Retomando o nosso tema, intrusado (de intrusão) pela
reflexão sobre Bento XVI. A pergunta sobre o mal ou sobre o sofrimento é universal. É uma questão a quem ninguém pode fugir. Todos se perguntam pelo
mal. E de resposta em resposta não podemos deixar de nos confrontar com a
pergunta última: Porquê um mundo em que inexoravelmente todos sofrem?
Contudo os crentes são mais interpelados. O
crente defronta-se com a pergunta do mal de modo mais complexo. Complexidade
que pode sintetizar-se no célebre dilema de Epicuro:
-
Deus quer mas não pode (tirar o mal do mundo): não é omnipotente;
-
Deus pode mas não quer: não nos ama;
-
Deus não quer e não pode: não é omnipotente;
-
Deus pode e quer: então por que não elimina o mal?
Trata-se de um dilema cuja lógica é forte e
contundente, de tal modo que, se as premissas estiverem correctas, é muito
difícil manter a coerência da fé em Deus. Contudo, o próprio Epicuro não
concluiu pelo ateísmo: “Os deuses de facto existem. Porque o conhecimento que
deles temos é evidente… E não é ímpio o que nega os deuses do povo, mas quem
atribui aos deuses a opinião do povo”, diz ele. Até porque “ na Antiguidade, o
sofrimento podia levar em menor medida a um questionamento de Deus já que os
próprios deuses estavam submetidos à Moira”
(P. Henrici).
Mas o problema do mal no mundo mantém-se. Da
Bíblia os crentes retiraram duas respostas.
O sofrimento de Job
O poema bíblico de Job trata exactamente deste tema: a injustiça do
sofrimento do inocente. O livro é bem conhecido embora nem sempre se tenha em
atenção o longo diálogo e troca de argumentos de Job com os amigos e depois com
Deus, nem qual é a sua resposta ao problema.
O livro começa por apresentar Job como um homem feliz da vida. Mas de
repente fica o mais pobre dos pobres. E lamenta-se (“Desapareça o dia em que
nasci”: 3,3) dessa situação para a qual não encontra explicação. Entretanto
chegam uns amigos para o consolarem. Contudo, em vez de serem solidários com
Job preocupam-se em defender as suas teses e a doutrina tradicional da
retribuição, o que não responde à angústia existencial de Job.
Os argumentos dos amigos de Job podem sintetizar-se nos seguintes:
1) Deus castiga os maus: “
A vida do ímpio é um tormento contínuo e poucos serão os anos concedidos ao
opressor” (15,20). E nterpela Job sofre o castigo dos seus pecados: “Não é
antes pela tua muita iniquidade e pelas tuas inúmeras culpas?” (22,5)
2) Deus assegura a prosperidade
do justo: “Deus não abandona o homem íntegro nem estende a mão aos
malvados. Ele encherá a tua boca de sorrisos e de júbilo os teus lábios”
(8,20). Portanto, Job ainda pode ser feliz se se converter a Deus e reconhecer
as suas faltas: “Reconcilia-te com Ele e viverás em paz; e assim terás de novo
a felicidade” (22,21). Mas é esta atitude religiosa interesseira que Job recusa,
porque é inocente e continua a amar Deu, e quer lutar contra esta espécie de
mercantilismo religioso.
Estes dois argumentos são as duas faces da teoria da retribuição: Deus
premeia os justos e castiga os malvados.
3) Ninguém é justo diante de
Deus
Perante a teimosia de Job os amigos tentam outro caminho: diante da
santidade de Deus ninguém pode considerar-se puro e justo: “Quem é o homem para
se julgar puro e o filho de mulher para se considerar justo?” (15,14). Assim
sendo, donde vem a ousadia de Job de exigir explicações a Deus? Job até
concorda com este argumento: “Na verdade eu sei que é assim: como poderia o
homem justificar-se diante de Deus. Se quisesse discutir com Ele não lhe
responderia. Quem é sábio de coração, forte e poderoso para lhe poder resistir
impunemente?” (9,2-4). Mas o que está em jogo é a sua vida e a sua felicidade
e, portanto, vai lutar por isso com todas as suas forças e por todos os meios.
De qualquer modo, mantêm-se as posições divergentes: enquanto para os
seus amigos, há uma razão conjuntural – a raiz da indignidade humana está no
seu pecado –, para Job a razão é mais profunda e estrutural – a indignidade
humana radica na própria condição criatural.
4) O sofrimento como prova
pedagógica
O seu amigo Eliú até apresenta um argumento novo: o do valor
pedagógico do sofrimento: “Abre-lhes (aos justos) os ouvidos para os corrigir e
exorta-os a que se afastem da iniquidade. Se O escutam e lhe são dóceis,
terminam os seus dias na felicidade e os seus anos em bem-estar” (36,10-12).
Como se vê os amigos estão mais preocupados em defender uma doutrina –
e a doutrina da retribuição era quase um dogma – do que olhar a realidade
concreta que se manifestava em Job. Por isso o seu drama lhes passou ao lado. É
altura de nós fazermos um exame de consciência ou uma autocrítica pelas vezes
que também nós ficámos tão obcecados pela doutrina que esquecemos a pessoa.
Job não só refuta os argumentos dos amigos (em favor da doutrina da
retribuição) como acaba por pôr em causa a própria atitude deles. A teoria está
bem elaborada, só que é sistematicamente posta em causa pela realidade: “Uma só
coisa vos quero dizer: Ele extermina tanto o inocente como o malvado. Se, de
repente, um flagelo causa a morte, Ele ri-se do desespero dos inocentes. Deixa
a terra entregue às mãos do ímpio” (9,22-24). Mas o maior desmentido desta
doutrina está na própria experiência pessoal de Job: “Agora, peço-vos, olhai
para mim; olhos nos olhos, assim não poderei mentir. Olhai atentamente, sem
maldade; prestai atenção, está em jogo a minha inocência. Há porventura
falsidade na minha língua?” 86,28-30). Por isso, acusa os amigos de falta de
solidariedade: “Já por dez vezes me humilhaste e não vos envergonhais de me
insultar. Mesmo que de facto tivesse errado, o meu erro só a mim diz respeito.
Mas vós levantai-vos contra mim e repreendeis-me pelas humilhações que padeço…
Por que me perseguis como Deus e vos mostrais insaciáveis da minha carne?”
(19,3-5.22).
Job considera-se inocente e não sai desta posição. Está tão seguro
disso, que não teme confrontar-se com Deus, mas em idêntica posição, pois Deus
é mais poderoso e não há um árbitro que decida entre os dois: “Ele não é homem
como eu para eu lhe responder e comparecermos os dois em juízo. Entre nós não
há um árbitro que se possa interpor entre ambos; que Deus retire a sua vara de
cima de mim para que não me assombre com o seu terror. Então falar-lhe-ei sem
temor, pois, por mim, não tenho razões para temer” (9,32-35). Este Job é realmente
um homem corajoso, que luta até ao fim pelas suas convicções. É o que sobra da
sua dignidade: “Se agora me calo morrerei” (13,19). Mas como é tempo perdido
argumentar com os amigos: “Vou falar com o Todo-Poderoso e desejo discutir com
Deus. Vós não passais de charlatães, não sois senão fazedores de mentiras…
Quantas são as minhas faltas e pecados? Mostrai-me a minha iniquidade e os meus
crimes? Por que ocultas a tua face e me consideras um inimigo? Queres assustar
uma folha levantada pelo vento e perseguir uma palha ressequida?”
(13,3-4.23-25). Não há dúvida que ele é corajoso, uma coragem a raiar a
blasfémia. Mas insiste, está mesmo determinado: “Que Deus me pese na balança
justa e reconhecerá a minha inocência!... Oxalá eu tivesse quem me ouvisse! Eis
a minha assinatura! Que o Omnipotente me responda!” (31,6.35). Sem resposta,
Job apela para Deus… contra Deus, grita a Deus por Deus, apela para o “seu
próprio” Deus contra o Deus castigador dos seus amigos e de toda a tradição:
“Job eleva-se ao clímax de invocar Deus como Juiz e como Testemunha – contra o mesmo Deus. Tipifica a piedade
e a fé (sem aspas!), precisamente porque não
abdica de si mesmo… Não abdica da sua integridade. Apela a Deus, discute a
sua sorte, mas não deixa de protestar
contra o escândalo do sofrimento injusto. Isto é notabilíssimo!” (Oliveira
Branco).
Há aqui uma espécie de esperança paradoxal, mas “não tem outra”.
Embora experimentado, pelo menos aparentemente, pelo afastamento e pela
inimizade de Deus, Job intui que a justiça de Deus é a única explicação de tudo
e que ele próprio há-de ver reconhecida a sua inocência, e não apenas a título
póstumo, porque não seria justo que tal não acontecesse. Job espera que Deus
há-de ser Deus mesmo à custa do próprio Deus. Há aqui um jogo de palavras. Deus
há-de ser Deus (como Job o entende) mesmo à custa do próprio Deus (como os
amigos o entendem): “Calai-vos! Deixai-me falar a mim, aconteça o que
acontecer. Colocarei a minha vida nas palavras da minha boca e exporei a minha
alma nas palmas da mão. Mesmo que me tire a vida não tenho outra esperança e
defenderei a minha causa diante de Deus. Esta minha audácia seria a minha
salvação, pois nenhum ímpio é admitido à sua presença” (13,13-16).
E Deus aceita o repto. Numa primeira leitura, sentimos uma certa
decepção: Deus não responde directamente às questões de Job e até o repreende.
Mas uma leitura mais atenta mostra que as respostas estão precisamente nas suas
aparentes não respostas: “Então do seio da tempestade, o Senhor respondeu a Job
e disse: Quem é esse que obscurece os meus desígnios com palavras insensatas?
Cinge os rins como um homem; vou interrogar-te e tu responder-me-ás. Onde
estavas quando lancei os fundamentos da terra? Diz-mo se a tua inteligência dá
para tanto. Sabes quem determinou as suas dimensões? Quem estendeu a régua
sobre ela? Sabes em que repousam as suas bases ou quem colocou nela a pedra
angular, entre as aclamações dos astros da manhã e os aplausos de todos os
filhos de Deus? Quem pôs diques ao mar?...” (38,1-8). E as perguntas seguem a
um ritmo frenético percorrendo a natureza, depois o reino animal. A resposta de
Deus reduz Job à sua insignificância. Job percebe que está a lidar com algo que
é misterioso, que só é inteligível na lógica do mistério de Deus. E aceita a
resposta que não é resposta, mas é a única possível: “Job respondeu ao Senhor e
disse: Sei que podes tudo e que nada te é impossível. Eu, que desacreditei o
teu desígnio com palavras sem sentido, falei de coisas que não entendia, de
maravilhas que superavam o meu saber. Os meus ouvidos tinham ouvido falar de
ti, mas agora vêem-te os meus próprios olhos. Por isso retracto-me e faço
penitência cobrindo-me de pó e cinza” (42,1-6). Job sempre pretendeu que Deus
fosse Deus, em termos de justiça. Mas só agora entende que, para que isso seja
possível, é inevitável que Deus tenha uma lógica, a sua lógica, um caminho, uma
justiça e uma sabedoria que sempre ultrapassarão aquilo que como criatura
podemos entender.
Mas as perguntas ficam e as respostas não são respostas. Apontar para
o mistério não é responder. O que o livro apresenta não é uma teoria
explicativa do sofrimento mas um possível caminho através do sofrimento. No
fundo, Job não encontrou resposta, mas antevê qualquer coisa e sente a alegria
de Deus criticar os seus amigos e o elogiar a ele: “Depois que acabou de
dirigir estas palavras a Job, o Senhor disse a Elifaz de Temans: Estou
indignado contigo e com os teus amigos, porque não falaste rectamente de mim,
como fez o meu servo Job” (42,7).
A cruz de Jesus
Job ficou sem resposta porque a resposta à sua pergunta está no Deus
de Jesus que foi crucificado e ressuscitou. Tal como Job, também Jesus, é uma
figura trágica. Também Jesus interpela o Pai, interpela Deus: “Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonaste?”. Nenhum grito de angústia poderia descrever como
este a dor e abandono que sente quem sofre. Mesmo quando seja humanamente bem
acompanhado, chega sempre um momento em que este se torna o grito da
humanidade, a oração de crentes e não crentes. O sofrimento torna-se, a partir
de um certo patamar, uma experiência de solidão, onde os crentes se confrontam
com o Deus que amam e os não-crentes com as mundividências que orientaram sua
vida.
“Foi em Jesus, fiel à sua missão até ao fim, que Deus se revelou como
amor. Deus é Amor. Para o crente, em Jesus, Deus confrontou-se com a
negatividade na sua expressão máxima (morte na cruz) e desse modo venceu-a
(ressurreição). De agora em diante, quem acredita em Jesus não é poupado à
finitude e a tudo o que ela traz – a dor, o sofrimento, a malvadez, a morte –,
mas em esperança sabe que a existência não é absurda, pois conta com a
solidariedade de Deus” (A. Borges).
Há, no entanto, muitos teólogos que afirmam que Deus não quis nem
precisava do sofrimento de Jesus. Dizer que Deus precisou do sangue do Filho ou
seja de quem for é “do mais deplorável que um crente pode dizer de Deus. Como
se Deus pudesse ser ‘cruel’, ‘vingativo’, ‘sádico’, capaz de querer a injustiça
e o mal! Já era tempo de as ‘boas intenções’ da linguagem corrente se tornarem
(mais) teo-lógicas”. Assim quando se fala de “aplacar Deus”, “suster a ira
divina” notória em tantas biografias de santos ou em comentários sobre Fátima
ou Lourdes há “um deficit, grave, de
teologia” (Oliveira Branco). Ratzinger “jovem” recusava a teologia da
“satisfação” que situa a cruz, “no interior de um mecanismo de direito lesado e
restabelecido” e, por consequência, a noção de um Deus “cuja justiça inexorável
teria exigido um sacrifício humano do seu próprio Filho. Esta imagem, apesar de
tão espalhada, não deixa de ser falsa”.
Na homilia da missa da Ceia do Senhor (5.Abr.2012), o papa (Bento XVI)
afirmava: “Jesus luta com o Pai: melhor, luta
consigo mesmo; e luta por nós. Sente angústia frente ao poder da morte. Este
sentimento é, antes de mais nada, a turvação que prova o homem, e mesmo toda a
criatura viva, em presença da morte. Mas, em Jesus, trata-se de algo mais. Ele
estende o olhar pelas noites do mal; e vê a maré torpe de toda a mentira e
infâmia que vem ao seu encontro naquele cálice que deve beber. É a turvação
sentida pelo totalmente Puro e Santo frente à torrente do mal que inunda este
mundo e que se lança sobre Ele. Vê-me também a mim, e reza por mim. Assim este
momento da angústia mortal de Jesus é um elemento essencial no processo da
Redenção; de facto, a Carta aos Hebreus qualificou a luta de Jesus no Monte das
Oliveiras como um acontecimento sacerdotal. Nesta oração de Jesus, permeada de
angústia mortal, o Senhor cumpre a função dos sacerdotes: toma sobre Si o
pecado da humanidade, toma a todos nós e leva-nos para junto do Pai”.
Uma pequena nota
final para enquadrar estas afirmações de Ratzinger, como teólogo, na sua fase “jovem”
e noutra mais adiantada. Foi um dos grandes teólogos do Concílio, como assessor
do cardeal Frings, bispo de Colónia, criticou duramente a Cúria pela sua
atitude antimoderna, foi um dos subscritores da Carta dos 77 que pedia a
liberdade de investigação para os teólogos. Contudo o Maio de 68, que estimulou
a revolta de estudantes de teologia, levou-o a flectir as suas posições:
abandonou a universidade de Tubinga e o seu amigo Hans Küng e foi para a de
Ratisbona, até que chegou a Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.