divórcio ou casamento eterno?...

2013-04-11

Proposta de Queiruga

Vamos voltar ao dilema de Epicuro.
A.T. Queiruga é um teólogo especialmente preocupado em “repensar” a fé de modo a que, actualizando a sua compreensão, seja possível “recuperar” hoje a experiência cristã originária. Basta recordar os títulos de alguns dos livros: Recuperar a Salvação, Recuperar a Cristologia, Recuperar a Criação, Recuperar a Ressurreição, Recuperar a Revelação. Um dos mais recentes é o Repensar o Mal.
Neste o autor analisa o problema do mal a partir de perspectivas diferentes. Se na época da cristandade, era difícil falar do mal sem ter em conta Deus, pois Deus estava presente e interveniente em tudo, com a Modernidade assistimos a uma viragem estruturante: a secularização e a autonomização das realidades terrestres vieram alterar o panorama. Esta nova posição obriga-nos a repensar o modo como tratamos o mal, não partindo de Deus mas da realidade. E o que a realidade nos diz é que o mal está presente em todos, crentes e não crentes. Por outras palavras, a presença do mal é anterior ao factor religioso. Então temos que começar por abordar o mal do ponto de vista “comum”. Temos de utilizar a razão e não apenas a fé. Devemos reflectir sobre o mal em si mesmo e por si mesmo. Para tal metodologia, Queiruga inventa uma palavra panerologia, formada a partir do grego panerós, “mal”. Vamos para já deixar de lado a resposta do mistério e vamos olhar criticamente a realidade. Nós vivemos num mundo finito, limitado. Pelo facto de ter sido criado, como todas as criaturas, tem limitações que fazem parte da sua essência. Isto é, um mundo criado não pode ser perfeito. Ora o mal surge destas limitações do mundo: o nosso corpo tem doenças, porque não é perfeito, mas limitado, vai-se desgastando, vai perdendo qualidades. Tal como é contraditório haver um corpo sem limitações, também é contraditória a existência de um mundo sem limitações. Avançando um pouco mais. Deus não pode entrar em contradições. É possível Deus criar uma pedra tão pesada que ele não consiga levantá-la? É possível Deus fazer a quadratura do círculo? A resposta tem que ser não. Então Deus é impotente? Não. Nem Deus pode fazer com que o “ser” seja “não-ser”. Não é Deus que é incapaz de fazer a quadratura do círculo. O problema não está em Deus; está no facto de um mundo criado ser impossível sem o mal: seria contraditório.
Portanto não é Deus que cria o mal ou o permite. O mal faz parte intrínseca de um mundo ou das criaturas criadas. Tudo o que é criado é limitado e a limitação faz parte da sua essência. Não pode existir um mundo sem mal porque faz parte essencial do mundo a sua limitação, que inclui o mal. Deus não pode criar um mundo perfeito
O dilema de Epicuro não tem em conta este pressuposto e aí reside a sua falha. Realmente se não houvesse uma falha qualquer, o dilema de Epicuro deixava Deus em maus lençóis. Por isso foi inventada a teodiceia, a ciência que pretende justificar Deus. Mas afinal Deus não pode querer nem tem poder perante as contradições. Um mundo perfeito não é possível porque seria contraditório. O nosso mundo, porque é imperfeito, não pode funcionar sem que o mal se manifeste.

Mas esta solução leva a outra dificuldade de fundo. Se nós somos finitos, como é possível obter uma salvação eterna?
Bom, perante esta questão é melhor calarmo-nos até porque ninguém sabe o que se passa no Além. Mas podemos ter algum vislumbre com a ideia da tensão para transcendência, contida na afirmação de Pascal: “O homem transcende infinitamente o homem”. Este “infinitamente” não sabemos onde nos pode conduzir. Segue-se uma longa citação de um velho amigo. É longa mas vale a pena, espero eu. “Porque o corpo parece ter sido sempre o lugar da imanência. E a transcendência parece ser, parece ter sido sempre, o lugar sem espaço (se é que pode haver um lugar sem espaço) onde não cabe nem pode caber o corpo. Ora é precisamente este nó que Anselmo Borges (no livro Corpo e Transcendência) nos convida a dar com este livro e com este título: pensar o corpo (pensar o ser humano no seu corpo) como uma tensão para a transcendência, ou seja, como paixão e vertigem para se ultrapassar, num salto para o desconhecido, já que o que nos transcende a nós e ao nosso corpo, ou em sentido mais rigoroso, o que nos transcende a nós no nosso corpo, é-nos desconhecido e, por isso, inscreve-se no mistério mais profundo do ser; mas esse é um convite para pensar, ao mesmo tempo, a transcendência na sua co-implicação no corpo e com o corpo… É pelo corpo que o homem se inscreve na história e no tempo. Como na história e no tempo se inscrevem as crenças na sua relação com o sagrado e na sua aspiração ao absoluto. Nessa inscrição se joga a dialéctica entre a finitude e a infinitude que nos marca na nossa mais profunda essência e que marca a relação com a transcendência nos rostos históricos das diversas religiões… (Há) uma mediação do tempo, onde o mistério da morte continua a desempenhar o papel de grande desencadeador de todas as perguntas e a abertura à transcendência se inscreve mais uma vez como vislumbre do tempo para além do tempo e como horizonte escatológico de um “último” que o homem não pode dominar porque permanentemente lhe escapa e que apenas pode intuir como aquele para que o mundo está aberto, tanto quanto “ele”, que as religiões nomeiam “Deus”, está aberto ao mundo” (João M. André na apresentação do livro referido).
Também João Paulo II faz referência a esta tensão: “a família tem a missão de se tornar cada vez mais aquilo que é, ou seja, comunidade de vida e de amor, numa tensão que, como para cada realidade criada e redimida, encontrará a plenitude no Reino de Deus” (Familiaris Consortio, 17).

2013-04-01

O debate continua

A propósito deste tema do mal e especialmente do sofrimento dos nocentees, aqui deixo para saborear (assim se junta o útil ao agradável) uma página de Os Irmãos Karamazov de Dostoievski. Trata-se da parte final do livro quarto, capítulo quarto (na “minha” edição da editora Estúdios Cor, 1958, ocupa parte das páginas 220 a 223) e desenrola-se num diálogo entre os irmãos – o “místico” Aliocha e o contestatário Ivan – ou melhor num longo monólogo de Ivan, a que responde Aliocha com meia dúzia de sílabas.

- (…) A ciência do homem toda inteira não vale as lágrimas de uma criança. Não falo do sofrimento dos adultos, que comeram o fruto proibido. Leve-os o diabo. Mas as crianças? (…) Escuta. Limitei-me às crianças para ser mais claro. Não falei das lágrimas humanas, abreviando voluntariamente a minha conversa. Confesso com humildade não compreender este estado de coisas. Os homens são os únicos culpados: tinham-lhes concedido o paraíso. Cobiçaram a liberdade e arrebataram o fogo do céu, sabendo que seriam infelizes. Não merecem, pois, nenhuma piedade. Pelo meu pobre espírito terreno, sei apenas que existe o sofrimento, que não há culpados, que tudo passa e se equilibra. São as pataratas de Euclides, mas não consinto em viver apoiando-me nisso. Preciso de uma compensação, de outra forma destruir-me-ei. E não de uma compensação em qualquer sítio, no infinito, mas cá em baixo, uma compensação que eu veja. Acreditei, quero ser testemunha, e, se já estou morto, que me ressuscitem; seria pungente se tudo sucedesse sem mim. Não quero que o meu corpo, com os seus sofrimentos e os seus pecados, sirva unicamente para adubar a harmonia futura, em intenção não sei de quê. Quero ver com os meus olhos a gazela dormir junto do leão, a vítima beijar o seu assassino. É neste desejo que se baseiam todas as religiões, e eu tenho fé. Quero estra presente quando todos souberem o porquê das coisas. Mas as crianças, que farei delas? Não sou capaz de resolver tal problemas. Se todos devem sofrer para assim concorrerem para a harmonia eterna, qual o papel das crianças? Não é admissível que também devam sofrer em nome da harmonia. Porque serviriam de material destinado a prepará-la? Compreendo a solidariedade do pecado e do castigo, mas não se pode aplica-la aos inocentes; os filhos expiaram os erros dos pais, é a lei que não pertence a este mundo e que não chego a perceber. Um gracioso idiota objectará que as crianças crescem e terão tempo de pecar, mas não cresceu aquele pequeno de oito anos dilacerado pelos cães. Não blasfemo, Aliocha. Compreendo como o universo estremecerá quando o céu e a terra se unirem no mesmo grito; quando tudo o que vive ou viveu proclamar “Tens razão, Senhor, pois são-nos revelados os teus caminhos”; quando o verdugo, a mãe e o filho se abraçarem e declararem com lágrimas “Tens razão, Senhor”. Sem dúvida que então se fará luz e tudo será explicado. O pior é que admito uma solução deste género. E tomo as minhas providências, enquanto estou neste mundo. Pode ser que viva até àquele momento, ou que ressuscite na própria ocasião, e talvez grite como os outros “Tens razão, Senhor”, mas será contra vontade. Enquanto é tempo, recuso-me a aceitar essa harmonia superior. Acho que não vale uma lágrima de criança, uma lágrima daquela vitimazinha que invocava Deus no seu canto infecto; não vale não, porque essas lágrimas não foram resgatadas. Os carrascos sofrerão no inferno, poderás objectar. Mas de que serve esse castigo se as crianças tiverem também o seu inferno? Aliás, que valor tem essa harmonia que comporta um inferno? Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E se o sofrimento das crianças é para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo que a verdade não merece tal preço. Não quero que mãe perdoe ao verdugo; não tem esse direito. Perdoe-lhe o seu sofrimento de mãe, mas não o que sofreu o filho dilacerado pelos cães. Ainda que o filho perdoasse, ela não teria o direito. Se não existe o direito de perdoar, onde está a harmonia? Haverá no mundo algum ser que tenha esse direito? É por amor à humanidade que não quero semelhante harmonia. Prefiro guardar as minhas dores não resgatadas e a minha indignação persistente. Aliás, exageraram o preço dessa harmonia; custou-nos muito a entrada. Acho melhor devolver o bilhete… E é o que eu faço. Não me nego a admitir Deus, mas devolvo-lhe respeitosamente o meu bilhete.
- Chamo a isso revolta – murmurou Aliocha, de olhos baixos.
- Revolta? Não queria ver-te empregar esse termo. Pode viver-se revoltado? Ora eu quero viver. Responde-me com toda a franqueza. Imagina que tens nas tuas mãos o destino da humanidade e que, para tornares definitivamente as pessoas felizes, para lhes proporcionar a paz e o repouso é indispensável martirizar nem que seja um só ente, uma criança, e sobre as sobre as suas lágrimas a felicidade futura. Consentirias, em tais condições, em edificar tal felicidade? Responde sem mentir.
- Não, não consentiria.
- Nesse caso, podes admitir que os homens consintam em aceitar suficiente felicidade a troco do sangue de um pequeno mártir?
- Não, não posso admitir – respondeu Aliocha, de olhos cintilantes – Perguntaste-me se haverá no mundo um Ser que tenha o direito de perdoar. Sim, existe esse Ser. Pode perdoar a todos porque derramou o Seu sangue inocente por todos. Esqueceste-o, mas Ele é a pedra angular, e a Ele é que nós devemos gritar: “Tens razão, Senhor, pois são-nos revelados os teus caminhos”.
- Ah, sim, o “único sem pecado” e que “derramou o seu sangue”. Não o esqueci, não. Pelo contrário, admirava-me de não o teres ainda mencionado. Pois que nas discussões vocês começam em geral por salientá-lo.