divórcio ou casamento eterno?...

2011-08-20

Bento XVI e as Jornadas Mundiais da Juventude

NOTA PRÉVIA: Não sei o que se passa com os meus posts ultimamente que aparecem com frases com letra mais pequena, o fundo vai variando, etc. Mas, como não sei resolver o assunto, aqui vai como sair. O essencial é o conteúdo. Obrigadinho e desculpem pelo mau jeito!


A visita do Papa a qualquer ponto do mundo é sempre acompanhada da mesma “cassete”: manifestações contra os gastos que disfarçam a incapacidade congénita de aceitar os que pensam diferente. É bem triste que estes grupos não tenham mais nada para propor perante a mudança de paradigma por que passa a história contemporânea: algo de diferente, de criativo, de inovador, de subversivo desta ordem injusta, da qual certamente o Papa não será o verdadeiro modelo. Gente nova e idosa, mas tão velha de ideias e de ideais para a construção de uma sociedade mais humano, mais fraterna, mais solidária, que pratique a tolerância, que aposte no diálogo (não foi o papa impedido de falar numa universidade italiana; não é a universidade – universitas – o espaço privilegiado para o confronto de ideias, de conceitos, de propostas de futuro?). Assim se percebe que não tendo nada de novo a não ser a habitual cassete, só tenham para propor condenações e anátemas, tentação a que a Igreja hierárquica também tem dificuldade em resistir, esquecendo que a misericórdia de Deus não é apenas uma bela doutrina, mas uma realidade, que se fosse praticada séria e continuamente, decerto seduziria muito mais gente do que condenações.

Quanto à JMJ, o papa deu algumas respostas interessantes aos jornalistas no avião.
Classificou-as "como um sinal, uma cascata de luz (que) dão visibilidade à fé, visibilidade à presença de Deus no mundo e, assim, dão a coragem para ser crentes”. Reconheceu uma realidade bem real que a própria Igreja não tem discutido com a devida solicitude e urgência: “Com frequência, os crentes sentem-se isolados neste mundo, quase perdidos”. Alguém sabe porquê? O que se tem feito para responder a esta situação de diáspora angustiante pelo menos para pequenos grupos que tentam comprometer-se segundo o Evangelho de Jesus de Nazaré? Por isso, o papa vê uma resposta nestas Jornadas: “Aqui, vêem que não estão sozinhos, que existe uma grande rede de fé, uma grande comunidade de crentes no mundo, que é belíssimo viver nesta amizade universal e, dessa maneira, nascem amizades que superam as fronteiras das diferentes culturas, dos diversos países. O nascimento de uma rede universal de amizade que une o mundo com Deus é uma importante realidade para o futuro da humanidade, para a vida da humanidade de hoje”.
Mas ele próprio bem sabe isto não basta, até porque não estamos a assistir ao nascimento de "uma rede universal de amizade", como ele próprio reconheceu na última encíclica: "A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos" (CinV 18). Foi, por isso certamente, que, quando lhe perguntam que frutos espera, deu a resposta clássica que também é verdadeira: "A sementeira de Deus sempre é silenciosa, não aparece imediatamente nas estatísticas”. E explicitou melhor: “A semente que o Senhor semeia com a JMJ é como a semente de que o Evangelho fala: uma parte cai no caminho e perde-se; uma parte cai na pedra e perde-se; uma parte cai nos espinhos e perde-se; mas uma parte cai em terra boa e dá muito fruto. É precisamente isso o que acontece com a sementeira: muito se perde e isso é humano”. Para concluir: “Certamente que muito se perde: não podemos dizer que, a partir de amanhã, recomeça um grande crescimento da Igreja. Deus não age assim. Cresce em silêncio. Com outras palavras do Senhor, a semente de mostarda é pequena, mas cresce e converte-se numa grande árvore. Para muitas pessoas, será o começo de uma amizade com Deus e com os outros, de uma universalidade de pensamento, de uma responsabilidade comum que realmente mostra que estes dias dão fruto”.
Mas também sabe que não são as grandes multidões que dão a medida da fé da Igreja: nem pela quantidade exterior nem pela qualidade interior. O importante foi há muito definido por Paulo VI: “A finalidade da evangelização, portanto, é precisamente esta mudança interior; e se fosse necessário traduzir isso em breves termos, o mais exacto seria dizer que a Igreja evangeliza quando, unicamente firmada na potência divina da mensagem que proclama, procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e colectiva dos homens, a actividade em que eles se aplicam e a vida e o meio concreto que lhes são próprios. Estratos da humanidade que se transformam: para a Igreja não se trata tanto de pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou populações maiores em dimensões de massa, mas de chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação. Poder-se-ia exprimir tudo isto dizendo: importa evangelizar, não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade e isto até às suas raízes, a civilização e as culturas do homem, no sentido pleno e amplo que estes termos têm na Constituição Gaudium et Spes, a partir sempre da pessoa e fazendo continuamente apelo para as relações das pessoas entre si e com Deus.” (Evangelii Nuntiandi, 18-20; o itálico é meu).

Deixo aqui algumas passagens do discurso aos jovens.
“Há palavras que servem apenas para entreter e passam como o vento; outras instruem, sob alguns aspectos, a mente. As palavras de Jesus, pelo contrário, têm de chegar ao coração, radicar-se nele e modelar a vida inteira. Sem isso, ficam estéreis e tornam-se efémeras; não nos aproximam dele. E, deste modo, Cristo continua distante, como uma voz entre muitas outras que nos rodeiam e às quais estamos habituados. Queridos jovens, escutai verdadeiramente as palavras do Senhor, para que sejam em vós «espírito e vida» (Jo 6, 63), raízes que alimentam o vosso ser, linhas de conduta que nos assemelham à pessoa de Cristo, sendo pobres de espírito, famintos de justiça, misericordiosos, puros de coração, amantes da paz.
Aproveitai estes dias para conhecer melhor a Cristo e inteirar-vos de que, enraizados nele, o vosso entusiasmo e alegria, os vossos anseios de crescer, de chegar ao mais alto, ou seja, a Deus, têm futuro sempre assegurado, porque a vida em plenitude já habita dentro do vosso ser. Fazei-a crescer com a graça divina, generosamente e sem mediocridade, propondo-vos seriamente a meta da santidade. Perante as nossas fraquezas, que às vezes nos oprimem, contamos também com a misericórdia do Senhor, sempre disposto a dar-nos de novo a mão e que nos oferece o perdão no sacramento da Penitência. (Assim) mostrareis uma alternativa válida a tantos que viram a sua vida desmoronar-se, porque os alicerces da sua existência eram inconsistentes: a tantos que se contentam com seguir as correntes da moda, se refugiam no interesse imediato, esquecendo a justiça verdadeira ou se refugiam em opiniões pessoais em vez de procurar a verdade sem adjectivos. Há muitos que, julgando-se deuses, pensam que não têm necessidade de outras raízes nem de outros alicerces para além de si mesmo. Desejariam decidir, por si sós, o que é verdade ou não, o que é bom ou mau, justo ou injusto; decidir quem é digno de viver ou pode ser sacrificado nas aras de outras preferências; em cada momento dar um passo à sorte, sem rumo fixo, deixando-se levar pelo impulso de cada instante. Estas tentações estão sempre à espreita. É importante não sucumbir a elas, porque na realidade conduzem a algo tão fútil como uma existência sem horizontes, uma liberdade sem Deus. Pelo contrário, sabemos bem que fomos criados livres, à imagem de Deus, precisamente para ser protagonistas da busca da verdade e do bem, responsáveis pelas nossas acções e não meros executores cegos, colaboradores criativos com a tarefa de cultivar e embelezar a obra da criação.
Sede prudentes e sábios, edificai as vossas vidas sobre o alicerce firme que é Cristo. Esta sabedoria e prudência guiarão os vossos passos, nada vos fará tremer e, em vosso coração, reinará a paz. Então sereis bem-aventurados, ditosos, e a vossa alegria contagiará os outros. Perguntar-se-ão qual seja o segredo da vossa vida e descobrirão que a rocha que sustenta todo o edifício e sobre a qual assenta toda a vossa existência é a própria pessoa de Cristo, vosso amigo, irmão e Senhor, o Filho de Deus feito homem, que dá consistência a todo o universo.”

Com vão reagir os jovens cristãos a estas palavras. A resposta é evidente e foi dada aos jornalistas.
E os não crentes? O que tiram daqui? Talvez a passagem das Bem-aventuranças. Mas que linguagem para os jovens de hoje sem futuro, desintegrados, sem sentidos de vida, abandonados pelas políticas sociais e hostilizados e por vezes ostracizados pela sociedade e pela opinião pública? Seriam estas palavras que precisavam de ouvir? Ou o discurso era só para dentro? Se era, não devia ser, pois aquelas são Jornadas Mundiais da Juventude. E a juventude é formada por crentes, não crentes, desesperados e esperançosos.
Não sei dar lições, muito menos ao papa.
Mas pressinto que ou a Igreja encontra as palavras apropriadas para esta juventude e esta sua dura realidade, bem mais dura que a dos adultos, ou então não a reconquista, porque não a seduz com palavras libertadoras que ela entenda.
E este é um desafio sobre o qual todos mandam palpites, mas ninguém se senta a procurar soluções adequadas. Onde está a verdadeira pastoral da Juventude? Como se prepara? Com quem? Parte-se desta realidade e constrói-se nesta realidade?

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2011-08-11

Cogito, ergo sum (2)

Embora tenha passado algo despercebido na comunicação social (o que será caso para tentar perceber o porquê), D. José Policarpo, cardeal da Igreja católica e patriarca de Lisboa, foi chamado a uma audiência com o secretário de Estado do Vaticano, Tarcisio Bertone, por causa da afirmação sobre a ordenação das mulheres que fez numa entrevista à revista da Ordem dos Advogados, publicada em meados de Junho: "Penso que não há nenhum obstáculo fundamental. É uma igualdade fundamental de todos os membros da Igreja". Antes recebera uma carta do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cargo anteriormente ocupado pelo cardeal Ratzinger.
Sabe-se que estas palavras do nosso Patriarca surgiram mês e meio depois de um bispo australiano ter sido  obrigado pelo Vaticano, a abandonar o seu múnus por causa de igual posição que tomara em 2006, sob o argumento de Bento XVI de que a doutrina da Igreja sobre o tema é "infalível".
Já, em 1999, D. José Policarpo afirmara numa entrevista que “as razões pelas quais a Igreja Católica não se abriu ainda a essa hipótese são sobretudo as da tradição apostólica, que foi sempre de homens... teologicamente, não há nenhum obstáculo fundamental; há esta tradição, digamos assim... Nunca foi de outra maneira”.
Não vou discutir o problema da ordenação das mulheres, até porque já desenvolvi aqui o que penso e quais as minhas dúvidas e perplexidades.

Bom mas passemos a algumas questões, para mim, muito importantes.

1) Tanto quanto sei a declaração de algo infalível exige um formalismo específico que, suponho, nunca foi utilizado para este caso. Além disso, tanto quanto sei, desde que foi “aprovada” a doutrina da infalibilidade no concílio Vaticano I, esta só foi utilizado duas vezes (dois dogmas sobre Nossa Senhora): por Pio IX, em 1854, sobre a Imaculada Conceição (Concepção) de Nossa Senhora (constituição apostólica Ineffabilis Deus) e por Pio XII, em 1950, sobre a Assunção (constituição apostólica Munificentissimus Dei). Portanto, não basta Bento XVI escrever numa carta que se trata de doutrina infalível.

2) Bento XVI é um grande teólogo e filósofo, mas D. Policarpo também é um grande teólogo e filósofo (não sei quantificar este grande, mas posso dizer que são ambos “grandes”). Assim sendo, o que devemos pensar teologicamente sobre a ordenação das mulheres? E posso lembrar aqui o pedido que Häring fez a João Paulo II para que juntasse todos os principais moralistas e instituições de ensino sobre o assunto para que discutissem a moral, nomeadamente sexual. E... naturalmente, João Paulo II não aceitou.

3) Isto leva-me à terceira observação. Vamos fazer um “supônhamos”. Suponhamos que, em vez de Bento XVI, tinha sido eleito Papa D. José Policarpo. Qual passava a ser o “estado da questão”: podia ou não discutir-se “normalmente” o problema da ordenação das mulheres, já que ambos têm opiniões diferentes? Será apenas uma questão de opinião pessoal, não eclesial, de quem é Papa? E, a pergunta que se segue, as opiniões pessoais do Papa tornam-se infalíveis por ele ser papa? E os teólogos, qual é o seu papel: serem os fazedores de argumentos para defender as posições do papa? Se assim, é evidente que tem de haver tensões, a menos que os teólogos “vendam a alma”. Mas parece que é mesmo assim, pois o teólogo sente-se dividido entre a fidelidade à sua consciência na procura da verdade e a exigência do Magistério de que “cabe aos teólogos moralistas expor a doutrina da Igreja, dando, no exercício do seu ministério, o exemplo de uma leal adesão, interna e externa, ao ensinamento do Magistério, tanto no campo do dogma como da moral” (Veritatis Splendor, 110). Aliás, uma afirmação análoga é feita relativamente aos Bispos: “A comunhão hierárquica com o bispo de Roma requer também que os bispos, no magistério da sua própria diocese, manifestem um zelo fiel de adesão ao magistério do Papa, mesmo se ordinário, o difundam nas formas mais apropriadas, contribuam para ele de vários modos … e, quando necessário, o defendam” (Lineamenta para a X Assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos, 46).
Claro que já nem falo dos leigos. Mas nós também não ligamos nada: não lemos nem estudamos nem fundamentamos teologicamente a nossa fé nem os nossos compromissos sócio-políticos. Assim como podemos participar honestamente na edificação da Igreja? Como podemos “cooperar de boa vontade com os homens que prosseguem os mesmos fins (da justiça e da solidariedade)”? Como podemos, “reconhecendo quais são as exigências da fé, e por ela robustecidos”, hesitar, “quando for oportuno, em idear novas iniciativas e em levá-las à prática” (Gaudium et Spes, 43)? Como podemos responder, com seriedade, aos raríssimos apelos a que colaboremos na elaboração do normativo moral: “Para a elaboração de um autêntico discernimento evangélico nas várias situações e culturas em que o homem e a mulher vivem o seu matrimónio e a sua vida familiar, os esposos e os pais cristãos podem e devem oferecer um seu próprio e insubstituível contributo. A esta tarefa habilita-os o carisma ou dom próprio, o dom do sacramento do matrimónio” (Familiaris Consortio, 5)?

4) Depois não podemos esquecer (uma certa dose) de misoginia de muitos hierarcas, nomeadamente Bento XVI. É possível (!?) que nem todos tenham lido a última exortação apostólica Verbum Domini, publicada a partir das propostas (propositones) de cerca de 200 bispos reunidos no Sínodo sobre “A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja”. Vejamos a proposta 17 feita pelos Bispos: “Os padres sinodais reconhecem e incentivam o serviço dos leigos na transmissão da fé. As mulheres, em particular, têm um papel indispensável a este respeito, especialmente na família e na catequese. Na verdade, elas sabem como despertar a escuta da Palavra e do relacionamento pessoal com Deus e comunicar o sentido do perdão e da partilha do Evangelho. É desejável que o ministério de leitor seja aberto também às mulheres, para que na comunidade cristã seja reconhecido o seu papel de anunciadoras da Palavra".
O Papa, baseado nesta proposta, escreveu: “De modo especial, o Sínodo deteve-se sobre o papel indispensável das mulheres na família, na educação, na catequese e na transmissão dos valores. Com efeito, elas «sabem suscitar a escuta da Palavra, a relação pessoal com Deus e comunicar o sentido do perdão e da partilha evangélica» (Propositio 17), como também ser portadoras de amor, mestras de misericórdia e construtoras de paz, comunicadoras de calor e humanidade num mundo que demasiadas vezes se limita a avaliar as pessoas com os critérios frios da exploração e do lucro” (85). Fez alguma referência ao ministério do Leitorado extensível às mulheres como os Bispos, a quem ele pediu a opinião, tanto desejavam? Interessa ao Papa a opinião dos seus Bispos corresponsáveis com ele no governo da Igreja? Aceita ele a doutrina da colegialidade aprovada no Vaticano II? Pode suspeitar-se que não porque ignora liminarmente a opinião dos Bispos e porque se trata de uma ruptura com o passado de monarquia absoluta papal (desvalorização ou recusa da "hermenêutica da ruptura" frente à "hermenêutica da continuidade", como recordei no último post).

Mas tenhamos muita atenção. Estes dois exemplos são manifestações pouco mais que epifenoménicas: sendo importantes, não constituem a essência da crise da Igreja.
Eu penso que a crise está hoje instalada na Igreja porque nos perdemos em muitas coisas secundárias e fugimos (propositadamente, me parece) ao essencial. A Igreja quer pregar-se a si própria, ela que é apenas um instrumento e não pregar, testemunhar e procurar viver Jesus Cristo e os valores do Reino que ele nos veio ensinar. Por isso, a Igreja é tão normativa e tão pouco misericordiosa, vista no seu conjunto e sobretudo nas suas cúpulas. Não sabe, não pode ou não quer ensinar e formar para “captarmos” a presença, simultaneamente escondida e presente, do Reino de Deus, que, segundo as palavras de Jesus, é como uma semente (e propositadamente escolheu a semente de mostarda, do tamanho de uma pulga, que vai crescendo sem sabermos como nem quando), como o fermento que a mulher mistura na massa para a levedar "silenciosamente", como um tesouro tão precioso que leva o seu descobridor a vender tudo o que tem para comprar o campo onde a escondeu.
E termino com algumas passagens do IV capítulo do livro de Pagola, “O Profeta do Reino de Deus”.
“A sua resposta era desconcertante: “O Reino de Deus não vem de maneira ostensiva. Ninguém poderá afirmar ‘Ei-lo aqui?' ou ‘Ei-lo ali’, pois o Reino de Deus está entre vós” (Lc 17,20-21)…
Por vezes, traduziram-se de maneira errónea, como, por exemplo: “O Reino de Deus está dentro de vós”. Isto levou, infelizmente, à desfiguração do pensamento de Jesus reduzindo o Reino de Deus a uma coisa privada e espiritual que se produz no íntimo de uma pessoa quando se abre à acção de Deus. Jesus não pensava nisto quando falava aos camponeses da Galileia. O que ele pretendia era convencer toda a gente de que a chegada de Deus para impor a sua justiça não era uma intervenção terrífica e espectacular, mas uma força libertadora, humilde mas eficaz, que estava ali, no meio da vida, ao alcance de todos os que o acolhessem com fé… O Evangelho (apócrifo) de Tomé atribui a Jesus estas palavras: “O Reino de Deus está dentro de vós e fora de vós”. E é verdade. O acolhimento do Reino de Deus começa no interior das pessoas, em forma de fé em Jesus, mas realiza-se na vida dos povos na medida em que o mal vai sendo vencido pela justiça salvadora de Deus.
A chegada de Deus era uma coisa boa. Assim pensava Jesus: Deus aproximava-se porque era bom, e era bom para todos que Deus se aproximasse. Não vinha defender os seus direitos nem pedir contas a quem não cumprisse os seus mandamentos. Não chegava para impor o seu “domínio religioso”. De facto, Jesus não pedia aos camponeses que cumprissem melhor a sua obrigação de pagar os dízimos e as primícias; não se dirigia aos sacerdotes para que observassem com maior pureza os sacrifícios de expiação no templo; não incentivava os escribas para que fizessem cumprir com maior fidelidade a lei do Sábado e outros preceitos. O Reino de Deus era outra coisa. O que mais preocupava Deus era libertar a gente de tudo aquilo que a desumanizava e a fazia sofrer…
Era isso que precisavam de ouvir: que Deus se preocupava com eles. O Reino de Deus que Jesus proclamava correspondia aquilo que mais desejavam: viver com dignidade…
Era, por isso, que Jesus não falava da “ira de Deus” como o Baptista, mas da sua “compaixão”. Deus não vinha como juiz irado, mas como pai de amor comunicativo…
(Jesus) nunca se pôs do lado do povo judeu contra os pagãos: o Reino de Deus não consistiria num triunfo de Israel contra os gentios. Também não se colocou nunca do lado dos justos em detrimento dos pecadores: o Reino de Deus não consistiria na vitória dos santos para fazer pagara os maus pelos seus pecados. Ele era sempre a favor dos que sofriam e contra o que era mal, pois o Reino de Deus consistia me libertar a todos daquilo que os impedia de viver de maneira digna e feliz…
Por isso, Jesus não pensava só na cura das pessoas doentes. Toda a sua actividade se desenvolvia no sentido de fazer surgir uma sociedade mais saudável. Daí a sua alergia a comportamentos patológicos de raiz religiosa tais como o legalismo, o rigorismo e o culto vazio de justiça; o seu esforço em prol de uma convivência mais justa e solidária; o acolhimento que fazia aos deserdados da vida ou da sociedade; o seu empenhamento em libertar toda a gente do medo e da insegurança a fim de que vivesse com absoluta confiança em Deus. Curar, libertar do mal, tirar do desânimo, sanear a religião, construir uma sociedade mais amável, eram os caminhos que ele indicava para se acolher e promover o Reino de Deus, e eram também os caminhos que Jesus trilharia”.

É isto que nos ensinam na catequese? Nas homilias? Nas notas episcopais? Nas encíclicas pontifícias?

2011-08-07

Cogito, ergo sum (1)

Um dos livros que trouxe para ler e meditar nestes dias foi “Jesus uma abordagem histórica” de José António Pagola, um livro cuja leitura me está a dar um gozo interior muito intenso. Ainda li só uma parte, mas é notável o seu estilo tão simples e carregado de tanta informação que a maior parte de nós não conhece. Para os mais sabidos está cheio de notas de rodapé onde remete para vários autores e resume as suas teses.  Escreveu este livro porque ama profundamente Jesus Cristo e escreveu-o com teólogo católico, tendo em conta os estudos das últimas décadas, pois, como escreve Bento XVI, no seu Jesus de Nazaré, “o método histórico … é e continua a ser um aspecto do trabalho exegético a que não se poderá renunciar”. Portanto é uma espécie de “compêndio admirável da investigação crítica sobre Jesus, tal como tem sido realizada nos últimos cinquenta anos, na Europa e na América, tanto entre católicos como entre protestantes e judeus” (Pikaza).
Pagola explica: “Quis apresentar Jesus aos homens e às mulheres de hoje de maneira simples, sem com isso desvirtuar ou desfigurar os resultados da investigação. A minha opção por este género narrativo deve-se ao meu desejo de aproximar o leitor de hoje, crente ou não, daquela experiência que tiveram os que encontraram Jesus, para os ajudar a sintonizar a Boa Nova que descobriram nele. Se Jesus foi captado e recordado como qualquer coisa de “novo” e de “bom” por quem se encontrou com ele, será que não há-de poder trazer-nos também hoje qualquer coisa capaz de gerar renovação, libertação e e esperança? Recuperar de maneira rigorosa e viva a dimensão humana de Jesus não poderá ser hoje uma Boa Notícia para crentes e descrentes? É difícil aproximar-se dele e não ficar fascinado pela sua pessoa. Jesus dá uma nova perspectiva à vida, uma dimensão mais profunda, uma verdade mais essencial! A sua vida converte-se num apelo a viver a existência desde a raiz mais profunda que é Deus, o qual só deseja para os seus filhos e filhas uma vida mais digna e mais feliz. Contactar com ele obriga a deixar atitudes rotineiras e artificiais, liberta de enganos, medos e egoísmos que paralisam as nossas vidas; insere me nós coisas tão importantes como a alegria de viver, a compaixão pelos últimos da sociedade, ou o trabalho incessante por um mundo mais justo. Jesus ensina a viver com simplicidade e dignidade, com orientação e com esperança. Mas, há mais. Jesus pode elevar a crer em deus sem fazer do seu mistério não um ídolo ou uma ameaça, mas uma presença amigável e próxima que é uma fonte inesgotável de vida e de compaixão para com todos. Infelizmente, vivemos, por vezes, rodeados de imagens doentias de Deus que se vão transmitindo de geração em geração sem que se meçam os seus efeitos deletérios. Jesus convida a fazer a experiência de um Deus Pai mais humano e maior que todas as nossas teorias: um Deus salvador e amigo”.
Longa citação, mas que lindo e que amor a Jesus! Não é bonito e estimulante ter oportunidade de fazer esta reflexão que nos fundamente e ajude cada vez mais a fazer esta vivência cada vez mais da Pessoa de Jesus de nazaré? É um livro encantador, sedutor, que nos estimula a amar cada vez mais Jesus, que nos informa pormenorizadamente da sua vida entre os camponeses da Galileia que eram duplamente explorados, pelos impostos romanos e pelo dízimo para o Templo, que nos mostra como a paixão do “Reino de Deus”, que referiu 120 vezes, o abrasava (“Eu vim lançar o fogo sobre a terra”: Lc 12,49), como o "Reino" era de tal maneira o núcleo central da sua pregação, a sua convicção mais profunda, a paixão que animava toda a sua actividade” que se sentiu obrigado a andar de terra em terra para mostrar que “Deus era um boa notícia”.
Pois este livro maravilhoso tem uma história que é uma verdadeira odisseia, exemplo de tantas outras dentro da nossa santa madre Igreja (católica). E conto-a com as palavras de um teólogo muito conhecido, J.I. González Faus: “Ultimamente estamos assistindo ao seguinte absurdo: um livro que o cardeal Ravassi elogia publicamente, que um bispo português, entusiasmado, mandou traduzir, que o autor aceitou corrigir de acordo com as sugestões que lhe fez uma pequena comissão de teólogos nomeada, para o efeito, pela Conferência episcopal espanhola, recendo o “nihil obstat” do seu bispo; um livro sobre o qual o actual secretário da Congregação da Doutrina da Fé confessou ao antigo bispo de San Sebastián que não continha nada de heterodoxo… um livro destes termina com um processo aberto contra o autor e com Roma a obrigar a editora a tirá-lo do catálogo e a destruir todos os exemplares que ainda tenha”. 
Não sei o que está a suceder em Roma, pois só sabia do que se passou em Espanha sobretudo com o bispo de Tarazona e um grupo de teólogos, de grande peso oficial, que condenaram o livro.

Para uma rápida explicitação destas confusões, quero apenas deixar duas rápidas notas.
A tradução portuguesa, por razões apresentadas pelo editor, fora feita (e estava pronta para distribuição) a partir do livro “antes das sugestões”; a editora espanhola avisou que a tradução tinha que ser feita a partir do “novo” livro com “as sugestões”. Mas, como o livro estava praticamente pronta para a distribuição, o editor português deixou ficar o original anterior às sugestões e associou-lhe um Suplemento com o título “Uma explicação ao meu livro Jesus uma abordagem histórica”. Penso que foi muito bom que isto acontecesse, pois de posse do livro e do Suplemento podemos ver o que foi sugerido. As principais modificações referem-se ao cap. 14 e a uma rescrita do cap. 15, que ainda não li nem comparei.
E agora vou apenas dar um exemplo, que é bem mais significativo do que parece à primeira vista: a nota 11 do II Capítulo “Um vizinho mais de Nazaré”.
Antes das sugestões:
Segundo Mc 6,3, os habitantes de Nazaré desabafam assim: “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão?” E as suas irmãs não estão aqui entre nós?”. O termo adelfós utilizado pelo evangelista significa normalmente “irmão” no sentido estrito, não primo ou parente. Do ponto de vista puramente filológico e histórico, a posição mais comum entre os especialistas é a de que se trata de verdadeiros irmãos e irmãs de Jesus. Meier, talvez o investigador católico de maior prestígio neste momento, após um estudo exaustivo conclui que “a opinião mais provável é que fossem realmente irmãos e irmãs de Jesus”.
Depois das sugestões
Segundo Mc 6,3, os habitantes de Nazaré desabafam assim: “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão?” E as suas irmãs não estão aqui entre nós?”. Na Igreja antiga, já se davam várias respostas quando se tratava da interpretação deste texto e de outros que falam de “irmãos” e “irmãs” de Jesus (cf. Mc 3,31-32; 1Cor 9,5; Gl 1,19). A interpretação mais difundida até aos dias de hoje foi a de S. Jerónimo que os considera “primos ou parentes próximos”. Actualmente, os estudos de Meier e de outros exegetas rejeitam essa interpretação por razões filológicas, e pensam que estes textos falam de verdadeiros “irmãos” de Jesus. No entanto, é preciso situar tais conclusões no contexto de uma cultura patriarcal baseada na agnatio (descendência definida através dos varões); nesta cultura, quando se diz que duas pessoas são “irmãs”, a única coisa que se afirma é que têm o mesmo pai. A Igreja católica sempre entendeu que os referidos textos não se referem a outros filhos da Virgem Maria.
Não quero comentar, pois isto é muito claro. Mas não resisto a um desabafo: José, um “homem justo”, tem as costas bem largas; teria de ser viúvo, do que nada se diz nos Evangelhos ou então não seria tão justo como isso!

Mas o que realmente é chocante é que mesmo depois destas emendas todas e da franca aceitação por altos representantes da hierarquia, Roma o censure e o queira “colocar o Index”.
Do que nós, cristãos, estamos necessitados é de livros que nos apaixonem por Jesus e pelo “Reino de Deus e a sua justiça”. Este é um deles, como refere o cardeal Ravassi, Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura: “A melhor forma para guiar o leitor não especialista no meio desta selva (de interpretações cristológicas) parece-me ser a narrativa realizada em Espanha por dois teólogos, Armand Puig i Tarrech (Jesús. Respuesta a los enigmas. San Pablo) e José Antonio Pagola (Jesús. Una aproximación histórica. PPC)”. Mais: não existe cristianismo sem o encontro amoroso com Jesus, como diz o Papa: “No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Deus caritas est, 1)

Por isso, num tempo de profunda crise na Igreja, da qual uma das principais causas é o nosso profundo desconhecimento de Jesus Cristo, não se percebe á tentativa de silenciamento e a condenação deste livro tão apaixonado por Jesus. Como é possível que uma Igreja, que deve testemunhar Jesus Cristo, tome atitudes como estas que são a negação da misericórdia amorosa do nosso Deus, do seu amor por todos? Neste caso concreto, depois de tanto cuidado do autor, há altos representantes oficiais que acham que devem mostrar a sua autoridade e impor a sua doutrina, uma no meio de muitas, pois vivemos numa “selva de interpretações cristológicas”. Não é possível testemunhar e fomentar o Reino de Deus a partir e por meio do poder, quando o próprio Jesus recomenda a este respeito: “Sabeis que os senhores das nações governam-nas como seus senhores e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós; pelo contrário, quem quiser fazer-se grande entre vós, seja vosso servo “ (Mt 20,25-26). E também não se pode impor pelo medo. Contudo os responsáveis, que avaliam os outros (mas quem avalia os avaliadores?), são sempre alguém que, mesmo sem querer, utiliza o medo para impor a sua doutrina ou a doutrina que acha que deve proteger. Também esta “pastoral do medo” vai contra as palavras de Jesus, que lemos no Evangelho deste domingo: “Não temais… Homens de pouca fé, por que duvidastes?” (Mt 14,27,31). Jesus repete estas mesmas palavras: “Porque temeis, homens de pouca fé?” (Mt 6,25). É difícil acreditar quando o nosso Deus não se manifesta no vendaval, nem no tremor de terrena, nem no incêndio, mas na brisa suave que acaricie quase sem se dar por isso, como recorda a primeira leitura de hoje (1Rs 19,12).  

Além disso, que custos pode ter para a já débil credibilidade da Igreja (mesmo entre os cristãos), esta falta de testemunho “superior”  da solicitude e do serviço amorosos para com todos? Que credibilidade pode ter uma Igreja quando os seus principais responsáveis se preocupam mais por aumentar o centralismo e “piramidalismo” do que em pôr em prática de modo sério e eficaz a vivência da eclesiologia da comunhão? O que nos resta a nós, os outros membros da Igreja, que não seja obedecer cegamente, aceitar a doutrina dos actuais detentores do poder sem qualquer espírito crítico? Não corremos o risco de nos tornarmos numa seita de fundamentalistas em que os chefes mandam e o resto obedece? Somos o rebanho de Deus ou o Povo de Deus? O que foi feito desse modelo tão rico e tão profundo da Igreja como “Povo de Deus”? Podemos pensar pelas nossas cabeças ou somos meros receptáculos e repetidores de sons sem sentido que nos chegam do “alto” baixo?
E já nem refiro o que se está a fazer da força do Espírito que soprou no Vaticano II, pois desse Concílio parece que apenas é aproveitável o que nele se repete dos concílios anteriores, como o demonstra Bento XVI, no seu discurso aos cardeais pouco depois da sua “tomada de posse”, ao contrapor a bondade da “hermenêutica da continuidade” aos inaceitáveis desvios da “hermenêutica da ruptura”.


Deus quis criar-nos com a capacidade de pensar. Só o ser humano pensa. Se deixarmos de pensar nunca seremos pessoas a sério nem cristãos autênticos. Se não penso, não posso, não consigo fazer opções. Não posso nem consigo ouvir a voz da minha consciência, “o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (Gaudium et Spes, 16). E é pela minha consciência que irei ser julgado: não é pelo que os outros mandam; é pelo que eu faço. Quantos crimes se cometeram e cometem porque as pessoas não pensam e obedecem cegamente às ordens superiores?
Quem acredita que Deus está na brisa que a todos acaricia, que sopra onde e quando quer, só pode respeitar o que Deus pensa através de cada um, mesmo que cada um não seja capaz de o traduzir com rigor. Porque só Deus tem A Verdade. 

É a este contexto que o caso de D. José Policarpo vem acrescentar algo de pouco interessante.