divórcio ou casamento eterno?...

2009-02-25

Descer pelo telhado

O que mais me impressionou no evangelho de domingo passado não foi o milagre de Jesus. Foi a criatividade das pessoas que transportavam o paralítico.
Os que carregavam um doente precisavam de se aproximar de Jesus, mas havia muita gente à volta. Parecia mesmo impossível ultrapassar aquela barreira humana. E logo aqui me veio ao espírito as nossas dificuldades em nos aproximarmos de Jesus. São muitos os obstáculos exteriores: o ruído à nossa volta, a saturação de acontecimentos, uma sociedade que pensa não precisar de Deus, os estímulos ao egoísmo, ao hedonismo e ao consumismo, a permissividade da “porta larga”. Mas há também muitas dificuldades interiores: a dificuldade em parar e poder pensar, a disponibilidade para o receber, um coração atafulhado de quinquilharias sem espaço para os projectos do Reino.
Perante “esta multidão” que não nos deixa aproximar de Jesus, temos que descobrir novos caminhos, curtocircuitar as voltas do mundo e do nosso coração. Como? Cada um terá de descobrir os seus.
Mas estes homens que levavam o paralítico apontaram-nos o caminho: em vez de entrar pelos caminhos normais, entrar em casa ela porta; desceram pelo telhado.
Nesta Quaresma, cada um de nós é chamado a descobrir o seu “descer pelo telhado”; isto é, caminhos não habituais que a rotina já tornou inócuos. Descer pelo telhado é descobrir o melhor caminho para nos encontrarmos com Jesus: implica retirar as telhas, desmontar parte da estrutura da casa, descer a pulso e carregar “o fardo uns dos outro”. No fundo ou no fim deste caminho difícil, desta “porta estreita”, está Jesus e o nosso encontro com ele torna-se “face a face” sem a opacidade do nosso meio ambiente nem a fala de transparência da nossa fé.

Mas também a Igreja se quer chegar ao mundo para levar a mensagem libertadora de Jesus terá de seguir caminhos diferentes dos que seguiu até agora. Tem de ser criativa e inovadora como aqueles homens que tinham um objectivo bem definido. Para isso escolheram a melhor estratégia para aquele momento concreto. A Igreja vive num mundo em profunda mudança, num mundo sem norte perante os novos e ainda não definidos paradigmas, num mundo agónico e prometeico, que ainda não percebeu que o seu muito saber e os seus esforços precisam de ser fundamentados em bases novas não só materiais mas também espirituais.
A Igreja tem uma (não a) proposta libertadora, a proposta de Jesus Cristo, mas tem de ser capaz de mostrar a sua bondade e ser capaz de a apresentar de forma sedutora.
E sem rebentar os telhados velhos e os ferrolhos enferrujados de uma pastoral soft, bonzai e anémica não convence ninguém. Se não for capaz de actuar com coerência, com testemunho sério, com um estilo de vida interpelativo e com palavras que as pessoas entendam, sem fugir à real realidade de hoje, sem estar a dar respostas a perguntas que ninguém faz, nunca conseguirá ultrapassar as barreiras que a separam do mundo. E separada do mundo a sua mensagem estiola e morre não por causa do seu valor intrínseco, mas pela inépcia dos mensageiros e pela inadequação dos métodos de transmissão.
E então o lamento de S. Paulo devia tornar-se a preocupação colectiva: “Ai de mim se não evangelizar!”

2009-02-21

Holocausto

Não vale a pena recordar que o Holocausto foi um dos enormes crimes contra a humanidade. Foi uma tentativa, pensada e devidamente programada, de um genocídio, da eliminação definitiva de um povo, que não podia conspurcar a pureza do homem ariano.
E isto deve ser recordado e ensinado, em toda a sua crueldade, nas nossas escolas para que ninguém mais se sinta indiferente a situações deste tipo.
Foi e é um desafio, uma inescapável interpelação, às nossas convicções, aos nossos conceitos de ser humano. Até a própria teologia foi obrigada a perguntar-se: “Onde esta(va) Deus no Holocausto?”.

Dito isto, gostaria de recordar que não houve só um Holocausto.
Houve os Goulags, denunciados e quantificados por Soljenitzny e por documentos como “O Livro Negro do Comunismo”.
Houve os grandes e pequenos holocaustos do capitalismo, recordados, por exemplo, no “Livro Negro do Capitalismo”.
Houve muitas tentativas de genocídios: dos Arménios, pelos Turcos; dos Kurdos por não sei quantos governos, para já não falar de tantos outros massacres como os do Ruanda ou do Darfur.
Tão críticos que nós somos para com os alemães da época e tão coniventes com todas estas versões mais ou menos “comentadas” do Holocausto.

Mas há um outro Holocausto, que mata mais pessoas e do qual todos somos culpados. São os milhões de seres vivos que morrem de fome e de doenças perfeitamente curáveis, só porque não os queremos ajudar. Os nazis matavam, dando gases letais às suas vítimas: judeus, ciganos, homossexuais, etc.. Nós matamos, não dando pão e medicamentos, que ficariam ao “preço da chuva”. Por isso, somos todos nós culpados. Sabemos bem disso. Mas aceitamos de consciência tranquila tudo isso. Impávidos e serenos, como se acontecesse noutro planeta. Nada fazemos, para lá de tímidas manifestações de alguns grupos e ONGs que vão falando disso. Ignoramos os relatórios da Amnistia Internacional ou dos Médicos sem Fronteira.

Que moralidade temos nós para acusar os alemães da época do nazismo?

Que mundo queremos nós construir?
Apenas um mundo onde eu viva bem porque nada tenho a ver com o problema dos outros? Que bonita e aconchegadora é a expressão "o problema não é meu"!
Não é a humanidade uma única família, onde todos somos irmãos? Ou, pelo menos, devíamos ser?
Façamos o que fizermos, desta responsabilidade ninguém nos pode livrar. Porque apesar da debilidade da nossa comunicação social, todos vamos sabendo o suficiente para não poder ignorar todos estes crimes contra a humanidade.

Não fundo, não passamos de uns hipócritas e de uns egoístas!

2009-02-20

O rapaz do pijama às riscas

Num momento em que o Holocausto voltou a ser objecto de notícia, este filme notável vem ajudar a olhar para este facto histórico de um modo muito “educativo”.
Ali se cruzam as várias posições e atitudes por que terão passado os alemãs da época, através da vida e dos sentimentos de uma família de quatro pessoas.
O pai, de formação militar, foi nomeado para director de um dos campos de extremínio. Ele não tem dúvidas: é um soldado e, como tal, só lhe resta obedecer. Esta foi uma das desculpas mais usadas pelos criminosos nazis. Esta continua ainda hoje uma razão válida para muita gente: há quem (muitos quens) que falam (nos cafés), criticam (entre amigos), fazem manifestações de rua (escondidos na multidão), mas quando chega a altura, por medo ou talvez antes por falta de estrutura psicológica, fazem exactamente o contrário daquilo pelo que aparentemente lutaram. Estas atitudes, sobretudo quando atingem proporções alarmantes são um veneno extremamente corrosivo para a cidadania e para a construção de uma sociedade justa.
A mãe, que foi enganada pelo marido, não sabe bem o que se passa. Certamente porque confia nele nem sequer se interroga sobre o que está a acontecer. Até que toma consciência da realidade e acusa o marido que se defende com a necessidade de defender a pátria dos inimigos. Mas também ela receia tomar uma posição drástica, acabando por ir tentando afastar-se daquele local, porque não pode viver com aquele cheiro a carne queimada e para poder afastar os filhos daquela dura realidade. Mas não lhe passa pela cabeça fazer qualquer denúncia. Por medo? Por que não tem suficiente consciência social?
A filha, apaixonada por um dos militares, assume em plenitude os ideais nazis, que um zeloso professor lhe tenta inculcar a ela e ao irmão.
O irmão, de 8 anos, que pensava ir para junto de uma quinta, é o único que se interroga quando vê todos os empregados da quinta vestidos de pijama. Trava amizade com um miúdo da sua idade que está no campo.
A violência psicológica do filme, que vai crescendo com as reacções dos vários personagens, assume um tom verdadeiramente dramático pelo contraste com a inocência de ambos os miúdos. Ele, o mais novo, é o único que se interroga, que faz perguntas, que procura informar-se, que traiu o amigo por medo, certamente, mas… logo se arrepende.

As negações do Holocausto aparecem ciclicamente e têm vindo de vários lados. Uma das últimas veio do bispo católico integrista, o inglês Richard Williamson, a quem Bento XVI respondeu com palavras de condenação da sua atitude e também do próprio Holocausto. Só um parêntesis, curiosamente quem acabou por ser mais criticado foi Bento XVI e não o bispo Williamson.

Mas há quem, apesar de negar o Holocausto, o perpetua. E precisamente quem menos o devia fazer. O que os israelitas estão a fazer aos palestinianos civis é uma versão moderna do Holocausto. Afinal parece que para eles o Holocausto é um mero acontecimento histórico que serve para se apresentarem como vítimas, mas não os leva a ter comportamentos mais humanos e não têm qualquer repugnância em fazer o mesmo.
E os recentes resultados eleitorais indiciam que esta mentalidade continua ainda na cabeça de muitos "cidadãos" israelitas.
Convém, contudo, não esquecer os muitos israelitas que procuram sinceramente a paz e se opõem inclusivamente a ordens militares para bombardear escolas, hospitais, edifícios civis, que os chefes militares israelitas mandam atacar. O que, atendendo aos sofisticados meios tecnológicos para fazer bombardeamentos cirúrgicos, estas só podem ser ordens de tipo nazi. Os meus respeitos aos resistentes!
É assim que se constrói a paz e a justiça: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu” (Mt 5,10).

2009-02-13

Direitos e deveres da Igreja

É tal a velocidade com que os acontecimentos se desenrolam que já poucos, incluindo possivelmente os próprios católicos, recordarão as palavras episcopais sobre o casamento de homossexuais e a sua “sugestão” para os católicos não votarem nos partidos que o apoiem.
Mas eu gostaria de fazer alguns comentários na medida em que esta situação envolve o problema sempre difícil do diálogo Igreja / Mundo e por arastamento o da evangelização.

Na minha opinião, a Igreja tem o direito inalienável de afirmar publicamente as suas posições doutrinais e de princípio, como aliás acontece com qualquer cidadão ou grupo numa sociedade democrática e portanto plural. Mais, não tem apenas o direito; tem também o dever: “Ai de mim se não evangelizar” (1Cor 9,16).
Também é certo que a Igreja deve estar sempre muito atenta aos sinais dos tempos e daí deduzir novas respostas, mesmo a problemas velhos. Neste sentido sempre se poderá dizer que a própria moral não só não é um dogma, como está também ela sujeita ao evoluir da história. Aliás o próprio Deus deu-nos conta da sua pedagogia: “por causa da dureza dos vossos corações” (Mt 19,8). E também estabeleceu uma norma absoluta: “não deveis comer da árvore do bem e do mal”. Este mandato é para todos, incluindo a própria Igreja, não só como instituição, mas nos seus diferentes membros e funções.
Naturalmente que este trabalho de atenção aos sinais dos tempos e das respostas adaptadas a cada época (o termo é da GS), deve “obrigatoriamente” envolver os três grandes saberes teológicos: da hierarquia (que preside à unidade na caridade), dos teólogos (que têm o carisma da reflexão e da criatividade) e do restante povo de Deus (que mergulhados nos acontecimentos do dia a dia aí é chamado a lê-los e a vivê-los cristãmente). Este é um debate interno, no qual a sociedade civil nada tem que se imiscuir.

Já muito diferente me parece a sugestão ou indicação de voto. A hierarquia não tem por missão indicar aos católicos em quem devem ou não votar (cf SRS 41). Há uma justa autonomia das realidades temporais, incluindo a esfera política (GS 36), que a Igreja tem o dever de respeitar. Uma coisa é a obrigação de anunciar as suas posições, outra é impô-las, até portanto a Igreja não é a dona da verdade, embora muitos responsáveis pensem que sim.
A missão da Igreja é formar devida e permanentemente a consciência dos cristãos e não dizer-lhes, como se de crianças se tratasse, o que devem fazer na sua vida do dia a dia. O Concílio é muito claro nesse capítulo: “As tarefas e actividades seculares competem como próprias, embora não exclusivamente, aos leigos. Por esta razão, sempre que, sós ou associados, actuam como cidadãos do mundo, não só devem respeitar as leis próprias de cada domínio, mas procurarão alcançar neles uma real competência. Cooperarão de boa vontade com os homens que prosseguem os mesmos fins. Reconhecendo quais são as exigências da fé e por ela robustecidos, não hesitem, quando for oportuno, em idear novas iniciativas e levá-las à realização. Compete à sua consciência previamente bem formada, imprimir a lei divina na vida da cidade terrestre. Dos sacerdotes, esperem os leigos a luz e força espiritual. Mas não pensem que os seus pastores estão sempre de tal modo preparados que tenham uma solução pronta para qualquer questão, mesmo grave que surja, ou que tal é a sua missão. Antes, esclarecidos pela sabedoria cristã e atendendo à doutrina do magistério, tomem por si mesmos as próprias responsabilidades” (GS 43; sublinhado meu).
Portanto a grande preocupação dos nossos Bispos devia ser esta formação da consciência dos cristãos para os tempos de hoje. Até porque, e já lá vai mais de um ano, essa foi uma das acusações que Bento XVI lhes fez. E não sinto que esteja a haver uma séria preocupação com esse grande e primário desafio pastoral.
Não me refiro a encontros e cursos. Refiro-me a questões muito mais de fundo que envolvam uma percepção actualizada da realidade actual, uma adequada formação dos padres para as suas prioridades máximas (serem os primeiros catequistas da paróquia e os primeiros construtores de uma comunhão efectiva (outro dos desafios de Bento XVI)), uma contínua actualização dos agentes pastorais, a capacidade profética de ler os sinais dos tempos e de "inventar continuamente" novos caminhos pastorais, já que a actividade pastoral exige hoje muito saber e não apenas a boa vontade e a rotineira acção de milhares de piedosos católicos.
Enquanto esta mentalidade não for profundamente alterada, continuaremos a ser o “rebanho de Deus”, que espera “humilde e reverente” que os Pastores digam em quem deve ou não votar ou que pura e simplesmente ignora as suas palavras, e não um verdadeiro Povo de Deus que assume e testemunha, dentro da suas limitações, os valores do Reino que Jesus veio pregar e pelos quais deu a vida.

2009-02-08

HelderCâmara


Fez ontem cem anos que nasceu D. Hélder da Câmara e a 28 de Agosto fará dez anos que morreu. Era o décimo primeiro filho de um maçom e de uma professora primária.
Ficou muito conhecido pela sua atenção aos mais desfavorecidos e pelo seu amor a uma Igreja cada vez mais fiel a Jesus Cristo e aos homens e mulheres de hoje.

Para um país como o nosso em que a cidadania não saiu do inverno e o medo de lutar pela justiça e pelo amor parece ser uma regra de ouro, Hélder da Câmara é um modelo a seguir.

Já padre, teve um papel de intervenção social no mínimo notável. Para apoiar os operários fundou a Legião Cearense do Trabalho. Mas não esqueceu os mais esquecidos: por exemplo, para as lavadeiras e empregadas domésticas criou a Sindicalização Operária Feminina Católica; por uma habitação digna para os moradores das favelas, fundou a Cruzada São Sebastião; para os que viviam em condições muito difíceis criou uma espécie de banco de microcrédito, o Banco da Providência.

Foi um forte opositor à ditadura militar do Brasil, lutando contra o seu regime ditatorial e defendendo acerrimamente os direitos humanos.

Dentro da Igreja, esteve entre os fundadores da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Na sua diocese criou a Comissão Justiça e Paz e apoiou as comunidades de base.
Para lá da sua acção importante no Concílio, foi um dos promotores do “Pacto das Catacumbas”, assinado por cerca de 40 bispos, no dia 16 de Novembro de 1965, nas catacumbas de Diomitila, depois de terem celebrado a Eucaristia. Cada um dos presentes assumiu o compromisso de viver pobre, rejeitar as insígnias, símbolos e privilégios do poder e de colocar os predilectos de Deus no centro de seu ministério episcopal, explicitando assim a evangélica opção pelos pobres.

Finalmente, para os dias de hoje, seria bom que retivéssemos o seu lema episcopal: “esperar contra toda a esperança” 8Rom 3,18).

Penso que estes dados biográficos deviam ser distribuídos e meditados por todos especialmente os cristãos: intervenção cívica na defesa da justiça e da solidariedade; opção prioritária pelos mais pobres não só pela palavra mas sobretudo através de iniciativas concretas.
Dentro da Igreja, procurou abri-la ao mundo, apoiou o diálogo com a sociedade, estimulou a participação de todos, propôs que a Igreja vivesse sem ostentações, recusasse os privilégios e se abrisse sobretudo aos mais pobres.

Foi um profeta, uma espécie em vias de extinção na nossa Igreja.