divórcio ou casamento eterno?...

2009-08-31

CinV (15) Dignitatis Humanae

O Concílio viu-se envolvido em sérios e dramáticos debates a propósito da verdade, ou melhor, da liberdade religiosa. E não fora a decidida intervenção de Paulo VI é bem possível que o documento sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae) não tivesse sido votado. Apesar de se tratar de um texto relativamente curto, foi objecto de mais de dez mil sugestões e propostas de emenda ao longo das suas várias redacções.
É considerado por muitos como o documento que, conjuntamente com a GS, estabelece um diálogo sério com o mundo do seu tempo.
Nesta Declaração, a Igreja assume a exigência de liberdade do homem contemporâneo (1) e apresenta a sua raiz cristã no campo concreto da liberdade religiosa que considera com um direito fundamental do homem.
Fundamenta o direito à liberdade religiosa não apenas na Revelação divina (9-10), mas também na dignidade da pessoa (2). Daqui decorrem duas consequências importantes: todos devem estar livres de coacção (2) e ninguém pode ser forçado a agir contra a sua consciência (3).
Tal como outros direitos, também a liberdade religiosa está limitada pelos direitos dos outros "segundo as normas jurídicas conformes à ordem moral objectiva" exigida pela eficaz tutela dos direitos de todos os cidadãos, pela conveniente solicitude pela paz pública e pela necessária defesa da moralidade pública (7).
Reprova os exageros cometidos no passado em nome da verdade evangélica (12) considerando que tais se deveram ao esquecimento de que o Evangelho não se impõe pela força mas se implanta pelo testemunho da verdade e cresce pelo amor de Cristo que, da Cruz, atrai todos os homens (11).
Assim, procede a uma radical mudança na posição da Igreja sobre a liberdade religiosa, passando de uma atitude de tolerância (quando não havia outra saída) para a de um declarado apoio à liberdade religiosa, que considera um direito da pessoa.
Afinal a liberdade religiosa é um direito fundamental da pessoa (2) e não apenas da Igreja. Trata-se de uma novidade, porque:
- antes, o único sujeito deste direito era a Igreja; agora, é toda a pessoa;
- antes, este direito da Igreja justificava-se por ser ela a única a possuir a plenitude da verdade religiosa, a única que tinha recebido de Cristo a sua missão salvadora; agora, a justificação está na dignidade da pessoa humana;
- antes, a liberdade religiosa protegia a actividade religiosa da Igreja; agora, protege a actividade religiosa de qualquer pessoa.
A Igreja faz sua a exigência de liberdade da pessoa, acabando com o espírito do Syllabus e do Index.
Talvez tenham feito bem e despertado os Padres conciliares as situações em que a Igreja não tinha liberdade. Isso fê-los ver melhor o outro lado da questão: “Mais ainda, a Igreja reconhece que muito aproveitou e pode aproveitar da própria oposição daqueles que a hostilizam e perseguem” (GS 44).

2009-08-27

CinV (14) O longo caminho da verdade

A Igreja sempre se apresentou como detentora da verdade. De toda a verdade, até há poucos anos.
Porque só a verdade é que tinha direitos, o erro era inaceitável e tudo parecia legítimo para o combater. “Em nome da verdade”, esse grande argumento de peso, foram cometidas muitas barbaridades de tal modo graves que João Paulo II sentiu a necessidade de pedir perdão por elas: “Outro capítulo doloroso, sobre o qual os filhos da Igreja não podem deixar de tornar com espírito aberto ao arrependimento, é a condescendência manifestada, especialmente nalguns séculos, perante métodos de intolerância ou até mesmo de violência no serviço à verdade”. Mesmo que os condicionalismos históricos não possam ser ignorados, “a consideração das circunstâncias atenuantes não exonera a Igreja do dever de lastimar profundamente as fraquezas de tantos filhos seus, que lhe deturparam o rosto, impedindo-a de reflectir plenamente a imagem do seu Senhor crucificado, testemunha insuperável de amor paciente e de humilde mansidão”. E acrescenta: “Desses momentos dolorosos do passado deriva uma lição para o futuro, que deve induzir todo o cristão a manter-se bem firme sobre aquela regra áurea ditada pelo Concílio: «a verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte» (DH 1)” (TMA 35).
Durante séculos, em nome da verdade, se mataram, se queimaram, se calaram pessoas, muitas delas muito mais honestas que os seus inquisidores. A verdade tornou-se mais importante que a pessoa, em manifesta revelia contra a proclamação tão solene de Jesus: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27).
Foi preciso esperar por João XXIII para que se percebesse que há uma diferença radical entre o erro e a pessoa que erra, uma afirmação ainda hoje tão ignorada e não praticada: “Não se deverá jamais confundir o erro com a pessoa que erra, embora se trate de erro ou inadequado conhecimento em matéria religiosa ou moral. A pessoa que erra não deixa de ser uma pessoa, nem perde nunca a dignidade do ser humano, e portanto sempre merece estima. Ademais, nunca se extingue na pessoa humana a capacidade natural de abandonar o erro e abrir-se ao conhecimento da verdade” (PT 157).
Já antes, na abertura do Concílio, João XXIII apostava no remédio da misericórdia mais do que o da condenação e até insinuava que a própria história tinha capacidade para emendar os erros: “A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Nos nossos dias, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade: julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validade da sua doutrina do que condenando erros. Não quer dizer que faltem doutrinas enganadoras, opiniões e conceitos peri­gosos, contra os quais nos devemos prevenir e que temos de apostar; mas esses estão tão evidentemente em contraste com a recta norma de moralidade e deram já frutos tão perniciosos, que hoje os homens parecem inclinados a con­dená-los, em particular os costumes que desprezam a Deus e a Sua lei, a confiança excessiva nos progressos da técnica e o bem-estar fundado exclusivamente nas comodidades da vida. Eles sempre se vão convencendo mais do maior valor da dignidade da pessoa humana, do seu aperfeiçoa­mento e do esforço que ele exige. E o que é mais importante é que a experiência lhes ensinou que a violência feita aos outros, o poder das armas e o predomínio político não contribuem para a feliz solução dos graves problemas que os atormentam” (11.Out.1962).

2009-08-26

CinV (13) O que é a verdade?

Porque vivemos "num contexto social e cultural que relativiza a verdade” e que origina “desvios e esvaziamento de sentido do que é a caridade” (2), o Papa dedica a Introdução a mostrar a íntima ligação que tem de haver (há) entre caridade e verdade.
A verdade é um dos conceitos mais fecundos na história do pensamento ocidental, desde os filósofos gregos e todos os seus sucessores aos teólogos cristãos desde os tempos apostólicos.
Para F. Torralba, “o filósofo busca a verdade do ser através do lógos, ou mais especificamente, através do dia-lógos, enquanto que a teologia procurar decifrar o sentido do mundo, da história e do ser humano a partir da palavra que Deus revelou sobre si mesmo na sua comunhão gratuita com o ser humano”.
Para Bento XVI, “a verdade é «logos» que cria «dia-logos» e, consequentemente, comunicação e comunhão. A verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações subjectivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas. A verdade abre e une as inteligências no logos do amor: tal é o anúncio e o testemunho cristão da caridade” (4).
O cristão sente sempre a verdade como a Palavra com que Jesus se definiu: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Mas não ignora uma sua outra “palavra”: o seu silêncio perante a pergunta de Pilatos: “O que é a verdade?” (Jo 18,38). Sempre me interroguei por que razão Jesus, que sempre tinha uma resposta tão sábia como desconcertante para todas as perguntas por mais capciosas que elas fossem, aqui tenha ficado calado. Como este seu silêncio não pode ser entendido como uma manifestação de ignorância, fica uma outra alternativa. Jesus quis deixar a pergunta sem resposta para nos desafiar a cada um de nós a descobrir a verdade, a descobrir a sua verdade. Nós só podemos ser autenticamente pessoa se formos fiel à nossa verdade, à nossa razão de ser, ao nosso projecto de pessoa. É, aliás, o que indica o Papa: “O amor — «caritas» — é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz. É uma força que tem a sua origem em Deus, Amor eterno e Verdade absoluta. Cada um encontra o bem próprio, aderindo ao projecto que Deus tem para ele a fim de o realizar plenamente: com efeito, é em tal projecto que encontra a verdade sobre si mesmo e, aderindo a ela, torna-se livre (cf. Jo 8, 22)” (1).
Parece-me muito importante esta articulação da caridade com a verdade (da pessoa). Caridade não pode ser só amar a(s) pessoa(s) de qualquer maneira. Temos de amar as pessoas na sua verdade, isto é, naquilo que elas são chamadas a ser de acordo com o projecto que lhes compete. Olhar a caridade desta perspectiva é perceber que não se pode amar sempre da mesma maneira. Na catequese aprendemos que devemos amar a todos, mas talvez ninguém nos diga que devemos amar a todos... mas segundo as suas diferentes maneiras e circunstâncias. O cristianismo resume-se ao amor, todos o dizem. Mas como amar, hoje, na família, no trabalho, na política, no lúdico, na luta pela justiça, na solidariedade com os mais necessitados? Em cada um destes casos, o amor terá de ser vivido de modos diferentes, deverá ser vivido respeitando as palavras do Papa: caridade na verdade.
Esta afirmação de Bento XVI torna-se particularmente oportuna, porque amar é uma atitude muito mais complexa do que nos parece, pois tem de começar por responder a uma pergunta tão simples como dramaticamente comprometedora: “Como vou amar esta pessoa (ou este povo) concreta nestas suas circunstâncias concretas?”

2009-08-15

CinV (12) Esquema (4)

Capítulo VI – O desenvolvimento dos povos e a técnica (68-77)
O desenvolvimento degenera-se “se a Humanidade pensa que pode re-criar valendo-se dos ‘prodígios’ da tecnologia” e "o progresso económico revela-se fictício e danoso quando se abandona aos ‘prodígios’ das finanças” (68).
Embora “a técnica seja um dado profundamente humano, ligado à autonomia e à liberdade do homem (porque) nela se exprime e confirma o domínio do espírito sobre a matéria” (69), pode dar origem a uma “mentalidade tecnicista que faz coincidir a verdade com o factível. Mas, quando o único critério da verdade é a eficiência e a utilidade, o desenvolvimento acaba automaticamente negado. De facto, o verdadeiro desenvolvimento não consiste primariamente no fazer; a chave do desenvolvimento é uma inteligência capaz de pensar a técnica e de individualizar o sentido plenamente humano do agir do homem, no horizonte de sentido da pessoa vista na globalidade do seu ser” (70).
“A técnica seduz intensamente o homem, porque o livra das limitações físicas e alarga o seu horizonte” (70). Por isso desvia-o do verdadeiro desenvolvimento, caindo na:
- tecnicização do desenvolvimento, transformando-o num “problema de engenharia financeira, de abertura dos mercados, de redução das tarifas aduaneiras, de investimentos produtivos, de reformas institucionais; em suma, um problema apenas técnico"; contudo, “o desenvolvimento é impossível sem homens rectos, sem operadores económicos e homens políticos que sintam intensamente em suas consciências o apelo do bem comum. São necessárias tanto a preparação profissional como a coerência moral”(71);
- tecnicização da paz, que “corre o risco de ser considerada como uma produção técnica, fruto apenas de acordos entre governos ou de iniciativas tendentes a assegurar ajudas económicas eficientes”; mas “para que tais esforços possam produzir efeitos duradouros, é necessário que se apoiem sobre valores radicados na verdade da vida” (72).
O espírito mecanicista pode também marcar profundamente os meios de comunicação social (73) bem com a bioética, “um âmbito delicadíssimo e decisivo, onde irrompe, com dramática intensidade, a questão fundamental de saber se o homem se produziu por si mesmo ou depende de Deus” (74), não só no que se refere ao aborto e a eutanásia, mas sobretudo à neurociência, ao “considerar os problemas e as moções ligados à vida interior somente do ponto de vista psicológico, chegando-se mesmo ao reducionismo neurológico. Assim esvazia-se a interioridade do homem e, progressivamente, vai-se perdendo a noção da consistência ontológica da alma humana” (76).
A superação do absolutismo da técnica “requer olhos novos e um coração novo, capaz de superar a visão materialista dos acontecimentos humanos e entrever no desenvolvimento um «mais além» que a técnica não pode dar. Por este caminho, será possível perseguir aquele desenvolvimento humano integral que tem o seu critério orientador na força propulsora da caridade na verdade” (77).

A Conclusão (78-79) estimula-nos a que a vastidão do trabalho a realizar não nos leve ao desânimo, mas seja antes um incentivo a “dedicar-nos com generosidade ao compromisso de realizar o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens”.

Por este rápido apanhado pode fazer-se ideia dos inúmeros problemas que o Papa trata no contexto das dificuldades actuais.
É altura de começar a aprofundar alguns deles. As dificuldades em entrar no blog nos locais por onde tenho andado poderão atrasar essa reflexão, mas não a adiarão indefinidamente.

2009-08-12

CinV (11) Esquema (3)

Capítulo IV – Desenvolvimento dos povos, Direitos e Deveres, Ambiente (43-52)
A exasperação dos direitos desemboca no esquecimento dos deveres. Daí que se verifique “uma relação entre a reivindicação do direito ao supérfluo, se não mesmo à transgressão e ao vício, nas sociedades opulentas e a falta de alimento, água potável, instrução básica, cuidados médicos elementares em certas regiões do mundo do subdesenvolvimento e também nas periferias de grandes metrópoles” (43).
A economia tem necessidade da ética para o seu correcto funcionamento; não de uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa”, que deve assentar em dois pilares: a dignidade inviolável da pessoa e o valor transcendente das normas morais. Daí “a necessidade de trabalhar não só para que nasçam sectores ou segmentos «éticos» da economia ou das finanças, mas também para que toda a economia e as finanças sejam éticas” (45).
A centralidade da pessoa obriga a que as ajudas internacionais não se debilitem com “dispendiosas organizações burocráticas” (47), a reconhecer o respeito pela natureza como uma vocação sem a considerar como mais importante que a pessoa (48), a “sentir como gravíssimo o dever de entregar a terra às novas gerações num estado tal que também elas possam dignamente habitá-la e continuar a cultivá-la” (50).
Isto só é possível com um novo estilo de vida, uma “real mudança de mentalidade que nos induza a adoptar novos estilos de vida, nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom e a comunhão com os outros homens para um crescimento comum sejam os elementos que determinam as opções dos consumos, das poupanças e dos investimentos” (51).

O Capítulo V (53-67) trata da “colaboração da família humana”.
Já que somos uma única família, devemos praticar:
- a solidariedade que signifique “a inclusão de todas as pessoas e de todos os povos” (54) e na qual “a relação seja um elemento essencial” dada a diversidade das culturas e dos percursos religiosos;
- o diálogo fecundo entre a fé e a razão (57);
- a subsidiariedade, como “o antídoto mais eficaz contra toda a forma de assistencialismo paternalista” nas ajudas internacionais e como “um princípio particularmente idóneo para governar a globalização e orientá-la para um verdadeiro desenvolvimento humano” (57);
- a cooperação não só económica mas também cultural e humana (59).

As soluções para a actual crise económica passam:
- pela ajuda ao desenvolvimento dos países pobres (60);
- um maior acesso à educação, entendida “não apenas como instrução escolar ou formação para o trabalho — ambas, causas importantes de desenvolvimento — mas como formação completa da pessoa”;
- o turismo, que não se reduza a uma mera “ocasião de exploração e degradação moral” (61);
- uma adequada resposta ao problema das migrações” (62);
- o reconhecimento do “nexo directo entre pobreza e desemprego. Em muitos casos, os pobres são o resultado da violação da dignidade do trabalho humano, seja porque as suas possibilidades são limitadas (desemprego, subemprego), seja porque são desvalorizados os direitos que dele brotam, especialmente o direito ao justo salário, à segurança da pessoa do trabalhador e da sua família”, pelo que Bento XVI apoia a OIT na sua defesa de um “trabalho decente” (63) e as organizações sindicais, chamadas a “abrirem-se às novas perspectivas que surgem no âmbito laboral” (64);
- umas finanças que “voltem a ser um instrumento que tenha em vista a melhor produção de riqueza e o desenvolvimento”: “recta intenção, transparência e busca de bons resultados são compatíveis entre si e não devem jamais ser separados” (65).

Esta ajuda passa por duas condições:
- o enquadramento de “um novo poder político: o dos consumidores e das suas associações… É bom que as pessoas ganhem consciência de que a acção de comprar é sempre um acto moral, para além de económico. Por isso, ao lado da responsabilidade social da empresa, há uma específica responsabilidade social do consumidor”, que deve ser educado, sem cessar, para essa responsabilidade (66);
- “a urgência de uma reforma quer da ONU quer da arquitectura económica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações e a urgência de encontrar formas inovadoras para actuar o princípio da responsabilidade de proteger e para atribuir também às nações mais pobres uma voz eficaz nas decisões comuns” (67).

2009-08-10

CinV (10) Esquema (2)

O capítulo III (34-42) procura entrelaçar, como diz o título, “fraternidade, desenvolvimento económico e sociedade civil”.
Parte da “caridade como dom” e da “unidade do género humano, uma comunhão fraterna para além de qualquer divisão” (34). Embora a fraternidade seja uma palavra presente em toda a encíclica, aqui Bento XVI procura apontar algumas das suas exigências e condições.

Apresenta a gratuidade como expressão da fraternidade, associando-a à lógica do dom, que opõe à lógica mercantilista ou contratual: “O grande desafio que temos diante de nós… é mostrar, a nível tanto do pensamento como do comportamento, que não só não podem ser transcurados ou atenuados os princípios tradicionais da ética social, como a transparência, a honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal” (36). É que “o desenvolvimento económico, social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, deve dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade” (34).

A justiça que “diz respeito a todas as fases da actividade económica, porque esta sempre tem a ver com o homem e com as suas exigências. A angariação dos recursos, os financiamentos, a produção, o consumo e todas as outras fases do ciclo económico têm inevitavelmente implicações morais. Deste modo cada decisão económica tem consequências de carácter moral” (37).

O modo de conceber a empresa requer profundas mudanças (40):
- assumindo uma mais ampla responsabilidade social: " a gestão da empresa não pode ter em conta unicamente os interesses dos proprietários da mesma, mas deve preocupar-se também com as outras diversas categorias de sujeitos que contribuem para a vida da empresa: os trabalhadores, os clientes, os fornecedores dos vários factores de produção, a comunidade de referência";
- respondendo adequadamente à deslocalização de modo a não "atenuar no empresário o sentido da responsabilidade para com os interessados, como os trabalhadores, os fornecedores, os consumidores, o ambiente natural e a sociedade circundante mais ampla, em benefício dos accionistas, que não estão ligados a um espaço específico, gozando por isso duma extraordinária mobilidade”;
- desenvolvendo um novo espírito empresarial (41): “Nos últimos anos, notou-se o crescimento de uma classe cosmopolita de gerentes, que muitas vezes respondem só às indicações dos accionistas da empresa constituídos geralmente por fundos anónimos que estabelecem de facto as suas remunerações. Todavia, hoje, há também muitos gerentes que, através de análises clarividentes, se dão conta cada vez mais dos profundos laços que a sua empresa tem com o território ou territórios, onde opera” (40).

Para “a realização de uma nova ordem económica responsável social e à medida da pessoa” (41) exige-se:
- a existência de uma “autoridade política” mundial, “uma autoridade política repartida e activa a vários níveis. A economia integrada dos nossos dias não elimina a função dos Estados, antes obriga os governos a uma colaboração recíproca mais intensa. Razões de sabedoria e prudência sugerem que não se proclame depressa demais o fim do Estado; relativamente à solução da crise actual, a sua função parece destinada a crescer, readquirindo muitas das suas competências” (41);
- um modo diferente de olhar a globalização, que apesar de ambígua, “provem da unidade da família humana e do seu desenvolvimento no bem”: “A globalização a priori não é boa nem má. Será aquilo que as pessoas fizerem dela. Não devemos ser vítimas dela, mas protagonistas, actuando com bom senso, guiados pela caridade e a verdade. Opor-se-lhe cegamente seria uma atitude errada, fruto de preconceito, que acabaria por ignorar um processo marcado também por aspectos positivos, com o risco de perder uma grande ocasião de se inserir nas múltiplas oportunidades de desenvolvimento por ele oferecidas” (42).

2009-08-09

CinV (9) Esquema da encíclica

A encíclica Caritas in veritate consta de uma Introdução, sete capítulos e uma curta Conclusão.

A Introdução (1-9) explica e justifica o título: caridade na verdade. Uma expressão, tão pouco habitual e certamente da paternidade de Bento XVI, necessita de uma explicitação clara: “A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade… Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente. A verdade liberta a caridade dos estrangulamentos do emotivismo, que a despoja de conteúdos relacionais e sociais, e do fideísmo, que a priva de amplitude humana e universal” (3).

O Capítulo I (10-20) é dedicado a uma leitura actual da mensagem da Populorum Progressio de Paulo VI: “Dizer que o desenvolvimento é vocação (cf PP 42) equivale a reconhecer, por um lado, que o mesmo nasce de um apelo transcendente e, por outro, que é incapaz por si mesmo de se atribuir o próprio significado último” (16). Por isso, exige´:
- liberdade, uma “resposta livre e responsável. O desenvolvimento humano integral supõe a liberdade responsável da pessoa e dos povos: nenhuma estrutura pode garantir tal desenvolvimento, prescindindo e sobrepondo-se à responsabilidade humana” (17);
- verdade, enquanto capacidade para “afirmar e justificar o valor incondicional da pessoa humana e o sentido do seu crescimento… sem olhar a privilégios nem posições de poder nem mesmo aos méritos dos cristãos” (18);
- caridade, pois uma “sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade” (19).

O Capitulo II (21-33) olha para “o desenvolvimento humano no nosso tempo”.
Reconhece que “actualmente o quadro do desenvolvimento é policêntrico” fazendo uma análise detalha dos múltiplos actores e causas e das culpas e méritos diferenciados (22). De qualquer modo, “o desenvolvimento de todo o homem e dos homens todos” supõe o “imperativo ético de dar de comer aos famintos” (27) e de “perseguir como prioritário o objectivo do acesso ao trabalho para todos, ou da sua manutenção” (32). Destaca que “a novidade principal foi a explosão da interdependência mundial, já conhecida comummente por globalização… Contudo, sem a guia da caridade na verdade, este ímpeto mundial pode concorrer para criar riscos de danos até agora desconhecidos e de novas divisões na família humana. Por isso, a caridade e a verdade colocam diante de nós um compromisso inédito e criativo, sem dúvida muito vasto e complexo. Trata-se de dilatar a razão e torná-la capaz de conhecer e orientar estas novas e imponentes dinâmicas, animando-as na perspectiva daquela «civilização do amor», cuja semente Deus colocou em todo o povo e cultura” (33).

2009-08-07

CinV (8) Desenvolvimento

Este é um conceito recente na reflexão do Magistério. E na fase inicial a atenção dirigia-se ao desenvolviento económico.
Mas João XXIII dedica já algumas linhas dispersas ao Desenvolvimento, relacionando-o com o bem comum (“uma concepção exacta do bem comum compreende o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem nos homens o desenvolvimento integral da personalidade”: PT 65) e afirmando o "direito ao desenvolvimento" por parte das comunidades (PT 92).
O Sínodo de 1971 insiste no direito ao desenvolvimento (JM 15) que, para poder ser traduzido na prática é preciso que (JM 72):
a) não se impeça aos povos o atingirem o desenvolvimento em conformidade com os seus traços culturais próprios:
b) através de uma cooperaçã,o mútua, possam todos os povos tornar-se os principais artífices do próprio desenvolvimento económico e social;
c) todo e qualquer povo, como membro activo e responsável da sociedade humana, possa cooperar na consecução do bem comum, com os mesmos direitos que todos os demais povos.

Mas o primeiro e grande documento que trata de forma sistemática e aprofundada o desenvolvimento dos povos é, como já referi e a ele voltaremos, a encíclica PP, que afirma que
- deve ser integral e solidário, isto é, «para todos e para cada um, na passagem de condições menos humanas a condições mais humanas» (PP 21);
- «é o novo nome da paz» (PP 87);
- implica um conjunto de deveres: «o dever de solidariedade, ou seja, o auxílio que as nações ricas devem prestar aos países em vias de desenvolvimento; o dever de justiça social, isto é, a rectificação das relações internacionais entre povos fortes e povos fracos e o dever de caridade universal, quer dizer, a promoção para todos de um mundo mais humano (...) sem que o progresso de uns seja obstáculo ao desenvolvimento dos outros» (PP 44).

João Paulo II, que introduz uma forte fundamentação bíblica na DSI, aprofunda a teologia do progresso na encíclica Sollicitudo Rei Socialis (30.Dez.1987), nos 20 anos da PP, desenvolvendo as seguintes dimensões (28-32):
- bíblica: o progresso é a continuação da obra criadora de Deus;
- cristológica: o progresso só é ilimitado enquanto se destina a recapitular tudo em Cristo ressuscitado;
- eclesiológica: a Igreja deve contribuir para o desenvolvimento com a sua visão positiva da história e do trabalho e a sua opção pelos mais pobres;
- universal: é um imperativo comum de todos estar ao serviço de um desenvolvimento integral: a promoção dos direitos humanos (33), um maior respeito pela natureza e uma crescente consciência da limitação dos recursos naturais (34).

Bento XVI veio actualizar o conceito de desenvolvimento para os nossos dias, partindo das afirmações dos seus antecessores, aprofundando-as e adaptando-as às novas realidades.

Depois desta introdução, que prolonguei por vários dias, é tempo de começar a olhar para a encíclica Caritas in Veritate.

2009-08-06

CinV (7) Doutrina Social da Igreja

Bento XVI exemplifica bem nesta encíclica a característica dinâmica da DSI, que podíamos resumir como evolução na continuidade: “por um lado, é constante, porque se mantém idêntica na sua inspiração fundamental, nos seus "princípios de reflexão", nos seus "critérios de julgamento", nas suas basilares "directrizes de acção" e, sobretudo, na sua ligação vital ao Evangelho do Senhor; por outro lado, é sempre nova, dado que está sujeita às necessárias e oportunas adaptações, sugeridas pela mudança das condições históricas e pelo incessante fluir dos acontecimentos, em que se desenrola a vida dos homens e das sociedades” (SRS 3).
Evolução, porque está sempre atenta aos novos problema: “a doutrina social da Igreja ilumina, com uma luz imutável, os problemas novos que vão aparecendo” (CinV 13). Bento XVI usa e abusa do adjectivo “novo”: “novas exigências de evangelização” (13), “uma nova síntese humanista” (21), “novas responsabilidades” (21), “regras novas” (21), “novas categorias sociais” (22), “nova planificação global” (23), “novas formas de participação” (24), “novas sinergias” (25), “novas perspectivas” (26; 64), “novas soluções” (32), “novas formas de empresa” (47), de “financiamento” (65) e de “comercialização” (66), “novas energias” (78).
Mas também continuidade, porque assenta nas verdades perenes e eternas do Evangelho: “O Evangelho é elemento fundamental do desenvolvimento, porque lá Cristo, com a própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo” (18).

Por exemplo, a propriedade foi sendo tratada como direito fundamental primário (RN e QA), como “secundário” porque deve estar subordinada ao destino universal dos bens (Pio XII). Com João XXIII a propriedade dá prioridade ao trabalho na enumeração dos grandes problemas do nosso tempo. João Paulo fala de uma nova forma de propriedade: “a propriedade do conhecimento, da técnica e do saber. A riqueza das nações industrializadas funda-se muito mais sobre este tipo de propriedade do que sobre a dos recursos naturais” (CA 32). E Bento XVI explicita melhor, avançando um pouco mais: “o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade: «com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social» (GS 63)” (25). E insiste: “o maior recurso a valorizar nos países que são assistidos no desenvolvimento é o recurso humano: este é o autêntico capital que se há-de fazer crescer para assegurar aos países mais pobres um verdadeiro futuro autónomo” (58).

Até a própria natureza da DSI foi evoluindo, apesar da resistência do Magistério em aceitar descontinuidades, como o faz Bento XVI: "Não existem duas tipologias de doutrina social — uma pré-conciliar e outra pós-conciliar —, diversas entre si, mas um único ensinamento, coerente e simultaneamente sempre novo" (12). De qualquer modo aqui fica uma pequena "história":
- 1) a fase da “terceira via” entre o capitalismo e o marxismo (Leão XIII até Pio XII);
- 2) uma fase de transição, que corresponde à grande viragem do Concílio, em que João XXIII a apresenta como alternativa às falsas ideologias (MM 218-220), distinguindo entre ideologias e partidos (PT 159), portanto acima dos partidos; e em que Paulo VI a num plano superior ao das ideologias (OA 26);
- 3) a fase de "um instrumento de evangelização" e de recusa clara da terceira via: “a DSI não é uma terceira via… Pertence não ao domínio da ideologia, mas da teologia e especialmente da teologia moral” (SRS 41). Por isso, “para a Igreja, ensinar e difundir a doutrina social pertence à sua missão evangelizadora e faz parte essencial da mensagem cristã, porque essa doutrina propõe as suas consequências directas na vida da sociedade e enquadra o trabalho diário e as lutas pela justiça no testemunho de Cristo Salvador” (CA 5).
“Daqui resulta que a doutrina social, por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização: enquanto tal, anuncia Deus e o mistério da salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo. A esta luz, e somente nela, se ocupa do resto: dos direitos humanos de cada um e, em particular, do “proletariado”, da família e da educação, dos deveres do Estado, do ordenamento da sociedade nacional e internacional, da vida económica, da cultura, da guerra e da paz, do respeito pela vida desde o momento da concepção até à morte” (CA 54).

Na altura própria indicarei as afirmações sobre a DSI que Bento XVI vai fazendo nesta encíclica.

2009-08-05

CinV (6) Humanae vitae

O texto final da GS de onde fiz ontem as citações foi objecto de uma dos debates mais tensos e dramáticos do Concílio: a “minoria”, ligada à Cúria, queria inclur a condenação explícita dos métodos contraceptivos não naturais; a “maioria” achava que este era um assunto em aberto e que ficar no texto acabava com futuras reflexões. O próprio Paulo VI entrou no debate:
1) Já tinha nomeado uma Comissão para discutir o tema retirando-o ao Concílio: recentemente, o cardeal Carlo Martini reconheceu que o facto de Paulo VI ter subtraído o tema aos Padres conciliares, para assumir "a solidão da decisão" de modo totalmente pessoal, "não foi um bom pressuposto".
2) Entregou quatro modi (sugestões) sobre este assunto. O debate inflamou-se porque não se sabia se estes modi eram imposições do Papa ou sugestões como a de qualquer Padre conciliar. Depois de intensas negociações, o Papa esclareceu que eram apenas sugestões. E a maioria não as aceitou de todo.

Acabado o Concílio, Paulo VI publica a HV, ignorando as conclusões da Comissão que ele próprio criara para o efeito. Começa numa perspectiva antropológica, definindo o amor conjugal como um “amor plenamente humano, total, fiel e exclusivo e fecundo” (HV 9).
Mas, logo a seguir passa para o acto sexual e cita a Casti connubii: “a Igreja ensina que qualquer acro matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida” (HV 11) e sintetiza que o “acto conjugal tem dois significados: unitivo e procriativo” (HV 12). E continua defendendo a “licitude do recurso aos períodos infecundos” (HV 16). Aqui parece-me haver uma incoerência: se todo o acto sexual deve ser aberto à vida, como pode ser legítimo numa altura em que a mulher não está aberta à vida (concepção)? Por outro lado, tornar o acto sexual apenas procriativo não é reduzi-lo à exclusiva função de ter filhos (uma ideia não bíblica, mas importada da filosofia estóica) esquecendo o seu contributo para manter a fidelidade conjugal (cf. GS 51)?
Efectivamente “o equívoco da encíclica é a sua concepção de uma natureza fixa e imóvel, centrada na biologia. Ora, por um lado, a sexualidade humana não se reduz à biologia, pois tem de integrar múltiplas dimensões - a biologia, a afectividade, a ternura, o amor, o espírito - e, por outro, a ética não tem um fundamento naturalista e biologista” (A. Borges).
Por isso, a sua publicação foi um retrocesso relativamente ao Concílio e uma grande decepção. A Igreja perdeu credibilidade junto da sociedade, pois não foi capaz de iluminar os tempos novos com a palavra libertadora do Evangelho. Os próprios cristãos também perderam a sua confiança no Magistério que afinal só ouve quem diz o que quer ouvir e não está atento aos problemas do seu tempo deixando os cristãos perante o dilema: ou angustiar-se com graves problemas de consciência ou pura e simplesmente ignorar a palavra do magistério. E quem ignora uma palavra pode ignorar duas, três, quatro, etc…
Paulo VI sofreu muito também: depois da HV não voltou a publicar mais nenhuma encíclica!

A Igreja tem a obrigação inalienável de propor e defender os valores fundamentais mas deve ser capaz de estar aberta e ter uma palavra lúcida e esclarecedora em cada época (cf GS 4), especialmente neste assunto com que sempre lidou (tão) mal ao longo de toda a história.

Talvez porque estes temas são pensados e normatizados por celibatários, que não se preocupam em ouvir os que sofrem na pele as suas decisões. Aqui deixo as palavras proferidas, a este propósito, pelo Patriarca Maximus IV, no Concílio. “Não estamos nós no direito de nos perguntarmos se certas posições oficiais não são tributárias de concepções ultrapassadas e, talvez, também, de uma psicose de celibatários estranhos a este sector da vida? Não estamos nós, sem o querer, sob o peso daquela concepção maniqueísta do homem e do mundo, segundo a qual a obra da carne, viciada em si mesma, só é tolerada com vista aos filhos? A rectidão biológica externa dos actos será o único critério da moralidade, independentemente da vida do lar, do seu clima moral, conjugal e familiar e dos imperativos graves da prudência, regra de base de toda a nossa actividade humana? Por outro lado, a exegese de hoje não nos concita a uma maior prudência na interpretação de duas passagens do Génesis: “crescei e multiplicai-vos” e a de Onan, por tanto tempo utilizadas como testemunhos escriturísticos clássicos de reprovação radical da contracepção?” (CXII Congregação Geral, 29.Out.1964).

2009-08-04

CinV (5) Homenagem a Paulo VI: Humanae Vitae

Bento XVI fala com algum entusiasmo desta encíclica: “Não se trata de uma moral meramente individual: a Humanæ vitae indica os fortes laços existentes entre ética da vida e ética social, inaugurando uma temática do Magistério que aos poucos foi tomando corpo em vários documentos, sendo o mais recente a encíclica Evangelium vitae de João Paulo II” (15). Não percebi bem esta de inaugurar uma nova etapa, até porque a HV retoma, pelo menos, a parte mais polémica da encíclica Casti Conubii (31.Dez.1930) de Pio XI, escrita (também) para comemorar os 50 anos da encíclica Arcanum (10.Fev.1880) de Leão XIII, o primeiro grande documento pontifício totalmente dedicado ao “matrimónio cristão”. O próprio Paulo VI fala desta “doutrina, muitas vezes exposta pelo Magistério” (HV 12).

Enquanto os três documentos referidos anteriormente ( PP, OA, EN) foram marcos fundamentais para fazer o aggiornamento da Igreja na linha do Vaticano II, a HV (25.Junho.1968) foi um verdadeiro terramoto.
Vale a pena recordar um puco do seu contexto histórico: Maio de 68, com a sua “imaginação ao poder” e a contestação a tudo o que fosse institucional; o assassinato de Luther King, um indefectível defensor dos direitos humanos; a "Primavera de Praga", esmagada pela invasão da União Soviética; a descoberta da pílula, que tornava a mulher “dona do seu corpo”; uma profunda revolução sexual em curso; a busca de modelos alternativos sintetizada no célebre slogan: "Make love, not war".
Num contexto tão efervescente, de busca apaixonada por uma sociedade nova, de mutações profundas, esperava-se da Igreja uma palavra serena, que apontasse caminhos novos e não se limitasse a jogar à defesa, como parece ter-se tornado um hábito quando se fala de sexualidade humana.
E tudo parecia bem encaminhado com a reflexão dos Padres conciliares, que, esses sim, introduziram uma viragem significativa, ao analisar os problemas do casamento, da família e do amor conjugal numa perspectiva antropológica e não meramente biológica, como pode ver-se GS 47-52, donde retiro três citações:
- este texto "inédito" sobre o amor conjugal: “Unindo o humano e o divino, esse amor leva os esposos ao livre e recíproco dom de si mesmos, que se manifesta com a ternura do afecto e, com as obras, e penetra toda a sua vida; mais ainda, cresce e aperfeiçoa-se pelo seu generoso exercício” (GS 49);
- outro sobre a paternidade consciente e responsável: “No dever que lhes cabe de transmitir a vida e de serem os educadores - o que se deve considerar como a sua missão -, os esposos sabem que são os cooperadores do amor de Deus Criador e como que os seus intérpretes. Cumprirão pois a sua missão com uma responsabilidade humana e cristã e, num dócil respeito para com Deus, num comum acordo e num comum esforço, formarão um juízo recto, atendendo tanto ao bem próprio como ao dos filhos já nascidos ou a nascer, discernindo as condições quer materiais quer espirituais da sua época e da sua situação e, por último, considerando o bem da comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja. São os esposos quem, em última instância, devem perante tomar esta decisão perante Deus” (GS 50);
- outro ainda que prima pela delicadeza com que reconhecem a fidelidade pode correr perigo se não houver uma maneira nova de olhar para o casal: “O Concílio sabe que os esposos, querendo ordenar harmoniosamente a sua vida conjugal, são frequentemente contrariados, em nossos dias, por certas condições de vida e podem encontrar-se numa situação em que o número de filhos, pelo menos por um tempo, não pode aumentar e em que a prática de um amor fiel e a plena comunidade de vida se mantém com muitas dificuldades. Quando a intimidade conjugal se rompe, pode correr perigo a fidelidade e estar comprometido o bem dos filhos: neste caso, estão em perigo a educação dos filhos e a coragem para aceitar os que vierem ulteriormente.” (GS 51).

Este caminho não agradava à Cúria romana. Esta não é uma afirmação gratuita, como revela o episódio contado por Häring. Na qualidade de perito conciliar, defendeu que o esquema sobre o matrimónio devia basear-se no amor fecundo e autêntico, tendo sido prontamente contestado pelo P.e F. X. Hurth, que no intervalo dos trabalhos lhe deu a seguinte explicação: "Aquando da preparação da Casti Connubii, tive de lutar um dia inteiro para dissuadir Pio XI de sustentar a mesma ideia que o senhor defendeu hoje sobre o amor, porque não a julgava oportuna". Seguidamente, Häring recorda que este padre foi o moralista de Pio XI e Pio XII (in A Igreja que eu amo, p. 24).
Assim sendo, era necessário pôr-lhe fim.

2009-08-03

CinV (4) Homenagem a Paulo VI: Evangelii Nuntiandi

Bento XVI destaca desta Exortação apostólica duas ideias (15):
- a relação íntima entre a evangelização e a vida do dia a dia (EN 29) e
- os laços profundos entre a evangelização e a promoção humana que para Paulo VI são de três ordens: antropológica (“o homem que há de ser evangelizado não é um ser abstracto, mas é sim um ser condicionado pelo conjunto dos problemas sociais e económicos”); teológica (“não se pode nunca dissociar o plano da criação do plano da redenção, um e outro a abrangerem as situações bem concretas da injustiça que há de ser combatida e da justiça a ser restaurada”) e evangélica (que é da “ordem da caridade: como se poderia, realmente, proclamar o mandamento novo sem promover na justiça e na paz o verdadeiro e o autêntico progresso do homem?”) (31).

A EN (8.Dez.1975), publicada na sequência do Sínodo sobre a Evangelização, é ainda hoje um documento indispensável para compreender e realizar uma autêntica evangelização do mundo actual.
A evangelização implica três aspectos essenciais:
- a renovação interior da humanidade: “A finalidade da evangelização, portanto, é precisamente esta mudança interior; e se fosse necessário traduzir isso em breves termos, o mais exacto seria dizer que a Igreja evangeliza quando, unicamente firmada na potência divina da mensagem que proclama, ela procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e colectiva dos homens, a actividade em que eles se aplicam, e a vida e o meio concreto que lhes são próprios.” (18);
- a transformação dos critérios e estilos de vida: “para a Igreja não se trata tanto de pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou populações maiores em dimensões de massa, mas de chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação”(19);
- uma conversão radical: “importa evangelizar, não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade e isto até às suas raízes, a civilização e as culturas do homem”, numa verdadeira inculturação, pois “o Evangelho e a evangelização, independentes em relação às culturas, não são necessariamente incompatíveis com elas, mas susceptíveis de as impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma delas”. Por isso, conclui Paulo VI, "a ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas" (20).

Paulo VI apresnta os meios mais adequados à evangelização: o testemunho de vida (19; 41), o anúncio explícito (22) feito de uma forma uma viva e atraente (42-43) e a adesão vital numa comunidade eclesial (23). Note-se a prioridade dada ao testemunho.

Assim sendo, a evangelização é um processo muito complexo, de que não tomámos ainda verdadeira consciência: “A evangelização, por tudo o que dissemos, é uma diligência complexa, em que há variados elementos: renovação da humanidade, testemunho, anúncio explícito, adesão do coração, entrada na comunidade, aceitação dos sinais e iniciativas de apostolado” (24).
É, por isso, que "as técnicas da evangelização são boas, obviamente; mas, ainda as mais aperfeiçoadas não poderiam substituir a ação discreta do Espírito Santo. A preparação mais apurada do evangelizador nada faz sem ele. De igual modo, a dialética mais convincente, sem ele, permanece impotente em relação ao espírito dos homens. E, ainda, os mais bem elaborados esquemas com base sociológica e psicológica, sem ele, em breve se demonstram desprovidos de valor", porque " o Espírito Santo é o agente principal da evangelização: é ele, efectivamente que impele para anunciar o Evangelho, como é ele que no mais íntimo das consciências leva a aceitar a Palavra da salvação. Mas pode dizer-se igualmente que ele é o termo da evangelização: de fato, somente ele suscita a nova criação, a humanidade nova que a evangelização há de ter como objetivo" (75).

Bento XVI recupera aqui, sem o citar, uma ideia-chave do Sínodo de 1971: “a relação entre o anúncio de Cristo e a promoção da pessoa na sociedade. O testemunho da caridade de Cristo através de obras de justiça, paz e desenvolvimento faz parte da evangelização, pois a Jesus Cristo, que nos ama, interessa o homem inteiro” (15).
O Sínodo proclamou: “A acção pela justiça é uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho” (JM 6). Mas a esta afirmação voltarei quando reflectir sobre a justiça.

2009-08-01

CinV (3) Homenagem a Paulo VI: Octogesima Adveniens

Bento XVI faz referência a mais três documentos de Paulo VI.
A Carta Apostólica Octogesima Adveniens (15.Maio.1971), que comemora os 80 anos da Rerum Novarum, trata sobretudo do compromisso sócio-político dos cristãos. Analisa as várias ideologias: as correntes socialistas (31), a marxista (32-34) e a liberal (35), que exigem um exigente discernimento cristão (36). Aborda o renascimento das utopias com as suas virtualidades e os seus riscos (37).
Porque insiste na ambivalência do progresso que “se tornou uma ideologia omnipresente” (41), Bento XVI destaca sobretudo a ideologia tecnocrática (CinV 8): mais à frente analizará as consequências da "mentalidade tecnicista" (70) e da "tecnicização do desenvolvimento e da paz" (71-72). Paulo VI não utilize a palavra propriamente a palavra ideologia, mas a ideia está lá: “É certo que as alternativas propostas à decisão são cada vez mais complexas; as considerações a ter em conta são múltiplas e a previsão das consequências é aleatória, se bem que ciências novas se esforcem por iluminar a liberdade nestes momentos importantes. No entanto, apesar das limitações que por vezes se impõem, estes obstáculos não devem reprimir uma difusão maior na comparticipação, na elaboração das decisões, na sua escolha e no pô-las em prática. Para contrabalançar uma tecnocracia crescente, torna-se necessário criar formas de democracia moderna, que não somente proporcionem a cada homem a possibilidade de informar-se e de exprimir-se, mas também que o levem a comprometer-se numa responsabilidade comum” (47). Por isso, continua Paulo VI, “seria bom que cada um procurasse examinar-se, para ver o que é que já fez até agora e aquilo que deveria fazer. Não basta recordar os princípios, afirmar as intenções, fazer notar as injustiças gritantes e proferir denúncias proféticas; estas palavras ficarão sem efeito real, se elas não forem acompanhadas, para cada um em particular, de uma tomada de consciência mais viva da sua própria responsabilidade e de uma acção efectiva. E por demais fácil atirar sobre os outros a responsabilidade das injustiças sem se dar conta ao mesmo tempo de como se tem parte nela, e de como, antes de tudo o mais, é necessária a conversão pessoal” (48).
Gostaria ainda de referir duas passagens pouco citadas desta Carta de Paulo VI:
- “Perante situações, assim tão diversificadas, torna-se-nos difícil tanto o pronunciar uma palavra única, como o propor uma solução que tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição nossa, nem mesmo a nossa missão. É às comunidades cristãs que cabe analisar, com objectividade, a situação própria do seu país e procurar iluminá-la, com a luz das palavras inalteráveis do Evangelho; a elas cumpre, haurir princípios de reflexão, normas para julgar e directrizes para a acção, na doutrina social da Igreja… A essas comunidades cristãs incumbe discernir, com a ajuda do Espírito Santo em comunhão com os bispos responsáveis e em diálogo com os outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade - as opções e os compromissos que convém tomar, para realizar as transformações sociais, políticas e económicas que se apresentam como necessárias e urgentes, em não poucos casos” (4). Por esta frase se diz que esta Carta é a carta de cidadania ou de maioridade dos cristãos e das suas comunidades. O Papa não tem uma palavra única perante as circunstâncias tão diversificadas, nem sequer é essa a sua missão. É pena ser tão ignorada das comunidades cristãs e tão pouco citada pelo Magistério. Admitir que o Papa não tem uma “palavra única” não encaixa bem nas certezas curiais do Vaticano!
- “Nas diferentes situações concretas e tendo presentes as solidariedades vividas por cada um, é necessário reconhecer uma variedade legítima de opções possíveis. Uma mesma fé cristã pode levar a assumir compromissos diferentes” (50). Este pluralismo sócio-político não é um mal para os cristãos mas um bem que só enriquece o Povo de Deus e a própria sociedade. O tempo da cristandade e do “rebanho de Deus” já devia ter passado. Aliás João Paulo II diz o mesmo por outras palavras: “A Igreja não tem soluções técnicas que possa oferecer (...). Com efeito, ela não propõe sistemas ou programas económicos e políticos, nem manifesta preferências por uns ou por outros, contanto que a dignidade do homem seja devidamente respeitada e promovida e a ela própria seja deixado o espaço necessário para desempenhar o seu ministério no mundo” (SRS 41).