Trabalho
Interrompo a reflexão sobre os textos bíblicos que mais me marcaram para partilhar um artigo sobre o trabalho, dado o bom acolhimento que teve entre vários amigos.
O TRABALHO UM BEM A PARTILHAR
Não seria necessário esperar pelo mês de
Maio, para que o trabalho fosse um tema irrenunciável. Na verdade, vivemos um
tempo cujo principal drama é o desemprego. Impõe-se um debate sério sobre o trabalho,
pois o modo como ele é entendido influencia a legislação laboral e a tomada de consciência
da obrigatoriedade de atacar este problema dados os seus reflexos na vida
pessoal – do sentido da inutilidade até à própria exclusão social –, familiar e
social – das tensões sociais ao empobrecimento nacional. É indispensável que
dadores de trabalho e trabalhadores, a sociedade, todos os cidadãos, aprofundem
este tema de modo criativo, porque “em muitos casos, os pobres são o
resultado da violação da dignidade do trabalho humano, seja porque as
suas possibilidades são limitadas (desemprego, subemprego), seja porque são
desvalorizados «os direitos que dele brotam, especialmente o direito ao justo
salário, à segurança da pessoa do trabalhador e da sua família»” (Bento XVI, Caritas in Veritate, 63).
Efectivamente, de acordo com a doutrina
social da Igreja, o trabalho é o meio pelo qual cada pessoa se pode realizar. É
pelo trabalho que cada um se pode sustentar a si e à sua família. A própria vida
familiar depende do trabalho, pois este “constitui o fundamento sobre o qual se
edifica a vida familiar, direito fundamental e vocação do homem” (João Paulo
II, Laborem Exercens (LE), 10). O
trabalho assegura também o desenvolvimento da sociedade, promovendo a
solidariedade entre as pessoas – colegas trabalhadores e cidadãos consumidores
– e respondendo às necessidades pessoais e
da humanidade. É um instrumento para realizar o adequado “domínio” sobre a
natureza, sem o qual não há progresso nem desenvolvimento. Mas sobretudo, o
trabalho é o meio mais adequado para que cada um possa ter a sua parte dos bens
da terra que existem para a utilização de todos: enquanto a esmola é um gesto,
muitas vezes degradante, e os subsídios são transitórios, o trabalho é o meio mais nobre e dignificante para
ter acesso a estes bens, pois, pelo trabalho,
cada um dá o seu contributo para os aumentar e recebe, através de um salário
justo, a parte a que tem direito.
Por tudo isto há uma hierarquia de valores:
o primado do homem sobre o trabalho –
a pessoa deve estar sempre no centro de toda actividade incluindo a actividade
laboral: “Antes de mais nada, o trabalho é ‘para o homem’ e não o homem ‘para o
trabalho’”. Daí que seja a pessoa quem dá dignidade a todos os tipos de
trabalho e não vice-versa. Daí que “a finalidade de todo e qualquer trabalho
realizado pelo homem permanece sempre o próprio homem” (LE 6) – e o primado do trabalho sobre o capital: “Esse
instrumento gigantesco e poderoso, que é o conjunto dos meios de produção,
considerados como sinónimo do capital, nasceu do trabalho e é portador dos
vestígios de trabalho humano” (LE 12). Por isso o trabalho é cronológica e
ontologicamente anterior ao capital.
É exactamente o contrário daquilo a que
assistimos nas sociedades modernas. Mas tirar a pessoa do centro para lá
colocar o capital é recusar a centralidade da pessoa, é recusar o pilar
estruturante de uma sociedade ou de um sistema justo, solidário e humano. Hoje,
há pessoas que são obrigadas a trabalhar estupidamente sem tempo para mais nada,
enquanto outras, cada vez mais, não têm trabalho, vivendo a angústia da inutilidade
e da falta de auto-estima. Não será possível, dado o enorme aumento de
produtividade – trinta vezes desde a Revolução Industrial – fazer uma redistribuição
solidária do trabalho de modo a diminuir drasticamente o desemprego? Atrevia-me
a recordar aqui a velha proposta “a meio
tempo” do sociólogo G. Aznar, que implicava: 1) dispor de duas pessoas, no mesmo
posto de trabalho, por cada dia completo; 2) ter dois tempos para a mesma
pessoa: um, consagrado a um tipo de actividade, na esfera profissional; outro, “um
tempo para amar”, consagrado a outras actividades, na esfera individual ou
social, como cuidar dos filhos, actualizar conhecimentos, cumprir um “serviço
cívico” que seria extensível a todos, etc.. Os custos desta proposta deviam ser
repartidos pela empresa, remunerando o trabalho realizado, e pelo Estado,
através de compensações fiscais ou afins às empresas que adiram, mas também
repondo um salário digno ao trabalhador. Bem sei que isto é utópico, que exige
uma profunda mudança de mentalidades, da organização social e do próprio
conceito de trabalho. Por exemplo, é altura de ultrapassar ideias
como a de que o homem é trabalhador porque trabalha numa fábrica e a mulher não
é trabalhadora, porque “apenas” se dedica a cuidar dos filhos e da gestão da
casa.
Se o próximo
paradigma de organização social e sua fundamentação não tiver nada de utópico é
porque não passámos além do que temos, embora com outras roupagens.