) (1,12-18). Esta atitude é antes de mais uma atitude filosófica: a partir da dúvida metódica aborda todas as coisas. O seu método consiste em investigar tudo: “apliquei-me a estudar e a explorar, por meio da sabedoria, todas as coisas que se sucedem debaixo do céu. É uma tarefa ingrata… Vi tudo o que se faz debaixo do sol” (1,12-14; 2,11; 7,23, 8,9.17). Investiga tudo, mas conclui que nada conseguirá saber: “Ele (o homem) afadiga-se a investigar mas não encontra nada e, mesmo o sábio, se pretender conhecer, não poderá descobrir” (8,17). Parece haver um certo fatalismo, pois há um tempo para cada coisa (3,1-8; 8,6) e o homem não conhece o futuro (6,7; 10,14). Critica o excessivo optimismo da Sabedoria antiga através de várias contradições de que as afirmações sobre a vida são um caso típico. Por um lado, “odeia a vida” (2,17), “todos os seus dias são apenas dor” (2,23); os mais felizes são os que “nunca chegaram à existência e (= porque) não chegaram a ver o mal que se comete debaixo do sol” (4,3). Por outro, agarra-se à vida: “mais vale um cão vivo que um leão morto” (9,4).
De qualquer maneira este cepticismo parece atenuado pelo número de vezes que utiliza a palavra “alegria” (2,1.2.10.26; 2,26; 3,22; 5,19.20; 7,14; 8,15; 10,19; 11.8).

Parece ser um hedonista, pois afirma repetidamente que “Nada há de melhor para o homem do que comer e beber e gozar o bem-estar, fruto do seu trabalho” (2,24; 3,12s.22; 5,17; 6,12; 8,15; 9,7-9). Com este apelo repetido a aproveitar os momentos “bons” da vida até parece um dos temas fundamentais deste texto: “Que o tema fundamental de livro era a simhah, o desfrutar a vida, foi claramente reconhecido pelas autoridades religiosas judaicas, que justificaram assim o costume da leitura do Qohélet na sinagoga na festa dos Tabernáculos, a estação da alegria” (R. Gordis). Apesar de todos estes apelos a “comer e a beber”, o autor não faz disso uma norma de deboche, pois essas suas afirmações terminam geralmente por dizer “goza destes porque te foram dados por Deus”: “isto vem da mão de Deus” (2,24); “um dom de Deus” (3,13); “Só Deus dá ao homem bens e riqueza e a possibilidade de usufruir deles” (5,18) ou “Vai, come o teu pão com alegria e bebe com prazer o teu vinho, porque a Deus agradam as tuas obras” (9,7). Portanto não se trata tanto de um hedonista material ou epicúrio, mas mais de hedonista filosófico que goza com sabedoria os bens que Deus lhe deu.

Resumindo: a vida tem o lado bom e o lado mau, o positivo e o negativo, o prazer e o sofrimento (3,1-8):
Tudo tem um tempo e um momento, todas as coisas debaixo do sol:
tempo de nascer e tempo de morrer;
tempo de matar e tempo de curar;
tempo de destruir e tempo de construir;
tempo de chorar e tempo de rir;
tempo de se lamentar e tempo de dançar;
tempo de atirar pedras e tempo de juntar pedras;
tempo de abraçar e tempo de desprender-se;
tempo de procurar e tempo de prender;
tempo de guardar e tempo de atirar fora;
tempo de rasgar e tempo de coser;
tempo de calar e tempo de falar;
tempo de amar e tempo de odiar;
tempo de guerra e tempo de paz.
Mas o lado mau sobrepõe-se ao bom: “Que proveito tiramos destas fadigas?” (3,1-9). Talvez por isso ele recomende que não se viva sozinho: “É melhor dois que um só: tirarão melhor proveito do seu esforço” (4,9-12).
De qualquer modo, este poema é um grande desafio às pessoas de hoje que “não têm tempo para nada”. O marido não tempo para namorar a esposa e a esposa não tem tempo para namorar o marido. Os pais não têm tempo para dar aos filhos e os filhos não têm tempo para dar aos pais. As pessoas não têm tempo para respeitar a natureza nem tempo para celebrar a vida. As pessoas andam sempre a correr, empurradas pelos acontecimentos. É preciso abrandar para chegar mais longe (Devagar se vai ao longe). É preciso parar de vez em quando para apreciar e saborear tudo o que nos rodeia, dando tempo a cada coisa.

Pergunta fundamental
A pergunta fundamental está colocada logo ao abrir o livro – “Que proveito traz ao homem todo o esforço que faz?” (1,3) – e vai sendo repetida sucessivamente como um gong a lembrar qual esta é a questão fundamental (2,10; 2,22; 3,9; …).
E responde logo, ou melhor ainda antes de fazer a pergunta: “Ilusão das ilusões; tudo é ilusão!” (1,2). Esta é certamente a palavra mais repetida – 38 vezes – ao longo do livro. A tradução antiga era vaidade, a partir da tradução latina: “Vanitas vanitatum”. A palavra latina vanitas deu a nossa palavra vaidade. Mas facilmente se percebe que neste livro temos de ir ao significado etimológico (de vanus, vazio): aparência, o que é vazio, oco, que não tem nada dentro, que não é consistente; futilidade, ilusão.
Repare-se que a mesma afirmação – ilusão das ilusões tudo é ilusão – aparece a abrir o livro (1,2) e a fechá-lo (12,8). Trata-se, portanto, de uma inclusão muito utilizada na Bíblia e noutras línguas orientais, que significa que todo o texto incluído, enquadrado por esta afirmação, desenvolve e constitui a ideia central; neste caso, ilusão.
Para o autor, tudo é ilusão ou “correr atrás do vento” (1,17, …).
Mas esta conclusão quase absoluta – tudo acaba por ser ilusão – não o leva ao desespero, apesar do seu desabafo: “Desesperei em meu coração de todo o trabalho que suportei” (2,20). Nem nunca pôs o problema do suicídio, porque “ninguém é dono do seu sopro vital nem é capaz de o conservar. Ninguém tem poder sobre o dia da sua morte” (8,8). E até pergunta “por que hás-de querer morrer antes da tua hora?” (7,17).
Repare-se que o Qohélet “ainda” não admitia a vida do Além, era “ateu” como os ateus de hoje; daí a estranheza que este livro pode causar no leitor bíblico desprevenido. Para ele a morte é o fim definitivo: “todos saíram do pó e ao pó hão-de tornar” (3,20). É o destino de todos: “todos vão para o mesmo lugar” (3,20; 6,6). A morte iguala a todos: sábios e néscios (2,14) e até homens e animais (3,19).
A violência crítica de Qohélet resulta exactamente de, no seu tempo, não se admitir a vida no Além. Esta ideia associada à doutrina da retribuição colocava-o em maus lençóis. A doutrina da retribuição era um verdadeiro dogma, “um baluarte inexpugnável” (J. Vilchez) e afirmava que os bons sempre receberiam o prémio e os maus o castigo. Se assim é, o cumprimento da retribuição – prémio aos bons e castigo para os maus – devia acontecer nesta vida. Qohélet, coerente e radical, sabe perfeitamente que está a enfrentar a tradição sapiencial: “Sei, no entanto, que a felicidade é para os que temem a Deus… Não haverá felicidade para o mau” (8,12). Mas… efectivamente ele verificava que nesta vida acontecia o contrário: “Vi tudo isto no decurso da minha falaz existência; há um justo que morre apesar da tua existência e há um mau que continua a viver apesar da sua malícia” (7,15; 8,14; 9,2-6). Qohélet está entre a espada e a parede, mas não foge: afirma ao mesmo tempo a fé em Deus (que abordarei no próximo post) e a não discriminação entre justo e injusto, sábio e néscio, puro e impuro, religioso e não religioso (9,1-3). Qohélet ainda parece querer esboçar uma solução que passe pelo adiatamento no tempo: “a sentença contra o que pratica o mal não é executada imediatamente” (8,11). Job, que abordara o mesmo problema, fica-se pelo desfasamento temporal mas a nível individual: Job, que era justo, foi castigado, mas depois, no final do livro, é recompensado.

O leitor, ao chegar aqui, deve estar a dizer com os seus botões: Que post tão mal arrumado!”. Pelo menos foi o que eu senti na leitura final antes de o publicar. Ainda pensei em organizá-lo, mas tive uma ideia brilhante. Assim desarrumado como está é uma “boa” imagem (passe a imodéstia!) da desarrumação deste livro. Realmente a preguiça é muito criativa. No meu caso é falta de jeito, no Qohelet trata-se de uma forma literária que nada tem de ocidental, mas muito de semita: começa por enunciar a tese e só depois é que apresenta os argumentos nem sempre da maneira mais lógica.
Resumindo: estamos perante uma obra surpreendente, desconcertante e atrevida de um homem (sábio) honesto que procura afincadamente e com toda a honestidade a verdade e o sentido da vida a partir das suas próprias experiências e reflexões.

Vou terminar com duas citações sem comentários.
1) “Para muitos modernos agnósticos, Qohélet é a última ponte para a Bíblia; para muitos cristãos de hoje (é) a infame e querida porta traseira, através da qual podem deixar entrar na sua consciência sentimentos céptico-melancólicos que não poderiam entrar pela porta principal, em cujo rótulo se lê: prémio à virtude e fé no mais Além” (N. Lohfink);
2) “A descoberta surpreendente de que também na Sagrada Escritura se encontra um investigador e um céptico radical pode fazer que ele (o homem moderno) receba a palavra bíblica melhor que na pregação convencional. Desta maneira, Qohélet pode ter maior efeito no nosso tempo que uma doutrina tradicional, sem contradições, com os problemas já resolvidos” (A. Lauha).



2012-12-12


Ninguém pode viver sem fé, no sentido lato. Se não tiver fé no mecânico que me faz a revisão ao carro, como possa andar com ele? Se não tiver fé no homem do talho, como posso comer a carne que ele vende? Se repararmos bem, todos os gestos do dia a dia são exercícios de fé.
Quando passamos para a “virtude” da fé, para aquilo que os cristãos chamam fé – adesão plena à vontade de Deus – começamos por afirmar que a fé é um dom gratuito de Deus, mas também uma conquista, pois implica uma resposta e uma adesão plena. Hoje vou tentar, se conseguir, falar apenas do acto de fé, não do seu conteúdo que ficará para outra altura.
Se é dom por que não chega a todos? Ou chega e eles não reparam? Ou chega e eles estão à espera de outra coisa?
Se é conquista, por que há alguns que dizem sinceramente “como eu gostava de acreditar, mas não sou capaz. O que é preciso para acreditar?”. Mas que fé espera quem deseja a fé? Que fé vêem nos crentes os que querem ter fé? O que invejam neles? Se a fé é uma resposta, a quem podem responder aqueles que não têm fé? Se a fé exige uma resposta consciente a esse dom gratuito de Deus, quem mais dos que a desejam ardentemente e “não a têm” a deveriam ter? Seguramente que essas pessoas vivem este drama na angústia e no sofrimento. Desejam tanto ter fé, mas não têm? Porquê?
Deus, como o Pai do filho pródigo, espera. Deus espera por nós. Deus espera por todos. Deus ama a todos. Quer querer-nos a todos. “Com te hei-de abandonar, Efraim? Deixar-te-ei à mercê dos outros, Israel? Agita-se dentro de mim o meu coração, todas as minhas entranhas se inflamaram. Não desafogarei o ardor da minha ira, não me voltarei para aniquilar Efraim porque sou Deus e não um homem, sou o Santo no meio de ti e não um inimigo às tuas portas” (Os 11,8-9). Curiosa a observação de Deus: “Eu sou um Deus não um homem”. Deus toma atitudes que não compreendemos nem somos capazes de tomar. Mas “a Deus tudo é possível” (Mt 19,26). Mais: Deus recusa-se a abandonar o homem, mesmo quando já “não sabe” que mais fazer, pois conhece bem a nossa fragilidade: “Que hei-de fazer por ti, ó Efraim? Que hei-de fazer por ti, ó Judá? A vossa piedade é como nuvem matinal, como o orvalho que logo se dissipa” (Os 6,4).
Tem de haver alguma atitude da parte de quem crê e de quem quer crer. Que testemunho de fé dão os crentes? Que fé têm os que já “nascem com (a) fé”, na comunidade dos crentes? E como a testemunham? “Por isso, nesta génese do ateísmo, os crentes podem ter uma não pequena parte, na medida em que, pela negligência na educação da fé, pela apresentação falsa da doutrina e também pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que mais encobriram do que revelaram a autêntica face de Deus e da religião” (GS 19).
Sé é conquista, talvez o primeiro passo seja acreditar na vida. Depois aceitar as nossas limitações. Esforçar-se por amar os outros. Reconhecer-se como construtor de futuros. Talvez seja preciso “subir às árvores” (Lc 19,4) para ver melhor, como Zaqueu. Talvez este seja um caminho para “conquistar” a fé. Mas são muitos os caminhos da e para a fé.
De qualquer modo, a fé sempre será um mistério.
Não se trata de certezas absolutas. Quem sabe se existe aquilo em que acredito? A fé é um salto no desconhecido. É saltar sem saber se tem chão onde cair. Não se trata de não ter dúvidas. Ai de que quem nunca teve dúvidas, pois nesse caso bem fraca deve ser a sua fé? Sem dúvidas, nunca saberemos qual a força da nossa fé, qual a sua têmpera. Mas não faltam interrogações: toda a fé consciente é acompanhada de perguntas.
O que se poderá afirmar é mais descritivo do que elaborar uma definição. A fé é confiança absoluta em Deus, mas uma confiança continuamente testada. É abandono nas “mãos” de Deus. É, como consequência, aceitar o que Deus nos diz, o que fez por nós e o que nos pede. É ter dúvidas. É angustiar-se. É entusiasmar-se. É ficar perplexo com os silêncios do nosso Deus. É ter medo de ser abandonado: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. É sabermo-nos nos braços de Alguém que nos conduz a verdes prados e as fontes revigoradoras. É saber e não saber. É ter a certeza e ter a dúvida.
T. Mendonça conta esta história oriental:
“Um discípulo foi ter com o seu professor de meditação, cheio de tristeza, quase a desistir, e confessa-lhe: «A minha prática de meditação é um fracasso! Ou me distraio completamente, ou as pernas me doem, ou entrego-me ao sono.»
«Isso passará» - disse o mestre suavemente.
Uma semana depois, o mesmo estudante voltou à presença do mestre, mas agora eufórico:
«A minha prática de meditação tornou-se maravilhosa! Sinto-me tão vigilante e tão pacificado. É simplesmente extraordinário.»
O mestre respondeu-lhe com a mesma tranquilidade: «Isso também passará».”
São estes “altos e baixos”, o entusiasmo e o desespero, o êxtase e o silêncio, a confiança e a escuridão, que caracterizam a fé. Eu não a entendo, porque a fé é um mistério. E talvez seja mais escuro que radioso, como referia Teresa de Calcutá nas frases que apareceram a público e que tanto escandalizaram muitos crentes e alguns não crentes.
Dizia ela sobre Deus: “Quero amar a Deus naquilo que ele tira… Há tanta contradição dentro da minha alma. Um desejo tão profundo de Deus, tão profundo que se torna doloroso, um sofrimento permanente… E, contudo, não ser querida por Deus, sentir-se repelida, vazia, sem fé, sem amor, sem zelo. As almas não atraem. O Céu nada significa, parece-me um lugar vazio. O pensamento do Céu nada significa para mim e, contudo, esta ânsia torturante de Deus… Se alguma vez vier a ser santa, serei com certeza uma santa da escuridão”. Ou: “Todo o tempo a sorrir é o que dizem de mim as irmãs e as pessoas. Pensam que o meu interior está cheio de fé, confiança e amor… Se soubessem qua a minha aparência alegre não é senão um manto com o qual cubro vazio e miséria”.
A fé em Deus é um mistério tão grande como o mistério de Deus. Bento XVI disse, em Auschwitz: “Tomar a palavra neste lugar de horror, de acúmulo de crimes contra Deus e contra o homem sem igual na história, é quase impossível e é particularmente difícil e oprimente para um cristão, para um Papa que provém da Alemanha. Num lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silêncio aterrorizado um silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto? É nesta atitude de silêncio que nos inclinamos profundamente no nosso coração face à numerosa multidão de quantos sofreram e foram condenados à morte; todavia, este silêncio torna-se depois pedido em voz alta de perdão e de reconciliação, um grito ao Deus vivo para que jamais permita uma coisa semelhante.” (28.Maio.2006)
A última frase, que grita ao Deus vivo para não permitir nada semelhante, coloca-me várias interrogações. Foi Deus o culpado? Devia Deus ter evitado tal crime de lesa humanidade e, portanto, de lesa-divindade? O pedido é só para que aquele genocídio não se repita ou é para todos os outros que aconteceram ao longo de uma história humana? Não percebo bem as palavras do papa. Os homens e mulheres que decretaram, os que executaram, os que calaram aquele horror é que foram os culpados por esta degradação da humanidade. Não foi Deus.

Mas há ainda uma frase perturbadora: “Mas quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?” (Lc 18,8) O que significa este versículo? Há quem diga que está deslocado e que deveria ligar-se ao cap.17. Neste caso, continuaria a ideia, aí apresentada sob a forma apocalíptica, e significaria: serão os homens capazes de manter a fé, enquanto carregam a sua cruz, através da escuridão, até ao Calvário? Outros consideram que tratar-se-ia de uma exortação aos crentes para que se mantivessem fiéis ao Senhor, mesmo quando a fé for perdendo a sua importância no mundo que, pensavam os primeiros cristãos, iria acontecer no final dos tempos, que estaria para muito breve (“Esta geração não passará sem que tudo isto aconteça”: Mt 24,34 e paral.): “Nessa altura, muitos sucumbirão e hão-de trair-se e odiar-se uns aos outros. Surgirão muitos falsos profetas que hão-de enganar a muitos. E porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos; mas aquele que se mantiver firme até ao fim será salvo” (Mt 24,10-13); “Ninguém, de modo algum, vos engane” (2Tes 2,3). Talvez o atraso da segunda vinda e as perseguições a que estavam sujeitas as comunidades apostólicas tenham arrefecido o entusiasmo inicial da fé da comunidade de Lucas. Estavam, portanto, carenciadas destas palavras de ânimo!
Vendo bem, ambas as interpretações são, no fundo, a mesma: exortar os cristãos a preservar na fé.

Uma última observação. Há quem diga que é mais difícil acreditar do que não acreditar.
Isto lembra-me um pequeno episódio da minha vida. Um dos meus maiores amigos, que é ateu, dizia-me com ar sorridente: «Olha quando eu morrer, se der de caras com o S. Pedro digo-lhe logo: «Ó S. Pedro não me chateies porque eu não acreditava e supunha que tu não existias. Vai ali chatear o meu amigo porque esse é que acreditava”».
Mas também há quem diga que é mais difícil não acreditar: “A vida é uma luta que, por muito que nos esforcemos, está perdida à partida – desapareceremos no nada e os verdugos continuarão a dominar – e, no entanto, sustenta-nos a convicção de que não podemos abandonar o combate sem nos aniquilarmos a nós mesmos. Viver é lutar pela justiça, sabendo que a batalha está perdida à partida e que não podemos abandonar o combate. (…) Os que vivemos a ausência de Deus não temos ninguém a quem implorar nem ninguém que nos proteja. Não é que tenhamos querido abandonar a Deus; o que se passa é que, ao superar a visão do mundo que o tornava evidente, perdemo-lo pelo caminho, sem que ele nos tenha deitado a mão para facilitar o reencontro. Do seu silêncio inferimos que não existia.” (I. Sotelo)
Penso que ambas as atitudes têm o mesmo grau de dificuldade, se as pessoas forem honestas consigo próprias. Para o crente, dá muita força acreditar num Além de felicidade eterna, num Deus que o amo incondicionalmente. Mas também o não crente precisa de acreditar nalguma coisa para poder sobreviver, seja na pessoa, seja na sociedade sem classes, seja na evolução da história.
É que, no fundo, crentes e não crentes somos todos crentes em Alguém ou em alguma coisa. Ou melhor, como dizia alguém, “de alguma maneira, todos somos habitantes da dúvida e da fé”.

2012-12-03

Salmo 23


O salmo 29 marcara-me muito pela negatividade e arrastara nesse sentido o AT. É certo que continuava a maravilhar-me com histórias dos patriarcas, esse conjunto de histórias de que todas as crianças e adultos gostam.
Mas quando me encontrei com o Salmo 23, as minhas convicções vieram abaixo. Afinal não havia só medos no Deus do AT. Havia também bondade, amor e muita confiança.

1O Senhor é meu pastor: nada me falta.
2Leva-me a descansar em verdes prados,
conduz-me às fontes tranquilas
3e recupera as minhas forças;
guia-me por caminhos justos
como pede o seu título.
4Embora caminhe por vales tenebrosos,
nada temo: Tu vais comigo;
a tua vara e o teu cajado sossegam-me.
5Preparas para mim uma mesa
à vista dos meus inimigos.
Unges-me com perfume a cabeça,
a minha taça transborda.
6A tua bondade e amor escoltam-me
todos os dias da minha vida;
e habitarei na casa do Senhor
para todo o sempre.

A primeira sensação que tive veio reforçar a minha visão de Deus como Providência, um Deus em quem se poderia confiar absolutamente: “nada me falta” (v. 1); “nada temo: Tu vais comigo” (v. 4); “todos os dias da minha vida” (6); “por dias sem fim” (6). Esta proximidade de um Deus que eu/o salmista trata por Tu. Este belo e poético canto inspirava-me confiança, paz e calma. Tudo isso transmitido através de imagens muito bonitas, que recordavam alegrias e coisas agradáveis da minha meninice: prados verdejantes, fontes de água fresca e cristalina. Esta é a imagem que uma primeira leitura nos deixa. Ficamos, logo, presos a este salmo. Eu nunca fui pastor. No “meu tempo” havia poucos pastores adultos, pois era uma actividade própria da adolescência (se na altura havia adolescência!). Mas ouvira muitas histórias de pastores (do meu pai, por exemplo, que teve que enfrentar alguns lobos ou resgatar alguma cabra das fauces do lobo). Acompanhara alguns pastores e verificara o carinho com que as acompanhavam (embora não faltasse, quando necessário, uma pedrada ou uma cajadada para as reconduzir ao rebanho). Ouvira o pastor chamar cada uma delas pelo nome sem se enganar na destinatária. As voltas que davam para encontrar a cabra que se tresmalhara. Portanto, a imagem de pastor era para mim um imagem vivida de amor e carinho. E muito atractiva.
Mais tarde, num dos melhores grandes comentários que li, L.A. Schökel e C. Carniti, que vou aqui seguir de perto, repetem esta ideia classificando-o como um dos salmos mais atractivos do saltério. Contudo, esta atracção pode levar a dois perigos. Encadeados pela beleza-macro, corremos o risco de que nos escapem as belezas-micro que formam a urdidura deste salmo, ou de cairmos numa “prematura espiritualização” do seu realismo imaginativo. É que são tantas as imagens e tão ricas em tão pequeno “espaço” que podemos passar por elas sem atender à sua enorme diversidade e conteúdo.
Mesmo numa primeira leitura é fácil perceber que o salmo está dividido em duas partes: a primeira apresenta Deus com pastor (1-4); a segunda, já não de modo tão evidente, apresenta Deus como anfitrião (5-6).

Deus como Pastor
A imagem do pastor, muito comum na Bíblia e em escritos doutras religiões, é aqui desenhada com realismo e concisão.
O verde da erva onde nos deitamos para descansar, as fontes frescas e retemperadoras das forças, os vales sombrios são pinceladas precisas que nos permitem reconstruir mentalmente uma cena. No meio do deserto verdeja um oásis com a sua fonte cristalina. As ovelhas ou cabras descansam deitadas na relva, após terem bebido água e retemperado as forças. Depois põem-se a caminho. O pastor, fazendo honra ao seu título, guia o rebanho por caminhos seguros, que ele tão bem conhece, evitando que as ovelhas se tresmalhem. Caminhando por um vale, cai a escuridão. Os animais, incapazes de ver o pastor, obedecem aos sinais do som e do tacto: uma palavra oportuna incita os que se atrasam, um ligeiro toque com a vara corrige os que se desviam e um golpe ritmado sobre as pedras certifica-os de uma presença conhecida e tranquilizadora.
O primeiro verso diz-nos que os versículos seguintes devem ser lidos como imagem. Não se trata de ovelhas ou cabras, mas sim de uma imagem. Há aqui dois planos de significado que se fundem numa aresta comum, sobre o qual avança o poema. Do alto desta aresta podemos ver simultaneamente as duas vertentes. Embora a dimensão espiritual possa nalguns momentos adquirir uma importância especial (“Tu estás comigo!”), há que notar o sentido também pastoril do texto, conservando o seu realismo imaginativo, que se vai manifestando através de uma série de símbolos arquetípicos, conjugados na imagem universal do pastoreio:
- os verdes prados com a calma que inspira esse verde que todos recordamos da infância: rebolar-se na erva verde é uma imagem universal de segurança e acolhimento;
- a água que mata a sede depois de uma caminhada mas também que retempera as forças: uma experiência quase única é “conhecer a água pela sede”;
- a caminhada: símbolo de toda a pessoa enquanto ser limitado: “o caminho faz-se caminhando”;
- a escuridão com os seus medos que, pelo menos na infância, quase todos vivemos; na escuridão procura-se, deseja-se e sente-se com mais força uma presença amiga.
De repente, o salmista deixa a terceira pessoa, surgindo um Tu (segunda pessoa): nele reconhecemos o bom pastor que dá o título a este salmo. Foi a escuridão que fez interiorizar a relação pessoal ao deixar-nos sós.
O verde da erva, a água da fonte, o caminho seguro, a orientação na escuridão são coisas simples e ricas, cujo potencial simbólico não se esgota numa primeira leitura.

Deus como Anfitrião
Para perceber o contexto deve recordar-se a importância da hospitalidade sobretudo numa cultura nómada. Fora do acampamento, estende-se o deserto ou a estepe devoradora das pessoas. Ser expulso do acampamento equivale a uma condenação à morte, a menos que seja acolhido por outro clã qualquer. Suponhamos que quem fala no salmo é um fugitivo perseguido pelos seus inimigos. Apelando à hospitalidade, é acolhido na tenda do chefe, que lhe oferece de comer e de beber e unge-lhe a cabeça. Os inimigos, ao verem-no a comer e a beber, percebem que está sobre a protecção de aluém. Como atacar seria uma violação grave do direito de hospitalidade, os inimigos afastam-se. O anfitrião, no fim da refeição, oferece-lhe uma escolta de dois acompanhantes que o escoltarão até ao seu destino.
O plano espiritual rapidamente se sobrepõe aos elementos metafóricos, quando se sabe que os dois acompanhantes são “a bondade e o amor” e o seu destino é “a casa do Senhor”.
As imagens da hospitalidade são familiares para a nossa cultura ocidental, excepto a de “ungir com aromas. Em parte porque procuramos eliminar odores como os desodorizantes, em parte porque camuflámos a função do azeite sob a forma de pomadas e unguentos. Por isso é importante recordar que aromas e perfumes despertam um ambiente de festa, que as pomadas defendem a pele das intempéries agressivas, que os unguentos fortalecem os músculos. Escavando sob a técnica, compreendemos o acerto de não esquecer a unção no banquete”.
No último verso, Deus passa para primeiro plano.


Conclusão
“Todo o poema está em movimento até ao verso conclusivo. Isto sucede de um modo curioso: duas vezes o poeta interrompe o descanso com o caminho, não o contrário. Dito por outras palavras: o repouso precede o caminho: o rebanho deita-se, bebe… e retoma a marcha até mesmo na escuridão; o refugiado come e bebe e retoma um caminho, escoltado pela bondade e pelo amor, até chegar à casa do Senhor. Um detalhe parece perturbar o repouso final: se a casa do senhor é a morada duradoura, “para todo o sempre”, a escolta há-de acompanhá-lo “todos os dias da minha vida”. Toda a vida em caminho ou numa morada final no Templo? O poema termina com uma tensão não resolvida, como se uma e outra vez se voltasse a começar, como se o salmo se tivesse de repetir durante toda a vida. Os dois advérbios finais relativizam os símbolos, obrigando-os a coexistir: caminho e morada, rebanho e hóspede, toda a vida e para todo o sempre”.