divórcio ou casamento eterno?...

2009-07-31

CinV (2) Homenagem a Paulo VI

Bento XVI pretende com esta encíclica "prestar homenagem” a Paulo VI e actualizar os seus ensinamentos sobre o desenvolvimento humano integral para os nossos dias (8).
Foi há 42 anos que Paulo VI escreveu a memorável encíclica Populorum Progressio (26.Março.1967) sobre o desenvolvimento dos povos, que dividiu em duas partes:
I Parte: Para o desenvolvimento integral do homem (6-42), na qual
- partindo das aspirações dos homens a libertar-se de tudo o que ofenda a sua dignidade e daquilo que chama “o choque de civilizações” (“guardar instituições e crenças atávicas, mas renunciar ao progresso, ou abrir-se às técnicas e civilizações vindas de fora, mas rejeitar, com as tradições do passado, toda a sua riqueza humana”: 10),
- apresenta a visão cristã do desenvolvimento, que “para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo” (14) exigindo um “humanismo novo” pois só “assim poderá realizar-se em plenitude o verdadeiro desenvolvimento, que é, para todos e para cada um, a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas” (20).
Conclui repetindo de novo uma das suas afirmações mais citadas: “É necessário promover um humanismo total. Que vem ele a ser senão o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens?” (42).
II Parte: Para um desenvolvimento solidário da humanidade (43-80) que aborda os seguintes temas:
1. A assistência aos pobres, começando pela “luta contra a fome”, a propósito da qual:
a) deixa esta interpelação tão incómoda como esquecida: “Mas isto não basta, como não bastam os investimentos realizados, privados ou públicos, as dádivas e empréstimos concedidos. Não se trata apenas de vencer a fome, nem tampouco de afastar a pobreza. O combate contra a miséria, embora urgente e necessário, não é suficiente. Trata-se de construir um mundo em que todos os homens, sem excepção de raça, religião ou nacionalidade, possam viver uma vida plenamente humana, livre de servidões que lhe vêm dos homens e de uma natureza mal domada; um mundo em que a liberdade não seja uma palavra vã e em que o pobre Lázaro possa sentar-se à mesa do rico. Isto exige, da parte deste último, grande generosidade, muitos sacrifícios e esforço contínuo. Compete a cada um examinar a própria consciência, que agora fala com voz nova para a nossa época. Estará o rico pronto a dar do seu dinheiro, para sustentar as obras e missões organizadas em favor dos mais pobres? Estará disposto a pagar mais impostos, para que os poderes públicos intensifiquem os esforços pelo desenvolvimento? A comprar mais caro os produtos importados, para remunerar com maior justiça o produtor? E, se é jovem, a deixar a pátria, sendo necessário, para ir levar ajuda ao crescimento das nações novas?” (47);
b) propõe a criação “de um grande Fundo mundial, sustentado por uma parte da verba das despesas militares, para vir em auxílio dos mais deserdados” e que “permitiria superar as rivalidades estéreis e estabelecer um diálogo fecundo e pacífico entre todos os povos” (51).
2. A equidade nas relações comerciais que supere a crescente distorção na economia mundial de modo a evitar o que parece inevitável: “os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais ricos” (57).
3. A caridade universal, porque “o mundo está doente. O seu mal reside menos na dilapidação dos recursos ou no seu açambarcamento, por parte de poucos, do que na falta de fraternidade entre os homens e entre os povos” (66).
Conclui:
- apontando a necessidade de uma de uma autoridade mundial eficaz (78);
- recordando a urgência de uma rápida intervenção: “Neste caminhar, todos somos solidários. A todos, quisemos nós lembrar a amplitude do drama e a urgência da obra que se pretende realizar. Soou a hora da acção: estão em jogo a sobrevivência de tantas crianças inocentes, o acesso a uma condição humana de tantas famílias infelizes, a paz do mundo e o futuro da civilização. Que todos os homens e todos os povos assumam suas responsabilidades" (80);
- proclamando que o desenvolvimento é o novo nome da paz: “Porque, se o desenvolvimento é o novo nome da paz, quem não deseja trabalhar para ele com todas as forças? Sim, a todos convidamos nós a responder ao nosso grito de angústia, em nome do Senhor” (87).

2009-07-30

Caritas in Veritate (CinV)

Fez ontem um mês que Bento XVI publicou esta encíclica, a sua primeira encíclica “social”. Mesmo os que ainda não a leram já saberão que se trata de um documento muito actual, sobretudo virado para o futuro. Não quer apenas contribuir para a solução desta crise, mas ir mais além de modo a que não volte a acontecer. É, portanto, um documento que deve ser não só lido mas relido e meditado. Como já fiz uma primeira leitura, estou agora a aprofundar o seu inestimável contributo não só para a DSI mas também para os actuais desafios com que nos confrontamos.
Pensei que seria um exercício muito interessante para as férias, já que este tempo de ócio não deve ser visto como um agradável “nada fazer” mas também como um tempo de valorização pessoal que passa por fazer outras coisas para as quais a vida do dia a dia nem sempre deixa espaço. E pensei também que poderia partilhar este exercício com potenciais visitantes do meu blog. Vamos a ver se consigo manter uma reflexão diária ao ritmo da encíclica.

Este documento tem muito da sua maneira de ser do Papa. É reconhecido por todos que ele é não só um grande teólogo como um grande filósofo. Alguém que quer dialogar com a cultura actual. Bastará recordar o seu diálogo com Habermas ou o tão famoso discurso em Ratisbona, cujo conteúdo foi esquecido pela exploração de uma infeliz citação feita por jornalistas que não leram ou não perceberam a mensagem de fundo. Para já não falar do discurso que iria fazer na Universidade de Roma "La Sapienza", previsto para o dia 17 de Janeiro de 2008, mas cujo convite foi anulado dois dias antes. As razões desta anulação abonam muito pouco em favor do espírito de abertura e de diálogo que deve caracyerizar uma Universidade, onde todo o saber e opinião deveriam poder ser discutidos ou não se trate de uma universitas.
Este diálogo não é nada fácil. E bom seria ler a magistral terecira paret da primeira encíclica de Paulo VI, Ecclesiam suam, dedicada ao diálogo da Igreja coma sociedade, suas características e condições. Primeiro, porque os conceitos nem sempre têm o mesmo âmbito: razão, palavra também já muito utilizada por João Paulo II (concretamente na encíclica Fides et Ratio), refere-se mais a uma razão filosófica e não tanto a uma razão técnica e pragmática como é entendida pela generalidade das pessoas. Assim o diálogo torna-se muito profícuo com os filósofos mas escapa ao comum dos cidadãos e até dos cristãos. A seu tempo referirei a reflexão que Bento XVI faz da mentalidade tecnicista e seus riscos e perigos. Por outro lado, muitos olham para o Papa ainda como presidente da Congregação da Doutrina da Fé, antigo Santo Ofício, de que ainda por vezes restam alguns tiques. Que o digam alguns teólogos… E, mesmo no diálogo inter-religioso, não é fácil esquecer a Instrução Dominus Iesu, que reflecte, pelo menos em várias passagens a ideia de que a Igreja católica é a Igreja de Cristo, colocando num plano inferior as outras Igrejas e confissões religiosas.
De qualquer modo parece-me interessante que o Papa tenha introduzido uma alteração significativa, a este respeito: enquanto, na Deus Caritas est, refere, umas cinco vezes, a necessidade ou a tarefa de a “fé purificar a razão” (28; 29), nesta encíclica apresenta uma equidade (“Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé”: 3; 5; 9) e até uma reciprocidade entre ambas: “No laicismo e no fundamentalismo, perde-se a possibilidade de um diálogo fecundo e de uma profícua colaboração entre a razão e a fé religiosa. A razão tem sempre necessidade de ser purificada pela fé; e isto vale também para a razão política, que não se deve crer omnipotente. A religião, por sua vez, precisa sempre de ser purificada pela razão, para mostrar o seu autêntico rosto humano. A ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o desenvolvimento da humanidade” (56).
Assim, neste pé de "igualdade", o diálogo torna-se posível e frutuoso. Haja boa vontade de ambas as partes

2009-07-16

Bento XVI e Marx

A recente encíclica de Bento XVI, Caritas in veritate, é um contributo fundamental não só para a superação desta crise mas também para construir uma “humanidade nova”, que dê a centralidade à pessoa (“o maior recurso a valorizar nos países que são assistidos é o recurso humano que é o autêntico capital que se há-de fazer crescer para assegurar aos países mais pobres um verdadeiro futuro autónomo”: 58), que substitua a lógica da transacção contratual, pela lógica do dom sem contrapartidas (37), que assente na fraternidade e na solidariedade respeitando a solidariedade pois formamos uma única família humana, chamada toda ela a um desenvolvimento solidário e integral de que falava Paulo VI na Populorum Progressio.
Trata-se de um texto longo, denso e com muitos desafios e propostas. Bom seria que cristãos e não cristãos, sobretudo os homens e mulheres mais responsáveis pela organização local, nacional e internacional as reflectissem e se esforçassem por pô-las em prática.
Não é numa simples página que se pode falar desta encíclica. Certamente a ela voltarei mais detalhadamente.
Mas o que não posso para já deixar passar é aquele comentário, muito infeliz, de H. Raposo no último Expresso, que ficou (muito) “irritado” com o Papa porque “ele se põe a trazer Marx para o Evangelho” Nem mais!!!
Parece evidente que o colunista nada sabe de doutrina social da Igreja nem possivelmente do Evangelho. Caso contrário, veria que desde os primeiros documentos sociais, os Papas têm sido extremamente críticos neste capítulo. E porque os mais recentes (especialmente PP, OA, RH, LE, SRS, CA) serão mais conhecidos (!?) vou fazer só duas citações já muito velhinhas:
Deparamos com a realidade de que a contratação do trabalho e a comercialização de quase todos os produtos se encontram nas mãos de um pequeno número de ricos e opulentos que, desta forma, impõem a essa grande multidão de proletários um jugo que em nada difere do jugo dos escravos” (Leão XIII (1891), RN 1);
Este acumular de poderio e recursos… é consequência lógica da concorrência desenfreada, à qual só podem sobreviver os mais fortes, isto é, ordinariamente os mais violentos competidores e que menos sofrem de escrúpulos de consciência” (Pio XI (1931), QA 107): “toda a economia se tornou horrendamente dura, cruel, atroz” (QA 109).
Para lá disso, ou o autor não leu a encíclica ou leu-a de modo muito distraído ou, pior ainda, tendencioso.
E para não me alongar mais faço apenas duas citações para comparação.
A primeira é do Manifesto Comunista de Marx e Engels (1848), famoso pela sua frase final “Proletários de todo o mundo, uni-vos”:
A história de todas as sociedades que existiram até aos nossos dias é a história da luta de classes. Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, mestres e oficiais, numa palavra, opressores e oprimidos, em oposição constante, travaram uma guerra ininterrupta, ora aberta, ora dissimulada, uma guerra que acaba sempre pela transformação revolucionária de toda a sociedade ou pela destruição das duas classes beligerantes”. Isto é, o motor da história é a violência; é, no fundo, a lei do mais forte.
Bento XVI está continuamente a falar de caridade/amor, justiça, fraternidade, solidariedade, subsidiariedade. Por exemplo, “sem a guia da caridade na verdade, este ímpeto mundial pode concorrer para criar riscos de danos até agora desconhecidos e de novas divisões na família humana. Por isso, a caridade e a verdade colocam diante de nós um compromisso inédito e criativo, sem dúvida muito vasto e complexo. Trata-se de dilatar a razão e torná-la capaz de conhecer e orientar estas novas e imponentes dinâmicas, animando-as na perspectiva daquela «civilização do amor», cuja semente Deus colocou em todo o povo e cultura” (33). Isto é, o motor da história é o amor mútuo, a fraternidade universal, a solidariedade global, a caminho de uma “civilização do amor”; é, no fundo, a lei do mais fraco, baseada na gratuidade e no dom.

2009-07-11

Os beneméritos da humanidade

Tal como foi ontem noticiado, vários sites da Internet “oferecem” a venda de Tamiflu, o conhecido medicamento mais adequado para combater a gripe. Aproveitando-se da propagação cada vez mais rápida da gripe A, rapidamente surgiram os habituais oportunistas a fazer negociatas. Independentemente de não sabermos a qualidade do produto, os preços podem chegar aos 300 € para uma caixa que nas farmácias custa pouco mais de 20.
Explorar o medo das pessoas para fazer negócios chorudos é típica de muitos indivíduos que passam pela vida sem quaisquer escrúpulos e sem o menor sentido de solidariedade e de respeito pela dignidade humana. É uma versão do “homem é lobo do homem”, que temos de ultrapassar pela “o homem é irmão do homem”. Esta dificuldade em perceber que todos somos irmãos está na base de muitas das crises que marcam a história da humanidade: guerras, colonialismos, perseguições religiosas ou políticas, comércio de armas, tráfico de seres humanos, escravatura, etc..
É o lado negro da humanidade que vem ao de cima nestas situações e que não pode deixar de ser devidamente condenado pelo menos moralmente, já que muitas vezes se aproveita do vazio legislativo que a internacionalização da Internet ainda não conseguiu colmatar.

2009-07-02

Palavras que matam

Há muitos anos atrás li um artigo que falava de “palavras que matam” e um dos exemplos que dava, se bem me lembro, era o dos ratos cangurus. O governo da Austrália decretara a desratização do território. Ora uma das vítimas foi o rato marsupial. Embora não se tratasse de um rato (mas de uma família dos marsupiais, a Potoroidae), o seu nome (rato) levou os zelosos funcionários a tentar acabar com ele.
Este episódio veio-me à memória com a proposta de Bento XVI de celebrarmos o ano sacerdotal. Trata-se de dar especial atenção ao que é ser presbítero ou sacerdote, duas palavras que o Papa utilizou.
Utilizar a palavra sacerdote neste sentido estrito e num povo de Deus que mal conhece os documentos e a reflexão do Vaticano II é trazer ainda mais confusão e não respeitar o próprio Concílio, que fala várias vezes do Povo de Deus como povo sacerdotal e que insiste no sacerdócio comum dos fiéis: “O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora se diferenciem essencialmente e não apenas por grau, ordenam-se mutuamente um ao outro; pois um e outro participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo. Com efeito, o sacerdote ministerial, pelo seu poder sagrado, forma e conduz o povo sacerdotal, realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo; os fiéis, por sua parte, concorrem para a oblação da Eucaristia em virtude do seu sacerdócio real, que eles exercem na recepção dos sacramentos, na oração e acção de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade operosa” (LG 10).
Mas mais clarificadora é a evolução que teve o título do documento sobre “O Ministério e a Vida dos Presbíteros” (a tradução portuguesa traz “Sacerdotes”, embora a versão oficial latina tenha a palavra presbyterorum).
Este documento conciliar teve várias redacções.
O texto preparatório foi recusado por esmagadora maioria. A partir da síntese das 769 propostas e do debate conciliar foi elaborado um documento intitulado “De clericis”. Recusado, apareceu uma segunda versão, que foi recebendo contributos durante o ano de 1963, dos quais saiu uma 3ª versão, “De sacerdotibus”. Várias versões se seguiram até que a sexta viria a impor-se no Plenário (“De vita et ministerio sacerdotali”) na III Sessão (20.Nov.1964). No ano de 1965, chegaram mais 523 propostas de emenda, dando origem a uma nova versão, “De ministerio et vita presbyterorum”. Finalmente foi aprovada a versão final, a 7.Dez.1965, com o título definitivo: “Presbyterorum ordinis”.
Como se vê a evolução foi difícil mas clara: De clericis; De sacerdotibus; Presbyterorum ordinis.
Por isso chamar “Ano Sacerdotal” em vez de “Ano Presbiteral”, embora não mate a doutrina conciliar, põe em causa o seu espírito e sobretudo não ajuda os fiéis a perceber que todo o Povo de Deus é sacerdotal: “Com efeito, os que crêem em Cristo, regenerados não pela força de germe corruptível mas incorruptível por meio da Palavra de Deus vivo (cf. 1 Ped 1,23), não pela virtude da carne, mas pela água e pelo Espírito Santo (cf. Jo 3, 5-6), são finalmente constituídos em «raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo conquistado... que outrora não era povo, mas agora é povo de Deus» (1 Ped 2, 9-10)” (LG 9).
Além disso, sacerdote não esgota toda a dimensão do presbítero. Sacerdote (homem do sagrado) é, como mostra o AT, o homem que é responsável e se fecha no lugar sagrado. O presbítero (primariamente “o homem da Palavra”: PO 2; 4;) deve partir para onde a Palavra de Deus ainda não chegou e não pode ficar no recinto fechado do sagrado.
Será que já todos os presbíteros perceberam isto? Talvez não.
Por isso não será muito de admirar que os leigos apenas esperam deles que celebrem os sacramentos, enterrem os mortos e por eles celebrem a missa redentora. Isto é, que sejam uma espécie de “funcionários de Deus”, que assegurem uma relação saudável com a divindade.