divórcio ou casamento eterno?...

2013-11-03

Não é um adeus, é um até já...

Este Blogue terminou porque o seu autor, José Dias da Silva, faleceu em 15/07/2013.

Há mais de 7 anos que o Zé lutava contra um cancro. Apesar de muitas limitações e algum sofrimento foi um tempo extremamente rico de afectos da família e dos amigos.

Foi sempre tratado com grande profissionalismo, por todos os funcionários dos serviços de saúde públicos a que teve de recorrer. Mas sobretudo deve às equipas médicas de enfermagem e de auxiliares de acção médica da UTAL (Unidade de Tumores do Aparelho Locomotor) dos Hospitais da Universidade de Coimbra, que o acompanharam dedicada e empenhadamente nos longos e difíceis dias de tratamento, a grande qualidade de vida de todos estes anos.

Graças a todo este apoio conseguiu escrever nos seus dois blogues com alguma regularidade, quinzenalmente para o jornal diocesano, mensalmente para uma revista missionária e pontualmente para outros jornais e revistas. Ainda colaborou em debates, fez conferências e manteve-se como membro activo das Comissões Justiça e Paz, Nacional e Diocesana de Coimbra.
No entanto, o último ano de vida foi já “pouco produtivo”, como ele dizia. A doença foi-se espalhando e sentia-se sobretudo cansado, mesmo para filosofar com a ajuda do computador.

Continuou até ao fim a escutar a palavra de Deus, a acolher e cuidar dos amigos e família, a telefonar diariamente à Mãe, a ouvir informações e lamentações da Fátima, a partilhar alegrias e tristezas com a Nata, o David e a sua irmã Lenita e a todos foi deixando conselhos e consolo.
Resolvemos criar, em memória dele, um outro blogue, uma espécie de “espaço-tempo” em que esteja presente a sua forma de viver e os valores que nos deixou por herança, aberto a todos os que quiserem vir espreitar, partilhar, comentar.
 
 
Fátima, Renata e David

Post inacabado: Duas questões vivenciais



Quando acabei o meu curso universitário, confrontei-me com duas questões.  


Primeira.

Se, como acreditava, Deus é o Senhor da história e quer precisar de nós para a fazer avançar, significa isso que Deus tem um projecto para cada um? A minha resposta era sim, baseando-me a parábola dos talentos e no facto de cada um de nós ser único e irrepetível. Esta resposta levava a outra questão: como podia eu saber qual era? Através de uma atitude de escuta e de busca, procurando fazer uma leitura dos sinais dos tempos: o que via à minha volta? Para onde me levava a minha sensibilidade? Mas tudo isto implicava um coração livre, suficientemente aberto à palavra de Deus e aos acontecimentos para poder aceitar o projecto de Deus para mim e pôr de lado outros projectos meus tão legítimos mas que não eram para já o mais importante. Não era, nem é fácil: a disponibilidade de coração implica um espírito de pobreza, uma nudez espiritual que me deixa livre para aceitar a vontade de Deus, para dar aquele fiat (faça-se) de Maria, de Saulo/Paulo e de tantos outros; a capacidade de escuta obriga a uma atenção redobrada à realidade concreta e a uma avaliação dos vários sinais e gestos alguns tão imperceptíveis que com facilidade se ignoram.

Esta é uma questão vital para poder viver o meu ser homem e ser cristão. E é uma questão nunca totalmente resolvida e continuamente posta em debate. Não basta ter obtido uma resposta, mas é preciso pôr-se em causa a cada momento. Cada opção de vida depende desse ou desses projectos. tem sido, por isso, uma das minhas maiores dificuldades.

 
Segunda.

A segunda questão tinha a ver com o ser cristão, com o viver cristão. Ser cristão é o mesmo que ser (um bom) cidadão? Ou acrescenta-lhe alguma coisa?

Das leituras que fazia e dos comentários que ouvia, parecia concluir-se que na prática o resultado era o mesmo; a fundamentação é que era diferente. Mas eu não ficava satisfeito com tal conclusão. Até porque no Sermão da montanha havia duas citações que me surpreendiam: “Porque se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos?” (Mt 5,47) e “Não vos preocupeis dizendo: ‘Que comeremos, que beberemos ou que vestiremos?’ Os pagãos, esses sim, afadigam-se com tais coisas” (Mt 6,31-32). Como quem diz: isso, actuar esse nível até os pagãos; dos cristãos, espera-se mais alguma coisa. Há uma diferença qualitativa. Mas qual. 

Entretanto aconteceu um episódio interessante. Tinha ido de carro dar um passeio, quando parei numa praça onde poderia estacionar o veículo. Esperei alguns minutos e lá apareceu um lugarzinho. Avancei. E preparava-me para estacionar quando me apareceu um senhor que em disse: “Olhe eu já estou aqui há mais tempo para estacionar, portanto este lugar é meu.” E continuou: “Mas, porque sou comunista espero mais um bocado e deixo-lhe este lugar pele e alto ara si.” Olhei para ele de alto a baixo e lá estacionei não encontrando outras palavras que não fosse o velho obrigado. Um dos colegas comentou: “Já viram a lata. Sou comunista dispenso o meu lugar”. Retorqui-lhe: “Quantas vezes disseste Sou católico, portanto vou prescindir disto ou daquilo”. Fiquei a meditar com os meus botões.

Fiquei mais atento ao Sermão da Montanha. E lá encontrei uma passagem  que passo a citar: “, (...)



Este texto não foi publicado pelo Zé Dias mas encontrava-se no computador dele ainda em forma de rascunho, na altura da sua morte. No entanto, como estava praticamente completo decidimos publicá-lo. Ficou a faltar a citação final e provavelmente a sua conclusão.

2013-06-13

Discurso escatológico


Voltando aos textos bíblicos que mais me influenciaram, escolhi para hoje o discurso escatológico, isto é, discurso sobre as “últimas coisas” de S. Mateus (Mt 25,31-45). No fim dos tempos (“Quando o filho do homem vier na sua glória”), todos os povos (panta ta ethne) vão ser julgados, indo uns para a sua direita, as ovelhas, e outros para a esquerda, os cabritos, para serem premiados ou condenados segundo o seu comportamento para com os outros, especialmente os mais pobres.
Mais uma vez ficamos baralhados com as palavras de Jesus. Quando se esperaria que os premiados fossem os que mais orações ou actos litúrgicos tivessem realizado, não há qualquer referência directa a essa dimensão. Aliás Jesus já avisara que “Nem todo o que diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino do Céu, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está no Céu” (Mt 7,21). Mas não se trata apenas da dimensão vertical, da relação para com Deus. Há também uma razão horizontal: “Se fores apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão depois volta para apresentar a tua oferta” (Mt 5,23-24).
E sobre que acontecimentos iremos ser julgados? Sobre o modo como acolhermos os outros, sobre o modo como cuidarmos o nosso próximo: dando pão a quem tem fome, água a quem tem sede, acolhendo quem peregrina, vestindo a quem estava nu, visitando quem está doente ou recluso. Coisas tão simples, não é? Parece, pelo menos! Esta lista de direitos humanos abrange os fundamentais direitos de sobrevivência. Mas isso só parece simples se for levado à letra. Daí que um primeiro cuidado a ter é fazer uma leitura actual. Foi o que fez o Concílio: “Simultaneamente, aumenta a consciência da eminente dignidade da pessoa humana, por ser superior a todas as coisas e os seus direitos e deveres serem universais e invioláveis. É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à protecção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa” (GS 26). Estes são os direitos básicos. Esta é a tradução para os dias de hoje da afirmação de Jesus.
Este é o critério para entrar no Reino de Deus. Se este é o critério, então os pobres são os porteiros do Reino de Deus. Quem diria? Os mais esquecidos e abandonados pela sociedade, pelos governantes, os que ninguém conhece, são esses que irão abrir-nos a porta do Céu. No Reino de Deus é assim: como os que mais precisam são os que menos têm, são estes que têm a prioridade.
“É preciso, enfim, recordar de modo particular a grande parábola do Juízo final (cf. Mt 25, 31-46), onde o amor se torna o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana. Jesus identifica-Se com os necessitados: famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos, encarcerados. «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus” (DCE 15). Afinal o critério último para a entrada no Reno de Deus é a consideração que se tem ou não pela pessoa humana. Como olho eu para os outros? A sua dignidade de pessoa está presente nas decisões que tomamos? Tudo se resume a colocar a pessoa no centro da organização e regulamentação sociais.
Mas Jesus disse mais. Esses pobres, famintos, sedentos, nus, doentes são o próprio Jesus: o que fizerdes aos pequeninos é a mim que o fazeis. Tudo lhes deve ser feito como se fosse ao próprio Jesus. Isto leva a uma ligação muito íntima entre o amor a Deus e o amor ao próximo: “Nela (na passagem da 1Jo 4,20) se destaca o nexo indivisível entre o amor a Deus e o amor ao próximo: um exige tão estreitamente o outro que a afirmação do amor a Deus se torna uma mentira, se o homem se fechar ao próximo ou, inclusive, o odiar. O citado versículo joanino deve, antes, ser interpretado no sentido de que o amor ao próximo é uma estrada para encontrar também a Deus, e que o fechar os olhos diante do próximo nos torna cegos também diante de Deus.” (DCE 16).
Por isso, é que não basta dizer “Senhor, Senhor”. Por isso, é que S. João insistia: “Filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade” (1Jo 3,18).
A fé aparece assim como consequência das obras. “De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem do alimento quotidiano e um de vós lhe disser: «Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome», mas não lhe dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitaria? Assim também a fé: se ela não tem obras está completamente morta” (Tg 2,14-17).

Todas estas obras que ficaram conhecidas por “obras de misericórdia” são não só o critério para a entrada no Reino de Deus, mas também os sinais desse mesmo Reino. Onde esses sinais existirem está a acontecer o Reino de Deus, está a construir-se o Reino de Deus. Há duas afirmações evangélicas explícitas que o confirmam. Quando João Baptista manda os discípulos a Jesus para saber “se és tu o que hás-de vir ou devemos esperar outro”, a resposta é clara: “Ide e dizei a João o que vedes e ouvis: os cegos vêem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres” (Mt 11,3-4). A mesma citação de Isaías é feita na apresentação pública de Jesus em Nazaré (Lc, 4,18-21).
Poder-se-á retorquir que não há paralelismo ente as duas situações: numa fala-se em fome e sede e na outra com cegos e coxos. Formalmente não há paralelismo, mas substantivamente em ambas temos situações de pobreza, situações vividas pelos pobres. Porque Jesus deu o exemplo – “para que assim como eu fiz, vós façais também” (Jo 13,15) – todos os seus discípulos devem “lavar os pés” aos outros, devem matar a fome e a sede aos necessitados, devem fazer com que os cegos vejam e os coxos andem. Ao actuar assim estamos a manifestar e a construir o Reino.
Também eu me senti empurrado por estas palavras a ajudar os outros, de acordo com os meus talentos e as minhas limitações. Na fase em que me aprestava para iniciar a minha vida profissional, estas reflexões foram muito importantes para orientar o meu futuro.



2013-05-24

Trabalho


Interrompo a reflexão sobre os textos bíblicos que mais me marcaram para partilhar um artigo sobre o trabalho, dado o bom acolhimento que teve entre vários amigos.

O TRABALHO UM BEM A PARTILHAR

Não seria necessário esperar pelo mês de Maio, para que o trabalho fosse um tema irrenunciável. Na verdade, vivemos um tempo cujo principal drama é o desemprego. Impõe-se um debate sério sobre o trabalho, pois o modo como ele é entendido influencia a legislação laboral e a tomada de consciência da obrigatoriedade de atacar este problema dados os seus reflexos na vida pessoal – do sentido da inutilidade até à própria exclusão social –, familiar e social – das tensões sociais ao empobrecimento nacional. É indispensável que dadores de trabalho e trabalhadores, a sociedade, todos os cidadãos, aprofundem este tema de modo criativo, porque “em muitos casos, os pobres são o resultado da violação da dignidade do trabalho humano, seja porque as suas possibilidades são limitadas (desemprego, subemprego), seja porque são desvalorizados «os direitos que dele brotam, especialmente o direito ao justo salário, à segurança da pessoa do trabalhador e da sua família»” (Bento XVI, Caritas in Veritate, 63).
Efectivamente, de acordo com a doutrina social da Igreja, o trabalho é o meio pelo qual cada pessoa se pode realizar. É pelo trabalho que cada um se pode sustentar a si e à sua família. A própria vida familiar depende do trabalho, pois este “constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar, direito fundamental e vocação do homem” (João Paulo II, Laborem Exercens (LE), 10). O trabalho assegura também o desenvolvimento da sociedade, promovendo a solidariedade entre as pessoas – colegas trabalhadores e cidadãos consumidores – e respondendo às necessidades pessoais e da humanidade. É um instrumento para realizar o adequado “domínio” sobre a natureza, sem o qual não há progresso nem desenvolvimento. Mas sobretudo, o trabalho é o meio mais adequado para que cada um possa ter a sua parte dos bens da terra que existem para a utilização de todos: enquanto a esmola é um gesto, muitas vezes degradante, e os subsídios são transitórios, o trabalho é o meio mais nobre e dignificante para ter acesso a estes bens, pois, pelo trabalho, cada um dá o seu contributo para os aumentar e recebe, através de um salário justo, a parte a que tem direito.
Por tudo isto há uma hierarquia de valores: o primado do homem sobre o trabalho – a pessoa deve estar sempre no centro de toda actividade incluindo a actividade laboral: “Antes de mais nada, o trabalho é ‘para o homem’ e não o homem ‘para o trabalho’”. Daí que seja a pessoa quem dá dignidade a todos os tipos de trabalho e não vice-versa. Daí que “a finalidade de todo e qualquer trabalho realizado pelo homem permanece sempre o próprio homem” (LE 6) – e o primado do trabalho sobre o capital: “Esse instrumento gigantesco e poderoso, que é o conjunto dos meios de produção, considerados como sinónimo do capital, nasceu do trabalho e é portador dos vestígios de trabalho humano” (LE 12). Por isso o trabalho é cronológica e ontologicamente anterior ao capital.
É exactamente o contrário daquilo a que assistimos nas sociedades modernas. Mas tirar a pessoa do centro para lá colocar o capital é recusar a centralidade da pessoa, é recusar o pilar estruturante de uma sociedade ou de um sistema justo, solidário e humano. Hoje, há pessoas que são obrigadas a trabalhar estupidamente sem tempo para mais nada, enquanto outras, cada vez mais, não têm trabalho, vivendo a angústia da inutilidade e da falta de auto-estima. Não será possível, dado o enorme aumento de produtividade – trinta vezes desde a Revolução Industrial – fazer uma redistribuição solidária do trabalho de modo a diminuir drasticamente o desemprego? Atrevia-me a recordar aqui a velha proposta “a meio tempo” do sociólogo G. Aznar, que implicava: 1) dispor de duas pessoas, no mesmo posto de trabalho, por cada dia completo; 2) ter dois tempos para a mesma pessoa: um, consagrado a um tipo de actividade, na esfera profissional; outro, “um tempo para amar”, consagrado a outras actividades, na esfera individual ou social, como cuidar dos filhos, actualizar conhecimentos, cumprir um “serviço cívico” que seria extensível a todos, etc.. Os custos desta proposta deviam ser repartidos pela empresa, remunerando o trabalho realizado, e pelo Estado, através de compensações fiscais ou afins às empresas que adiram, mas também repondo um salário digno ao trabalhador. Bem sei que isto é utópico, que exige uma profunda mudança de mentalidades, da organização social e do próprio conceito de trabalho. Por exemplo, é altura de ultrapassar ideias como a de que o homem é trabalhador porque trabalha numa fábrica e a mulher não é trabalhadora, porque “apenas” se dedica a cuidar dos filhos e da gestão da casa.
Se o próximo paradigma de organização social e sua fundamentação não tiver nada de utópico é porque não passámos além do que temos, embora com outras roupagens. 

2013-05-13

Parábola do Filho Pródigo



Um texto que me marcou muito na minha procura de Deus foi esta parábola narrada unicamente por S. Lucas (Lc 15,11-32). É um poema lindíssimo que certamente faz parte da literatura universal. É uma descrição perpassada de ternura e de misericórdia. Deixa uma ideia indelével da bondade do Pai que nos dá uma imagem de Deus-Pai, Deus-Amor.
Foi um texto que li e reli muitas vezes. Numa altura em que quase tudo o que tocássemos se convertia em pecado, onde havia muito pouco espaço para a alegria e para a felicidade, ler esta parábola era para mim um oásis refrescante, um canto onde ninguém me podia impedir de ser feliz e chorar de alegria, a alegria de quem se sentia perdoado por Deus, apesar das palavras dos homens.
São três os personagens da parábola e todos bem caracterizados.

O Pai
Primeiro temos o Pai. O seu comportamento é fora do habitual. Dá ao filho a parte que pertence, vê-o partir, espera-o pacientemente, todos os dias, sempre com esperança de o ver surgir: um dia após outro, de manhã e à tarde, lá ia ele para o terraço espreitar a linha do horizonte.
Claro que este Pai não serve de modelo para ninguém, porque é demasiado bom. Nenhum de nós está em condições de imitar Deus. Deus é um desafio, não é um modelo que eu possa imitar. Deus não é homem: Deus está para lá de todas as imitações. Mas Deus é um refúgio onde todos podemos encontrar misericórdia e amor, sem condições. Note-se que este Pai não quer saber nada dos pecados do filho. Não quis saber nada do que foi a sua vida, como a passou, o que fez aos bens que levara, por que vem todo esfarrapado e cheio de fome. Nada disto interessa ao nosso Deus. Ele quer é que convertamos o nosso coração, mesmo que seja pouco a pouco.
E basta que tenhamos um pequeno gesto de conversão, Deus tudo esquece. Era esta “injustiça” que irritou Jonas e que Jonas não podia aceitar: “Ah! Senhor! Porventura não era isto que eu dizia quando ainda estava na minha terra? Por isso é que, precavendo-me, quis fugir para Társis, porque sabia que és um Deus misericordioso e clemente, paciente, cheio de bondade e pronto a renunciar aos castigos” (Jon 4,2). Jonas não aceitava que Deus perdoasse aos nenevitas só porque eles fizeram penitência e disseram que se arrependeram dos pecados. Deus não poder assim tão “mole” nem deixar-se convencer por um gesto tão pequeno. Jonas está aqui a funcionar como o filho mais velho. Mas o nosso Deus é mesmo assim: ontologicamente misericordioso e clemente.
O que acho um pouco estranho na parábola é que esta família não tem mãe nem a sua existência é pressuposta. Alguns dos gestos do Pai parecem mais gestos de mãe: cheio de compaixão, corre e lança-se ao pescoço, cobrindo-o de beijos. Isto leva-me a pensar que este Deus é pai e mãe ao mesmo tempo. ATENÇÃO: Eu não sou exegeta, apenas estou a partilhar o que a Palavra de Deus me interpela. Dito isto, parece-me ver nesta definição de Deus as facetas: masculina e feminina. Deus é Pai e Mãe ao mesmo tempo.


O Pai recebe o filho

Filho mais novo
Nas primeiras leituras identificava-me com o filho mais novo. Por força do clima da época, era, sentia-me ou faziam-me sentir tão pecador que só podia assemelhar-me ao filho pródigo. A minha consciência carregava um peso enorme de culpa. Como já referi, tudo ou quase tudo era pecado sobretudo qualquer coisa que nos desse alegria e prazer. Sei que o inferno pairava sobre nós como uma espada de Dâmocles. Deus foi transformado num verdadeiro big brother que tudo via, tudo escutava e estava em todo o lado a controlar cada gesto nosso. Suponho agora que tudo isto será exagerado, mas quando olha para trás estas são as memórias que me ficaram. Assim sendo só podia identificar-me com o filho mais novo. Este sentimento de culpa foi das coisas que mais me marcaram pela negativa. Era ameaçador. Por isso, este Pai veio pouco a pouco libertar-me desse complexo de culpa; mas demorou muito tempo. E não sei se já me libertei de todo. Aliás lembro-me bem de alguns colegas me dizerem que deixaram de ser católicos por causa desse asfixiante complexo de culpa. A rapaziada nova não faz a mais pequena ideia do quanto isto era dramático.


O filho mais novo no meio de porcos e prostitutas
      
Filho mais velho
Pouco a pouco fui-me libertando desse sentimento de culpa, mas muito lentamente. De qualquer modo, penso que alguma coisa mudara dentro de mim quando comecei a focar a atenção no filho mais velho. Olhando para trás, acho que houve aí alguma libertação interior, mas não foi nada que acontecesse de uma dia para o outro. Foi acontecendo.
Percebi que afinal me comportava muito mais como o filho mais velho. Primeiro porque olhava para mim e não tinha pecado tanto como o filho mais novo. Não era suficientemente “mau” para me parecer com ele. Fui descobrindo que no meio de tantos pecados (um dos pecados que nunca falhava nas confissões da época era não ter rezado as três Avé-Marias ao deitar: como se vê gravíssimo!) afinal não era assim tão mau. Portanto, não podia olhar o filho pródigo como modelo, tal era a desproporção que eu via entre o meu comportamento e o do filho pródigo. Assim “virei-me” para o mais velho.
Eu portava-me muito mais como filho mais velho: a inveja dos outros, a intolerância disfarçada, a falta de solidariedade. Estas realmente eram faltas que eu também demorei algum tempo a descobrir. Talvez aqui tivesse influenciado alguma coisa a nova fórmula da “Confissão”: “confesso… porque pequei muitas vezes por pensamentos, palavras, actos e omissões”. Omissões! Demorei algum tempo a perceber, mas uma vez percebida foi uma espécie de “revolução pecaminosa”. Os pecados de omissão eram tantos ou mais do que os outros todos juntos até porque também percebi que os pecados de omissão não eram uma quarta situação, mas uma atitude em que se podia também cair por pensamentos, palavras e actos.
Portanto, esta segunda fase era uma etapa na libertação interior das grilhetas do pecado. Havia que estar atento aos verdadeiros pecados.
Mas veio uma outra fase: sentir-me como filho mais velho. Não era só comportar-me como ele, mas ser como ele. Não é a mesma coisa, mesmo que as consequências sejam as mesmas.
Eu afinal não desobedecia muito aos superiores (era outro pecado habitual: desobedecer aos meus superiores). Até talvez obedecesse demais ou no que não era o mais importante. Portanto era obediente, parecia incapaz de partir um prato. Mas, como o filho mais velho, nunca faria a malandrice de roubar um cabrito ao pai para celebrar com os amigos. Eu até acho que, como ele, eu era demasiado bem comportadinho. Passe o exagero. Vou partilhar um episódio para que se entenda isto melhor. Irão dizer que sou maluco, mas foi o que aconteceu. Uma noite de confidências estava eu com um jovem amigo já com uns copos (o amigo!), quando ele depois de algumas confissões se virou para mim e me pediu que lhe contasse uma das minhas noitadas de farra, com copos a mais ou droga à mistura, etc.. Pois querem crer que, como realmente nunca passara por isso, fiquei de boca aberta sem saber o que dizer. E até tive alguma vergonha de nunca me ter embriagado para poder contar ao jovem (esta frase é para ignorar) pois sentia que ele não ia acreditar se eu lhe dissesse que nunca tivera uma noitada dessas. E assim poderia até perder a confiança dele, porque ele poderia pensar que eu não podia estar a falar verdade pois era impensável que um jovem nunca tenha tido uma noitada dessas!
Mas forte é frase bíblica: “Por que não és frio nem quente, mas morno, vomito-te da minha boca” (Ap 3,16). Afinal, como o filho mais velho, não era “mau”, sempre “bem-educado”; mas também não era “bom”, pois nem sempre o meu bom comportamento era feito por amor, mas antes por medo, porque parecia mal, porque os pais ficariam tristes, etc. Era um bom de circunstâncias e não era mau a sério. Nem quente nem frio.
Não fazemos mal a ninguém, mas também não fazemos o bem. Cumprimos o estritamente necessário. “Há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos: e agora, ao chegar esse teu filho (nem sequer diz “o meu irmão”; ou será que o deixou de o considerar irmão?), que gastou os seus bens com meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo” (Lc 15,29-30).
Ressabiado. Invejoso. Claro que ele, sim, era um verdadeiro filho pois nunca trouxera problemas aos pais.
Mas nunca fora quente nem frio; apenas morno.
Não mudara nada. Deixara tudo como dantes. E assim não contribuíra para um mundo melhor

(Não encontrei uma imagem com o filho mais velho: por que será? Devo ter procurado mal.)

2013-05-02

Deus, Senhor da História

Com o último post terminei um conjunto que começara com uma frase do Sermão da Montanha: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã” (Mt 6,25). Esta perícope acaba com o “Procurai em primeiro lugar o Reino de Deus e tudo o resto vos será dado por acréscimo” (Mt 6,33).
Esta expressão do Reino de Deus não ocupou o meu espírito jovem. Passou-me praticamente despercebido. Valia a frase pelo seu todo. Primeiro o que é de Deus. Mais tarde descobri que ao seu Reino estava associada a sua justiça.
O que se foi formando no meu espírito jovem foi a certeza de que “Deus é o Senhor da história”. Não sei bem como isto aconteceu. Talvez tenha resultado do cruzamento entre Providência e Reino de Deus. Mas foi certamente catalisada por uma passagem conciliar: “O Espírito de Deus, que dirige o curso dos tempos e renova a face da terra com admirável providência, está presente a esta evolução. E o fermento evangélico despertou e desperta no coração humano uma irreprimível exigência de dignidade” (GS 26).
Fosse o que fosse, esta ideia cedo marcou o meu itinerário espiritual que se foi enriquecendo com as consequências dela decorrentes.

Os meus actos
Uma primeira descoberta foi a importância dos meus actos. E para mim que era muito tímido foi uma descoberta importante. Passei a perceber que os meus actos eram mais importantes do que os julgava porque passavam a ser instrumento de Deus. Eles valiam, portanto, muito por mais humildes que eles fossem. Estavam revestidos de uma auréola de santidade, invisível mas absolutamente presente. Quanto mais pensava nisto mas estes aspectos eram ressaltados e tinha cada vez mais confiança no que fazia.
Comecei a perceber que devia fazer mesmo quando não me apetecia muito ou nada. Não eram os meus “apetites” que decidiam. Entretanto descobri que Deus quer que sejamos nós a substituí-lo na sua acção pela justiça. O episódio que várias vezes lia é o diálogo de Deus com Moisés, relatado no livro de Êxodo (3,11-4,18). Repare-se na quantidade de desculpas com que Moisés procura libertar-se da vontade de Deus que quer que seja ele a levar a cabo a libertação que Deus decretou para os escravos “filhos de Israel” que viviam no Egipto:
- quem sou eu para ir ter com o faraó…
- vou ter com os filhos de Israel e que lhes digo?
- se eles não acreditarem e disserem “O Senhor não te apareceu”?
- eu não sou um homem dotado para falar
- eu te peço, Senhor, envia outro.
Só depois de isto tudo é que Moisés regressa ao Egipto.
Eu sou o enviado de Deus para as pequenas libertações, as pequenas lutas diárias a favor da justiça e da justiça do seu Reino. Daí a importância de cada um de nós e da nossa responsabilidade.
Comecei então a pôr em causa aquela passagem evangélica tão repetida: “Somo servos inúteis. Só fizemos o que devia ser feito” (Lc 17,10). Efectivamente os nossos actos não são inúteis porque são necessários para a realização das decisões de Deus na história. Então nós não somos servos inúteis porque somos necessários, porque Deus quer precisar de nós. E, portanto, até somos indispensáveis, como aliás se nota olhando para o mundo de hoje. Se fosse Deus a fazer as coisas o mundo de hoje seria certamente muito mais justo, solidário, fraterno e humano. Não é assim porque nós não assumimos ainda que Deus quer que sejamos nós a construir o mundo.
Mais. Nós somos indispensáveis não só por causa daquele saber divino que nos quis fazer livres e, dentro desta liberdade, quer que sejamos nos a substituí-lo na construção do mundo. Nós somos também indispensáveis porque, como diz João Paulo II, cada um é único e irrepetível: “A  dignidade pessoal é propriedade indestrutível de cada ser humano. É fundamental compreender-se toda a força que irrompe desta afirmação, que se baseia na unicidade e na irrepetibilidade de toda a pessoa. Dela deriva que o indivíduo seja irredutível a tudo o que o queira esmagar e anulá-lo no anonimato da colectividade, da instituição, da estrutura, do sistema. A pessoa, na sua individualidade, não é um número, não é o anel de uma cadeia, nem uma peça da engrenagem de um sistema. A afirmação mais radical e exaltante do valor de cada ser humano foi feita pelo Filho de Deus ao encarnar no seio de uma mulher” (ChL 37). Se cada um é único e irrepetível ninguém o pode substituir. Os outros poderão fazer muito melhor do que eu, mas nunca farão o que só eu posso dar. Ninguém tem os meus talentos, exactamente os meus talentos. Também por isso eu sou indispensável.

Os outros
Se eu sou instrumento de Deus, também os outros o são. Portanto, devo respeitá-los como tal. Até porque Deus não faz acepção de pessoas. Deus não tem o menor escrúpulo em se “servir” dos não crentes para que a história se vá construindo através da actividade humana. Várias vezes encontramos na Bíblia esta referência a que Deus não faz acepção de pessoas. Quando os cristãos ficam apenas preocupados com os seus problemas internos e se distraem do que acontece no mundo, lá vai o nosso Deus (como?) bater à porta dos Marxs para nos fazer perceber que a pessoa também tem uma dimensão estruturante social e gritar contra a exploração da pessoas e dos povos; dos Darwins para nos fazer descer à humildade de percebermos que somos “descendentes do macaco”; dos Freuds para que percebamos que não somos absolutamente autónomos, ou dos Gandhs, dos Luther King, de todos os que, no fundo, trabalharam, muitas vezes sem o saberem, pela justiça do Reino de Deus.
Assim sendo, devemos procurar sempre o diálogo e a colaboração com todos os “homens de boa vontade”. Neste contexto insere-se a frase revolucionária de João XXIII tanto pouco tida em conta pelos católicos: “Não deverá jamais confundir-se o erro com a pessoa que erra, embora se trate de erro ou inadequado conhecimento em matéria religiosa ou moral. A pessoa que erra não deixa de ser uma pessoa, nem perde nunca a dignidade do ser humano, e portanto sempre merece estima. Ademais, nunca se extingue na pessoa humana a capacidade natural de abandonar o erro e abrir-se ao conhecimento da verdade. Nem lhe faltam nunca neste intuito os auxílios da divina Providência. Quem, num certo momento de sua vida, se encontre privado da luz da fé ou tenha aderido a opiniões erróneas, pode, depois de iluminado pela divina luz, abraçar a verdade. Os encontros em vários sectores de ordem temporal entre católicos e pessoas que não têm fé em Cristo ou têm-na de modo erróneo, podem ser para estes ocasião ou estímulo para chegarem à verdade” (PT 157).

Uma só história
Se Deus é Senhor da história, não faz sentido falar de duas histórias: uma da salvação e outra humana. A história humana e a história da salvação não são duas histórias estanques, nem estranhas uma à outra, pois as promessas de “libertação e de salvação para todos cumpriram-se de uma vez para sempre na Páscoa de Cristo” (JM 6), que incarnou na nossa história e passou a fazer parte dela. Por isso, a construção da história é o resultado de um diálogo dialéctico entre a vontade de Deus e a vontade humana, que por ser livre não se submete a tudo o que lhe é exigido ou dito.
Também os nossos actos, ideias, concepções tudo o que há de bom no coração das pessoas e dos povos vamos encontrá-los no Reino de Deus, depois de terem sido purificados: “Todos estes valores da dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, fruto da natureza e do nosso trabalho, depois de os termos difundido na terra, no Espírito do Senhor e segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a encontrá-los, mas então purificados de qualquer mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal: «reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz». Sobre a terra, o reino já está misteriosamente presente; quando o Senhor vier, atingirá a perfeição” (GS 39).

2013-04-11

Proposta de Queiruga

Vamos voltar ao dilema de Epicuro.
A.T. Queiruga é um teólogo especialmente preocupado em “repensar” a fé de modo a que, actualizando a sua compreensão, seja possível “recuperar” hoje a experiência cristã originária. Basta recordar os títulos de alguns dos livros: Recuperar a Salvação, Recuperar a Cristologia, Recuperar a Criação, Recuperar a Ressurreição, Recuperar a Revelação. Um dos mais recentes é o Repensar o Mal.
Neste o autor analisa o problema do mal a partir de perspectivas diferentes. Se na época da cristandade, era difícil falar do mal sem ter em conta Deus, pois Deus estava presente e interveniente em tudo, com a Modernidade assistimos a uma viragem estruturante: a secularização e a autonomização das realidades terrestres vieram alterar o panorama. Esta nova posição obriga-nos a repensar o modo como tratamos o mal, não partindo de Deus mas da realidade. E o que a realidade nos diz é que o mal está presente em todos, crentes e não crentes. Por outras palavras, a presença do mal é anterior ao factor religioso. Então temos que começar por abordar o mal do ponto de vista “comum”. Temos de utilizar a razão e não apenas a fé. Devemos reflectir sobre o mal em si mesmo e por si mesmo. Para tal metodologia, Queiruga inventa uma palavra panerologia, formada a partir do grego panerós, “mal”. Vamos para já deixar de lado a resposta do mistério e vamos olhar criticamente a realidade. Nós vivemos num mundo finito, limitado. Pelo facto de ter sido criado, como todas as criaturas, tem limitações que fazem parte da sua essência. Isto é, um mundo criado não pode ser perfeito. Ora o mal surge destas limitações do mundo: o nosso corpo tem doenças, porque não é perfeito, mas limitado, vai-se desgastando, vai perdendo qualidades. Tal como é contraditório haver um corpo sem limitações, também é contraditória a existência de um mundo sem limitações. Avançando um pouco mais. Deus não pode entrar em contradições. É possível Deus criar uma pedra tão pesada que ele não consiga levantá-la? É possível Deus fazer a quadratura do círculo? A resposta tem que ser não. Então Deus é impotente? Não. Nem Deus pode fazer com que o “ser” seja “não-ser”. Não é Deus que é incapaz de fazer a quadratura do círculo. O problema não está em Deus; está no facto de um mundo criado ser impossível sem o mal: seria contraditório.
Portanto não é Deus que cria o mal ou o permite. O mal faz parte intrínseca de um mundo ou das criaturas criadas. Tudo o que é criado é limitado e a limitação faz parte da sua essência. Não pode existir um mundo sem mal porque faz parte essencial do mundo a sua limitação, que inclui o mal. Deus não pode criar um mundo perfeito
O dilema de Epicuro não tem em conta este pressuposto e aí reside a sua falha. Realmente se não houvesse uma falha qualquer, o dilema de Epicuro deixava Deus em maus lençóis. Por isso foi inventada a teodiceia, a ciência que pretende justificar Deus. Mas afinal Deus não pode querer nem tem poder perante as contradições. Um mundo perfeito não é possível porque seria contraditório. O nosso mundo, porque é imperfeito, não pode funcionar sem que o mal se manifeste.

Mas esta solução leva a outra dificuldade de fundo. Se nós somos finitos, como é possível obter uma salvação eterna?
Bom, perante esta questão é melhor calarmo-nos até porque ninguém sabe o que se passa no Além. Mas podemos ter algum vislumbre com a ideia da tensão para transcendência, contida na afirmação de Pascal: “O homem transcende infinitamente o homem”. Este “infinitamente” não sabemos onde nos pode conduzir. Segue-se uma longa citação de um velho amigo. É longa mas vale a pena, espero eu. “Porque o corpo parece ter sido sempre o lugar da imanência. E a transcendência parece ser, parece ter sido sempre, o lugar sem espaço (se é que pode haver um lugar sem espaço) onde não cabe nem pode caber o corpo. Ora é precisamente este nó que Anselmo Borges (no livro Corpo e Transcendência) nos convida a dar com este livro e com este título: pensar o corpo (pensar o ser humano no seu corpo) como uma tensão para a transcendência, ou seja, como paixão e vertigem para se ultrapassar, num salto para o desconhecido, já que o que nos transcende a nós e ao nosso corpo, ou em sentido mais rigoroso, o que nos transcende a nós no nosso corpo, é-nos desconhecido e, por isso, inscreve-se no mistério mais profundo do ser; mas esse é um convite para pensar, ao mesmo tempo, a transcendência na sua co-implicação no corpo e com o corpo… É pelo corpo que o homem se inscreve na história e no tempo. Como na história e no tempo se inscrevem as crenças na sua relação com o sagrado e na sua aspiração ao absoluto. Nessa inscrição se joga a dialéctica entre a finitude e a infinitude que nos marca na nossa mais profunda essência e que marca a relação com a transcendência nos rostos históricos das diversas religiões… (Há) uma mediação do tempo, onde o mistério da morte continua a desempenhar o papel de grande desencadeador de todas as perguntas e a abertura à transcendência se inscreve mais uma vez como vislumbre do tempo para além do tempo e como horizonte escatológico de um “último” que o homem não pode dominar porque permanentemente lhe escapa e que apenas pode intuir como aquele para que o mundo está aberto, tanto quanto “ele”, que as religiões nomeiam “Deus”, está aberto ao mundo” (João M. André na apresentação do livro referido).
Também João Paulo II faz referência a esta tensão: “a família tem a missão de se tornar cada vez mais aquilo que é, ou seja, comunidade de vida e de amor, numa tensão que, como para cada realidade criada e redimida, encontrará a plenitude no Reino de Deus” (Familiaris Consortio, 17).

2013-04-01

O debate continua

A propósito deste tema do mal e especialmente do sofrimento dos nocentees, aqui deixo para saborear (assim se junta o útil ao agradável) uma página de Os Irmãos Karamazov de Dostoievski. Trata-se da parte final do livro quarto, capítulo quarto (na “minha” edição da editora Estúdios Cor, 1958, ocupa parte das páginas 220 a 223) e desenrola-se num diálogo entre os irmãos – o “místico” Aliocha e o contestatário Ivan – ou melhor num longo monólogo de Ivan, a que responde Aliocha com meia dúzia de sílabas.

- (…) A ciência do homem toda inteira não vale as lágrimas de uma criança. Não falo do sofrimento dos adultos, que comeram o fruto proibido. Leve-os o diabo. Mas as crianças? (…) Escuta. Limitei-me às crianças para ser mais claro. Não falei das lágrimas humanas, abreviando voluntariamente a minha conversa. Confesso com humildade não compreender este estado de coisas. Os homens são os únicos culpados: tinham-lhes concedido o paraíso. Cobiçaram a liberdade e arrebataram o fogo do céu, sabendo que seriam infelizes. Não merecem, pois, nenhuma piedade. Pelo meu pobre espírito terreno, sei apenas que existe o sofrimento, que não há culpados, que tudo passa e se equilibra. São as pataratas de Euclides, mas não consinto em viver apoiando-me nisso. Preciso de uma compensação, de outra forma destruir-me-ei. E não de uma compensação em qualquer sítio, no infinito, mas cá em baixo, uma compensação que eu veja. Acreditei, quero ser testemunha, e, se já estou morto, que me ressuscitem; seria pungente se tudo sucedesse sem mim. Não quero que o meu corpo, com os seus sofrimentos e os seus pecados, sirva unicamente para adubar a harmonia futura, em intenção não sei de quê. Quero ver com os meus olhos a gazela dormir junto do leão, a vítima beijar o seu assassino. É neste desejo que se baseiam todas as religiões, e eu tenho fé. Quero estra presente quando todos souberem o porquê das coisas. Mas as crianças, que farei delas? Não sou capaz de resolver tal problemas. Se todos devem sofrer para assim concorrerem para a harmonia eterna, qual o papel das crianças? Não é admissível que também devam sofrer em nome da harmonia. Porque serviriam de material destinado a prepará-la? Compreendo a solidariedade do pecado e do castigo, mas não se pode aplica-la aos inocentes; os filhos expiaram os erros dos pais, é a lei que não pertence a este mundo e que não chego a perceber. Um gracioso idiota objectará que as crianças crescem e terão tempo de pecar, mas não cresceu aquele pequeno de oito anos dilacerado pelos cães. Não blasfemo, Aliocha. Compreendo como o universo estremecerá quando o céu e a terra se unirem no mesmo grito; quando tudo o que vive ou viveu proclamar “Tens razão, Senhor, pois são-nos revelados os teus caminhos”; quando o verdugo, a mãe e o filho se abraçarem e declararem com lágrimas “Tens razão, Senhor”. Sem dúvida que então se fará luz e tudo será explicado. O pior é que admito uma solução deste género. E tomo as minhas providências, enquanto estou neste mundo. Pode ser que viva até àquele momento, ou que ressuscite na própria ocasião, e talvez grite como os outros “Tens razão, Senhor”, mas será contra vontade. Enquanto é tempo, recuso-me a aceitar essa harmonia superior. Acho que não vale uma lágrima de criança, uma lágrima daquela vitimazinha que invocava Deus no seu canto infecto; não vale não, porque essas lágrimas não foram resgatadas. Os carrascos sofrerão no inferno, poderás objectar. Mas de que serve esse castigo se as crianças tiverem também o seu inferno? Aliás, que valor tem essa harmonia que comporta um inferno? Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E se o sofrimento das crianças é para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo que a verdade não merece tal preço. Não quero que mãe perdoe ao verdugo; não tem esse direito. Perdoe-lhe o seu sofrimento de mãe, mas não o que sofreu o filho dilacerado pelos cães. Ainda que o filho perdoasse, ela não teria o direito. Se não existe o direito de perdoar, onde está a harmonia? Haverá no mundo algum ser que tenha esse direito? É por amor à humanidade que não quero semelhante harmonia. Prefiro guardar as minhas dores não resgatadas e a minha indignação persistente. Aliás, exageraram o preço dessa harmonia; custou-nos muito a entrada. Acho melhor devolver o bilhete… E é o que eu faço. Não me nego a admitir Deus, mas devolvo-lhe respeitosamente o meu bilhete.
- Chamo a isso revolta – murmurou Aliocha, de olhos baixos.
- Revolta? Não queria ver-te empregar esse termo. Pode viver-se revoltado? Ora eu quero viver. Responde-me com toda a franqueza. Imagina que tens nas tuas mãos o destino da humanidade e que, para tornares definitivamente as pessoas felizes, para lhes proporcionar a paz e o repouso é indispensável martirizar nem que seja um só ente, uma criança, e sobre as sobre as suas lágrimas a felicidade futura. Consentirias, em tais condições, em edificar tal felicidade? Responde sem mentir.
- Não, não consentiria.
- Nesse caso, podes admitir que os homens consintam em aceitar suficiente felicidade a troco do sangue de um pequeno mártir?
- Não, não posso admitir – respondeu Aliocha, de olhos cintilantes – Perguntaste-me se haverá no mundo um Ser que tenha o direito de perdoar. Sim, existe esse Ser. Pode perdoar a todos porque derramou o Seu sangue inocente por todos. Esqueceste-o, mas Ele é a pedra angular, e a Ele é que nós devemos gritar: “Tens razão, Senhor, pois são-nos revelados os teus caminhos”.
- Ah, sim, o “único sem pecado” e que “derramou o seu sangue”. Não o esqueci, não. Pelo contrário, admirava-me de não o teres ainda mencionado. Pois que nas discussões vocês começam em geral por salientá-lo.

2013-03-12

Problema do mal: que respostas?


Retomando o nosso tema, intrusado (de intrusão) pela reflexão sobre Bento XVI. A pergunta sobre o mal ou sobre o sofrimento é universal. É uma questão a quem ninguém pode fugir. Todos se perguntam pelo mal. E de resposta em resposta não podemos deixar de nos confrontar com a pergunta última: Porquê um mundo em que inexoravelmente todos sofrem?
Contudo os crentes são mais interpelados. O crente defronta-se com a pergunta do mal de modo mais complexo. Complexidade que pode sintetizar-se no célebre dilema de Epicuro:
                - Deus quer mas não pode (tirar o mal do mundo): não é omnipotente;
                - Deus pode mas não quer: não nos ama;
                - Deus não quer e não pode: não é omnipotente;
                - Deus pode e quer: então por que não elimina o mal?
Trata-se de um dilema cuja lógica é forte e contundente, de tal modo que, se as premissas estiverem correctas, é muito difícil manter a coerência da fé em Deus. Contudo, o próprio Epicuro não concluiu pelo ateísmo: “Os deuses de facto existem. Porque o conhecimento que deles temos é evidente… E não é ímpio o que nega os deuses do povo, mas quem atribui aos deuses a opinião do povo”, diz ele. Até porque “ na Antiguidade, o sofrimento podia levar em menor medida a um questionamento de Deus já que os próprios deuses estavam submetidos à Moira” (P. Henrici).
Mas o problema do mal no mundo mantém-se. Da Bíblia os crentes retiraram duas respostas.

O sofrimento de Job
O poema bíblico de Job trata exactamente deste tema: a injustiça do sofrimento do inocente. O livro é bem conhecido embora nem sempre se tenha em atenção o longo diálogo e troca de argumentos de Job com os amigos e depois com Deus, nem qual é a sua resposta ao problema.
O livro começa por apresentar Job como um homem feliz da vida. Mas de repente fica o mais pobre dos pobres. E lamenta-se (“Desapareça o dia em que nasci”: 3,3) dessa situação para a qual não encontra explicação. Entretanto chegam uns amigos para o consolarem. Contudo, em vez de serem solidários com Job preocupam-se em defender as suas teses e a doutrina tradicional da retribuição, o que não responde à angústia existencial de Job.
Os argumentos dos amigos de Job podem sintetizar-se nos seguintes:

1) Deus castiga os maus: “ A vida do ímpio é um tormento contínuo e poucos serão os anos concedidos ao opressor” (15,20). E nterpela Job sofre o castigo dos seus pecados: “Não é antes pela tua muita iniquidade e pelas tuas inúmeras culpas?” (22,5)

2) Deus assegura a prosperidade do justo: “Deus não abandona o homem íntegro nem estende a mão aos malvados. Ele encherá a tua boca de sorrisos e de júbilo os teus lábios” (8,20). Portanto, Job ainda pode ser feliz se se converter a Deus e reconhecer as suas faltas: “Reconcilia-te com Ele e viverás em paz; e assim terás de novo a felicidade” (22,21). Mas é esta atitude religiosa interesseira que Job recusa, porque é inocente e continua a amar Deu, e quer lutar contra esta espécie de mercantilismo religioso.
Estes dois argumentos são as duas faces da teoria da retribuição: Deus premeia os justos e castiga os malvados.

3) Ninguém é justo diante de Deus
Perante a teimosia de Job os amigos tentam outro caminho: diante da santidade de Deus ninguém pode considerar-se puro e justo: “Quem é o homem para se julgar puro e o filho de mulher para se considerar justo?” (15,14). Assim sendo, donde vem a ousadia de Job de exigir explicações a Deus? Job até concorda com este argumento: “Na verdade eu sei que é assim: como poderia o homem justificar-se diante de Deus. Se quisesse discutir com Ele não lhe responderia. Quem é sábio de coração, forte e poderoso para lhe poder resistir impunemente?” (9,2-4). Mas o que está em jogo é a sua vida e a sua felicidade e, portanto, vai lutar por isso com todas as suas forças e por todos os meios.
De qualquer modo, mantêm-se as posições divergentes: enquanto para os seus amigos, há uma razão conjuntural – a raiz da indignidade humana está no seu pecado –, para Job a razão é mais profunda e estrutural – a indignidade humana radica na própria condição criatural.

4) O sofrimento como prova pedagógica   
O seu amigo Eliú até apresenta um argumento novo: o do valor pedagógico do sofrimento: “Abre-lhes (aos justos) os ouvidos para os corrigir e exorta-os a que se afastem da iniquidade. Se O escutam e lhe são dóceis, terminam os seus dias na felicidade e os seus anos em bem-estar” (36,10-12).

Como se vê os amigos estão mais preocupados em defender uma doutrina – e a doutrina da retribuição era quase um dogma – do que olhar a realidade concreta que se manifestava em Job. Por isso o seu drama lhes passou ao lado. É altura de nós fazermos um exame de consciência ou uma autocrítica pelas vezes que também nós ficámos tão obcecados pela doutrina que esquecemos a pessoa.

Job não só refuta os argumentos dos amigos (em favor da doutrina da retribuição) como acaba por pôr em causa a própria atitude deles. A teoria está bem elaborada, só que é sistematicamente posta em causa pela realidade: “Uma só coisa vos quero dizer: Ele extermina tanto o inocente como o malvado. Se, de repente, um flagelo causa a morte, Ele ri-se do desespero dos inocentes. Deixa a terra entregue às mãos do ímpio” (9,22-24). Mas o maior desmentido desta doutrina está na própria experiência pessoal de Job: “Agora, peço-vos, olhai para mim; olhos nos olhos, assim não poderei mentir. Olhai atentamente, sem maldade; prestai atenção, está em jogo a minha inocência. Há porventura falsidade na minha língua?” 86,28-30). Por isso, acusa os amigos de falta de solidariedade: “Já por dez vezes me humilhaste e não vos envergonhais de me insultar. Mesmo que de facto tivesse errado, o meu erro só a mim diz respeito. Mas vós levantai-vos contra mim e repreendeis-me pelas humilhações que padeço… Por que me perseguis como Deus e vos mostrais insaciáveis da minha carne?” (19,3-5.22).
Job considera-se inocente e não sai desta posição. Está tão seguro disso, que não teme confrontar-se com Deus, mas em idêntica posição, pois Deus é mais poderoso e não há um árbitro que decida entre os dois: “Ele não é homem como eu para eu lhe responder e comparecermos os dois em juízo. Entre nós não há um árbitro que se possa interpor entre ambos; que Deus retire a sua vara de cima de mim para que não me assombre com o seu terror. Então falar-lhe-ei sem temor, pois, por mim, não tenho razões para temer” (9,32-35). Este Job é realmente um homem corajoso, que luta até ao fim pelas suas convicções. É o que sobra da sua dignidade: “Se agora me calo morrerei” (13,19). Mas como é tempo perdido argumentar com os amigos: “Vou falar com o Todo-Poderoso e desejo discutir com Deus. Vós não passais de charlatães, não sois senão fazedores de mentiras… Quantas são as minhas faltas e pecados? Mostrai-me a minha iniquidade e os meus crimes? Por que ocultas a tua face e me consideras um inimigo? Queres assustar uma folha levantada pelo vento e perseguir uma palha ressequida?” (13,3-4.23-25). Não há dúvida que ele é corajoso, uma coragem a raiar a blasfémia. Mas insiste, está mesmo determinado: “Que Deus me pese na balança justa e reconhecerá a minha inocência!... Oxalá eu tivesse quem me ouvisse! Eis a minha assinatura! Que o Omnipotente me responda!” (31,6.35). Sem resposta, Job apela para Deus… contra Deus, grita a Deus por Deus, apela para o “seu próprio” Deus contra o Deus castigador dos seus amigos e de toda a tradição: “Job eleva-se ao clímax de invocar Deus como Juiz e como Testemunhacontra o mesmo Deus. Tipifica a piedade e a fé (sem aspas!), precisamente porque não abdica de si mesmo… Não abdica da sua integridade. Apela a Deus, discute a sua sorte, mas não deixa de protestar contra o escândalo do sofrimento injusto. Isto é notabilíssimo!” (Oliveira Branco).
Há aqui uma espécie de esperança paradoxal, mas “não tem outra”. Embora experimentado, pelo menos aparentemente, pelo afastamento e pela inimizade de Deus, Job intui que a justiça de Deus é a única explicação de tudo e que ele próprio há-de ver reconhecida a sua inocência, e não apenas a título póstumo, porque não seria justo que tal não acontecesse. Job espera que Deus há-de ser Deus mesmo à custa do próprio Deus. Há aqui um jogo de palavras. Deus há-de ser Deus (como Job o entende) mesmo à custa do próprio Deus (como os amigos o entendem): “Calai-vos! Deixai-me falar a mim, aconteça o que acontecer. Colocarei a minha vida nas palavras da minha boca e exporei a minha alma nas palmas da mão. Mesmo que me tire a vida não tenho outra esperança e defenderei a minha causa diante de Deus. Esta minha audácia seria a minha salvação, pois nenhum ímpio é admitido à sua presença” (13,13-16).
E Deus aceita o repto. Numa primeira leitura, sentimos uma certa decepção: Deus não responde directamente às questões de Job e até o repreende. Mas uma leitura mais atenta mostra que as respostas estão precisamente nas suas aparentes não respostas: “Então do seio da tempestade, o Senhor respondeu a Job e disse: Quem é esse que obscurece os meus desígnios com palavras insensatas? Cinge os rins como um homem; vou interrogar-te e tu responder-me-ás. Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra? Diz-mo se a tua inteligência dá para tanto. Sabes quem determinou as suas dimensões? Quem estendeu a régua sobre ela? Sabes em que repousam as suas bases ou quem colocou nela a pedra angular, entre as aclamações dos astros da manhã e os aplausos de todos os filhos de Deus? Quem pôs diques ao mar?...” (38,1-8). E as perguntas seguem a um ritmo frenético percorrendo a natureza, depois o reino animal. A resposta de Deus reduz Job à sua insignificância. Job percebe que está a lidar com algo que é misterioso, que só é inteligível na lógica do mistério de Deus. E aceita a resposta que não é resposta, mas é a única possível: “Job respondeu ao Senhor e disse: Sei que podes tudo e que nada te é impossível. Eu, que desacreditei o teu desígnio com palavras sem sentido, falei de coisas que não entendia, de maravilhas que superavam o meu saber. Os meus ouvidos tinham ouvido falar de ti, mas agora vêem-te os meus próprios olhos. Por isso retracto-me e faço penitência cobrindo-me de pó e cinza” (42,1-6). Job sempre pretendeu que Deus fosse Deus, em termos de justiça. Mas só agora entende que, para que isso seja possível, é inevitável que Deus tenha uma lógica, a sua lógica, um caminho, uma justiça e uma sabedoria que sempre ultrapassarão aquilo que como criatura podemos entender.
Mas as perguntas ficam e as respostas não são respostas. Apontar para o mistério não é responder. O que o livro apresenta não é uma teoria explicativa do sofrimento mas um possível caminho através do sofrimento. No fundo, Job não encontrou resposta, mas antevê qualquer coisa e sente a alegria de Deus criticar os seus amigos e o elogiar a ele: “Depois que acabou de dirigir estas palavras a Job, o Senhor disse a Elifaz de Temans: Estou indignado contigo e com os teus amigos, porque não falaste rectamente de mim, como fez o meu servo Job” (42,7).

A cruz de Jesus
Job ficou sem resposta porque a resposta à sua pergunta está no Deus de Jesus que foi crucificado e ressuscitou. Tal como Job, também Jesus, é uma figura trágica. Também Jesus interpela o Pai, interpela Deus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Nenhum grito de angústia poderia descrever como este a dor e abandono que sente quem sofre. Mesmo quando seja humanamente bem acompanhado, chega sempre um momento em que este se torna o grito da humanidade, a oração de crentes e não crentes. O sofrimento torna-se, a partir de um certo patamar, uma experiência de solidão, onde os crentes se confrontam com o Deus que amam e os não-crentes com as mundividências que orientaram sua vida.
“Foi em Jesus, fiel à sua missão até ao fim, que Deus se revelou como amor. Deus é Amor. Para o crente, em Jesus, Deus confrontou-se com a negatividade na sua expressão máxima (morte na cruz) e desse modo venceu-a (ressurreição). De agora em diante, quem acredita em Jesus não é poupado à finitude e a tudo o que ela traz – a dor, o sofrimento, a malvadez, a morte –, mas em esperança sabe que a existência não é absurda, pois conta com a solidariedade de Deus” (A. Borges).

Há, no entanto, muitos teólogos que afirmam que Deus não quis nem precisava do sofrimento de Jesus. Dizer que Deus precisou do sangue do Filho ou seja de quem for é “do mais deplorável que um crente pode dizer de Deus. Como se Deus pudesse ser ‘cruel’, ‘vingativo’, ‘sádico’, capaz de querer a injustiça e o mal! Já era tempo de as ‘boas intenções’ da linguagem corrente se tornarem (mais) teo-lógicas”. Assim quando se fala de “aplacar Deus”, “suster a ira divina” notória em tantas biografias de santos ou em comentários sobre Fátima ou Lourdes há “um deficit, grave, de teologia” (Oliveira Branco). Ratzinger “jovem” recusava a teologia da “satisfação” que situa a cruz, “no interior de um mecanismo de direito lesado e restabelecido” e, por consequência, a noção de um Deus “cuja justiça inexorável teria exigido um sacrifício humano do seu próprio Filho. Esta imagem, apesar de tão espalhada, não deixa de ser falsa”.
Na homilia da missa da Ceia do Senhor (5.Abr.2012), o papa (Bento XVI) afirmava: “Jesus luta com o Pai: melhor, luta consigo mesmo; e luta por nós. Sente angústia frente ao poder da morte. Este sentimento é, antes de mais nada, a turvação que prova o homem, e mesmo toda a criatura viva, em presença da morte. Mas, em Jesus, trata-se de algo mais. Ele estende o olhar pelas noites do mal; e vê a maré torpe de toda a mentira e infâmia que vem ao seu encontro naquele cálice que deve beber. É a turvação sentida pelo totalmente Puro e Santo frente à torrente do mal que inunda este mundo e que se lança sobre Ele. Vê-me também a mim, e reza por mim. Assim este momento da angústia mortal de Jesus é um elemento essencial no processo da Redenção; de facto, a Carta aos Hebreus qualificou a luta de Jesus no Monte das Oliveiras como um acontecimento sacerdotal. Nesta oração de Jesus, permeada de angústia mortal, o Senhor cumpre a função dos sacerdotes: toma sobre Si o pecado da humanidade, toma a todos nós e leva-nos para junto do Pai”.

Uma pequena nota final para enquadrar estas afirmações de Ratzinger, como teólogo, na sua fase “jovem” e noutra mais adiantada. Foi um dos grandes teólogos do Concílio, como assessor do cardeal Frings, bispo de Colónia, criticou duramente a Cúria pela sua atitude antimoderna, foi um dos subscritores da Carta dos 77 que pedia a liberdade de investigação para os teólogos. Contudo o Maio de 68, que estimulou a revolta de estudantes de teologia, levou-o a flectir as suas posições: abandonou a universidade de Tubinga e o seu amigo Hans Küng e foi para a de Ratisbona, até que chegou a Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.

2013-02-28

Na despedida de Bento XVI

Hoje, exactamente hoje, pela primeira vez em 600 anos um Papa renuncia ao seu cargo. Para recordar este facto quase inédito, aqui deixo uma pequena reflexão sobre este acontecimento num artigo que escrevi para o Correio de Coimbra.


PODER OU SERVIÇO?
A resignação de Bento XVI é um acto tão cheio de consequências, que parece um autêntico gesto profético. Um dos aspectos diz respeito ao modo de entender o poder. Bento XVI revelou um verdadeiro desapego ao poder. Certamente porque entendia o poder como serviço e não como soberania. Essa percepção permitiu-lhe a lucidez de perceber quando devia renunciar. E o mais importante é que não recusou assumir uma atitude de ruptura com o que era politicamente correcto, outra forma de denunciar o poder-poder. Ao sentir que não estava em condições de servir saiu para dar lugar a outro que pudesse servir melhor, em coerência com o que afirmara em 2010: “Quando um Papa tem clara consciência de que já não está em condições de cumprir os deveres do seu ofício, física, psicológica e espiritualmente, tem o direito, e em algumas circunstâncias, também o dever, de se demitir”.
Esta é uma lição para quem detém o poder. Neste mundo assistimos a presidentes que alteram a constituição para poderem ser reeleitos, a partidos que distorcem a lei para poderem candidatar autarcas para lá do prazo. Estamos nos antípodas do poder-serviço, mesmo reconhecendo a boa vontade de alguns. Mas este espírito predomina nos pequenos e grandes poderes da sociedade e, infelizmente, nos pequenos e grandes poderes da Igreja, onde, por exemplo, há também jogos de poder, falta de transparência financeira ou supostas pressões sobre João Paulo II para não resignar. Verdade ou não, Bento XVI não quis informar ninguém para não ficar sujeito a essa desconsideração e desrespeito. Portanto, ao assumir esta atitude, o Papa foi claro e deixou um desafio a todos os poderes. Como vão ser exercidos? Como são exercidos? E aí estão as recomendações de Jesus: “Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas e como os grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo e quem quiser ser o primeiro entre vós faça-se o servo de todos” (Mc 10,42-44).
Este gesto, que tem várias leituras, muitas delas baseadas em preconceitos e clichés, deixou bastantes católicos angustiados, no fundo, com o problema do poder: “Dois papas? E quem manda? Qual é o representante de Cristo na terra? Quem está em contacto directo com a divindade?”. Cá está uma concepção de poder que o próprio gesto papal contestou. A esta “angústia” pode facilmente responder-se comparando com as próprias dioceses: quando um bispo resigna e é nomeado um substituto quem manda? Por outro lado, a abdicação de um papa está prevista no Código de Direito Canónico: “Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao cargo, para a sua validade requer-se que a renúncia seja feita livremente e devidamente manifestada, mas não pode ser aceite por ninguém” (Cân. 332 § 2).
Mas o mais grave surge ao analisarmos as causas mais fundas dessa angústia. A perturbação resulta do facto de (não) se saber quem, qual deles é o vigário de Cristo. E isto é muito grave se olharmos para o modelo de Igreja que estes católicos têm subjacente. Sobretudo quando já passaram 50 anos sobre o Concílio Vaticano II é entristecedor verificar que ainda há tanta gente que tem na sua cabeça uma imagem de Igreja piramidal. Temos uma pirâmide com o papa no vértice recebendo ordens “do alto” e dimanando-as por aí abaixo: do papa para os bispos, dos bispos para os padres. Esta imagem clássica dura e perdura porque os católicos não estudam, não reflectem os documentos do Magistério, não aprofundam os seus conhecimentos, contentando-se com a sua limitada catequese de infância com dezenas de anos. Bastariam alguns textos para perceber que a Igreja comunhão “é a ideia central e fundamental dos documentos do Concílio” (Sínodo de 1985). O centro, portanto, não é o Papa, mas a Eucaristia, Jesus Cristo: nada se pode antepor a Jesus Cristo nem mesmo o Papa. É, unidos em torno da Eucaristia, que todos somos chamados a dar testemunho do Reino de Deus, de que a Igreja é sinal e sacramento. Não se entra na Igreja pelo sacramento da Ordem mas pelo sacramento do Baptismo, sacramento fundamental sem o qual nenhum outro pode ser celebrado. Pelo Baptismo os fiéis são “incorporados em Cristo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo,” (LG 31).
Assim sendo, todos os cristãos são e, portanto, devem ser representantes de Cristo na Terra.



2013-02-20

Sofrimento: uma questão universal


Alguns posts atrás, referia-me a dois aspectos que gostaria de retomar: o problema dos crentes e dos não crentes perante as contradições da vida e algumas palavras Bento XVI em Auschwitz. Ao primeiro, dediquei algumas ideias retiradas do Qohélet. Quanto ao segundo começo por recordar as palavras de Bento XVI (Auschwitz; 28.Maio.2006): “Tomar a palavra neste lugar de horror, de acúmulo de crimes contra Deus e contra o homem sem igual na história, é quase impossível e é particularmente difícil e oprimente para um cristão, para um Papa que provém da Alemanha. Num lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silêncio aterrorizado um silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto? É nesta atitude de silêncio que nos inclinamos profundamente no nosso coração face à numerosa multidão de quantos sofreram e foram condenados à morte; todavia, este silêncio torna-se depois pedido em voz alta de perdão e de reconciliação, um grito ao Deus vivo para que jamais permita uma coisa semelhante.”
As palavras “toleraste” e “jamais permita uma coisa semelhante” deixam-me perplexo sobre a vontade de Deus, o seu papel na História e sobre a minha atitude na História e na minha relação para com Deus. Pois, para tolerar ou não, torna-se indispensável uma acção directa na história da humanidade. Para “jamais permitir” implica igualmente uma intervenção directa. Como? E, porque iria Deus mudar a “sua” vontade, só porque alguém lhe pede para mudar?

Atitudes “impróprias”
E aqui colocam-se, pelo menos, dois problemas: o da oração, especialmente do tipo petição, que deixarei para outro post, e a eterna questão do sofrimento e do mal em geral.
O sofrimento é realmente um (o) grande problema com que nos deparamos. É algo que não só nos mostra a nossa finitude como nos deixa sem grandes capacidades de resposta: a dor magoa, deixa-nos indispostos e dobrados sobre ela própria, no fundo, dói. A dor deixa-nos desconcertados: aos que sofrem e aos que vêem sofrer. Daí algumas reacções frequentes, mas que não podem aceitar-se sem mais. Eu pelo menos tenho dificuldade em aceitar. “Tem que ter paciência”, “deve resignar-se” são conselhos muito sugeridos. Como se fosse um crime, o sofredor revoltar-se, dizer “palavras feias”, que a prática ensina (e agora também, segundo parece, a própria ciência) que parecem tornar as dores mais suportáveis. Um bom modelo é Job, que não é tão paciente como se diz: “Desapareça a dia em que nasci e a noite em que foi dito ‘Foi concebido um varão!’. Converta-se esse dia em trevas! Deus lá do alto não se preocupe com ele…´” (Job 3,3ss). Quando o sofrimento cai sobre alguém de pouco valem as teorias. Porque o que fica, muitas vezes, é o protesto e a revolta e, às vezes, até a blasfémia. Isto não significa que não seja útil e oportuna a palavra amiga que ajude a passar a provação. Uma palavra que por vezes passa pelo silêncio respeitador. Os amigos de Job “ficaram sete dias e sete noites sem lhe dizer palavra, pois viram que a sua dor era demasiado grande” (Job 2,13).
Outra atitude que tenho muita dificuldade em aceitar é a do velho chavão, tirado da vida de alguns santos e multiplicado pela devoção popular: Se Deus te faz sofrer tanto é porque te ama muito”. O amor de Deus aparece medido pela quantidade do sofrimento que cada um sofre! Que Deus é este!? Voltamos às velhas imagens de Deus, embora por outra via.

Problema do mal uma questão universal
A pergunta sobre o mal ou do sofrimento é universal, porque atinge todos os homens e todas as mulheres de todos os tempos e lugares. É, aliás, uma pergunta que se colocou antes dos outros grandes problemas da filosofia. Nas literaturas mais antigas já encontramos esta pergunta.

Da cultura egípcia chegam dois textos sobre o sofrimento datados do século XX aC:
Diálogo de um desesperado com a sua alma: descreve o aborrecimento da vida causado pela desordem e pela falsidade da sociedade. Critica a falta de solidariedade dos amigos: “A quem posso falar hoje? Os companheiros são maus; os amigos de hoje não amam. A quem posso falar hoje? (comparar com Job 19,13-19). Os corações são rapaces, pois cada um se apodera dos bens do companheiro. Os homens honrados desapareceram, enquanto o violento tem acesso a qualquer lugar”. Apesar de a sua alma lhe apresentar argumentos para viver – coragem, gozo do momento presente e moderação dos desejos como fonte de serenidade – este Job egípcio faz um hino ao suicídio como meio de alcançar a felicidade: “A morte está hoje diante de mim como a cura para um doente, como a libertação para um prisioneiro. A morte está hoje diante de mim como um perfume de mirra, como um prazer vivido sob um guarda-sol num dia de calor tórrido. A morte está hoje diante de mim como o aroma da flor de lótus, como se sente o que está nos limiares da embriaguez. A morte está hoje diante de mim como a aproximação da chuva, como o regresso de uma expedição dos homens a suas casas. A morte está hoje diante de mim como o clarear do céu, como o homem que caça aves por lugares desconhecidos. A morte está hoje diante de mim como o desejo de um homem por ver a sua casa depois de ter passado muitos anos no cativeiro”.
Queixas de um camponês eloquente: com uma estrutura literária semelhante à do livro de Job descreve as lamentações de um camponês, explorado por um rico proprietário, queixando-se das injustiças de que é vítima. Tal como o infeliz Job, também o justo sofredor mesopotâmico sofre apesar de estar consciente da sua inocência: “Acabei por ser como um homem surdo… Em tempos vivia como um senhor mas agora converti-me num escravo (comparar com Job 29,2ss). O furor dos meus companheiros aniquila-me. O dia é um suspiro; a noite um pranto. Mal cheguei à vida e já ultrapassei o tempo fixado (comparar com Job 14,1ss). Olhei em redor de mim: mal sobre mal! Aumenta a minha opressão, não posso encontrar o que é recto. Gritei ao meu deus e não me mostrou a face (comparar com Job 23,3.8ss). Invoquei a minha deusa, mas ela não levantou a sua cabeça”. E também a mesma incompreensão sobre os desígnios de Deus: “Quem poderá compreender o desígnio dos deuses? Os desígnios divinos são águas profundas. Quem poderá compreendê-los? Como vão os seres humanos conhecer a conduta de um deus” (comparar com Job 37,23).

Também a cultura mesopotâmica nos legou vários textos:
Lamentação de um homem ao seu deus, chamado o “Job sumério”: um jovem crente, atingido pela doença, dirige-se ao seu deus Marduk, queixando-se da sua sorte e pedindo a sua intervenção. Reconhece que nenhum homem está isento de culpa: “Eles dizem – os sábios – uma palavra justa e clara: Nunca uma mãe deu à luz uma criança sem pecado, jamais existiu um trabalhador sem culpa.” (comparar com Job 15,14).
Diálogo de um aflito com o seu amigo (ou Teodiceia babilónica): num diálogo poético, alguém, deserdado da sorte, protesta a sua fidelidade aos deuses. Apesar de concluir que a sua piedade parece ser inútil (“De que me serviu ter-me curvado perante o meu deus?”) e de pôr em causa a justiça divina (“Aqueles que não procuram a deus seguem os pelo caminho da prosperidade, enquanto que os que seguem a deusa são humilhados e empobrecidos.”), acaba por pedir ao seu deus que o ajude: “Que o deus que me abandonou venha em meu auxílio, que a deusa que me esqueceu se mostre misericordiosa.” Esta obra é a que mais se assemelha ao livro de Job. Inclusivamente apresenta um diálogo com um amigo que começa também por defender a tese da justa retribuição (“O homem humilde que teme a sua deusa, acumula riqueza… Àquele que suporta o jugo do seu deus nunca falta alimento, mesmo que seja escasso.”) e acusá-lo de blasfémia (“Meu caro amigo, os teus pensamentos são perversos, esqueceste a justiça e blasfemas contra os planos do teu deus.”). Mas acaba quase por dar razão ao amigo sofredor, ao reconhecer a insuficiência da tese da justa retribuição e atribuindo a causa do mal directamente aos homens mas, de certo modo, indirectamente aos deuses que o criaram: “Narru, rei dos deuses, que criou o homem, o majestoso Zulummar, que juntou para eles a argila, e a rainha Mami, a rainha que os modelou, deram uma linguagem falsa à raça humana, de mentira, não de verdade, a proveram para sempre. Falam com solenidade de um rico: ‘És um rei, mereces a riqueza´ mas a um pobre, tratam-no como um ladrão, só têm mal para dizer dele e vão tecendo a sua morte.”

Estas citações retirei-as das intervenções de Herculano Alves e José Ornelas na XIII Semana Bíblica Nacional e do livro de M. García Cordero, Biblia y Legado del Antiguo Oriente.

De qualquer modo, o livro de Job, pela sua dimensão, articulação e profundidade, ultrapassa de longe qualquer outra obra da Antiguidade. O problema do mal, na “forma de Job” deve remontar ao início da escrita (3000 aC). O Job bíblico recolheu os motivos literários e filosóficos das mais antigas tradições do Médio Oriente. Mas enriqueceu-os, porque é muito mais recente: “A região de Hauran deve ter oferecido a lenda primitiva do livro de Job; o Egipto forneceu-lhe as imagens e dois géneros literários, a pergunta retórica e a confissão negativa; a Mesopotâmia inspirou provavelmente o diálogo de Job com os seus amigos e é a tela de fundo cultural do livro… Finalmente, a própria Bíblia, nas suas tradições profética, sálmica e sapiencial não só colocou à disposição do autor um conjunto de imagens tradicionais, mas criou uma atmosfera teológica que confere ao drama de Job a sua verdadeira originalidade” (J. Lévêque). Portanto, o livro de Job representa um ponto de chegada de uma longa reflexão sobre a nossa finitude, recebendo e reflectindo, com espírito universal e honesto, o contributo da tradição e do património da humanidade, e elevando-a como novo dramatismo, ao nível de obra-prima da literatura universal e da reflexão de fé. Neste sentido, o drama de Job não é um drama judeu, para judeus, mas uma reflexão sobre o homem, de qualquer tempo e lugar, informada pela visão javista do mundo, do homem e de Deus. "Job talvez seja o mais elevado texto que a revelação bíblica nos oferece sobre o mistério do mal e de Deus, ‘escandalosamente’ interligados entre si ao longo da história. Mas o sentido supremo do livro é precisamente o de se chegar até Deus, atravessando-se a dramática estrada do sofrimento" (G. Ravasi)


Como já va longa a reflexão, continuarei, nos próximos posts, com a temática do sofrimento e do mal.