divórcio ou casamento eterno?...

2009-03-28

Uma nova Terra

Tenho insistido várias vezes em que todos devemos construir uma "nova terra". E mais ainda agora, num tempo em que tantos mitos e dogmas mostram os seus pés de barro, a ocasião é especialmente propícia para esta tarefa.
Antes de ir passar fora uma semana, aqui deixo o meu último artigo que aborda mais uma vez este tema. Talvez me esteja a tornar cansativo e repetitivo, mas é este um momento que não podemos perder para semear a esperança e propor a novidade, sobretudo a novidade perene do Evangelho.


UMA NOVA TERRA
É bem conhecida a expressão “nova terra e novos céus” (GS 39), variação da expressão bíblica “céu novo e terra nova” (2Pd 3,13; Ap 21,1).
Quanto ao “céu” pouco poderemos fazer, mas quanto à terra, a uma “nova terra” ela só poderá existir com o nosso contributo empenhado e construtivo. Até porque trabalhar a terra, desenvolver as suas potencialidades é colaborar na preparação de uma terra mais humana mas também do “céu novo”.
Deus, apesar de ser o Senhor da história (GS 26), quer que sejamos nós a construir a nova terra. Por isso, o contributo da nossa actuação para o Reino futuro é um elemento indispensável que Deus certamente aproveitará e levará à plenitude no fim dos tempos: “O futuro dos nossos esforços e a substância positiva dos seus esboços são assumidos e são devolvidos no dom gratuito final. Algo assim como o mestre que entregou um esquema aos seus alunos, o toma por sua conta, o transfigura totalmente, mas assumindo sempre no seu trabalho aquilo que uma mão inábil procurou esquematizar. Deus dará tudo e certamente tudo novo, mas a sua vontade é que tenhamos cooperado antes com eficiência”(Y. Congar).
Portanto, torna-se evidente que devemos dar atenção ao que somos chamados a fazer, e nisto pouco ou nada nos distingue dos “homens e mulheres de boa vontade”. Mas, como cristãos, temos de ir mais além. Temos também de estar muito atentos ao como fazemos: precisamos de ultrapassar a justiça ou pelo menos modulá-la pela caridade, pelo amor com que damos o nosso contributo: “Se alguém te requisita para andares uma milha (por força da justiça), anda duas (por exigência da caridade)” (Mt 5,41). Efectivamente o que prepara o advento do Reino e o que o faz avançar não é tanto o que nós fazemos mas o amor que anima o nosso coração e as nossas acções.
Parece-me, no entanto, importante chamar a atenção para a necessidade de evitar duas atitudes erradas: relevar o que se faz desvalorizando o como se faz; dar prioridade ao como se faz secundarizando o que se faz. Já S. Paulo condenava os que não trabalhavam, certamente por estarem persuadidos de que o fim do mundo (“a segunda vinda de Cristo”) estaria para breve: “Se alguém não quer trabalhar abstenha-se também de comer” (2Tes 3,10). Há pois que estarmos atentos e ter presente que “o amor de Deus é o primeiro mandamento na ordem da dignidade; o amor ao próximo é o primeiro na ordem do agir” (S.to Agostinho).
O cristianismo não é, pois, uma mera moral de intenções, mas resulta do encontro com a Pessoa de Jesus Cristo (DCE 1) que veio para todos “tivéssemos a vida e a tivéssemos em abundância”(Jo 10,10). Isso exige-nos que também nós, cristãos, trabalhemos para que todos tenham a vida e a tenham em abundância.
Estamos num tempo em que a urgência de um “nova terra” se impõe a todos, crentes e não crentes. Não é tempo de discutir fundamentações, mas de cada um, motivado pela força das suas convicções mais íntimas, dar as mãos e em conjunto lutarmos por este objectivo inadiável. Os últimos acontecimentos mostram não só a urgência mas também a inevitabilidade de termos uma “nova terra”, de mudarmos de paradigma, de nos organizarmos segundo outros critérios, a nível internacional, nacional e pessoal. Não podemos continuar a viver sob a tirania das leis férreas de um mercado que só serve alguns, “os mais violentos competidores e que menos sofrem de escrúpulos de consciência” (QA 107), a ser governados por dirigentes políticos que, a todos os níveis, parecem ter perdido os seus referenciais éticos, a deixar andar uma sociedade onde somos consumidores e não agentes da história, somos “humildes e subservientes” a qualquer autoridade e não cidadãos que lutam pelos seus direitos e pelos dos outros independente do esforço e do sacrifício pessoal que isso acarrete, sobretudo em termos de “subir na carreira”.
Repito: esta urgência impõe-se a crentes e não crentes. Estes não poderão ignorar Marx: “Até agora os filósofos mais não fizeram do que interpretar de todos os modos o mundo, mas do que se trata é de transformá-lo” (XI Tese sobre Feuerbach). Para os crentes o desafio é o mesmo: “Não cumpriria a vontade de Deus criador quem quisesse renunciar à tarefa, difícil mas nobilitante, de melhorar a sorte do homem todo e de todos os homens, sob o pretexto do peso da luta e do esforço incessante de superação, ou mesmo pela experiência da derrota e do retorno ao ponto de partida” (SRS 30). Dramática é a acusação do Concílio: “O cristão que descuida os seus deveres temporais falta aos seus deveres para com o próximo e até para com o próprio Deus, e põe em risco a sua salvação eterna” (GS 43). Isto é, na transformação do mundo, na construção de uma “nova terra”, os cristãos jogam a sua salvação eterna. Quer queiramos quer não, fora do mundo (para poder transformá-lo) não há salvação para nós.
É certo que o progresso terrestre não conduz por si só ao Reino de Deus nem coincide com o seu progresso, mas há uma relação mais íntima que possamos imaginar (GS 39). A evangelização influi sobre a civilização e a civilização condiciona a evangelização, ou, como dizia Pio XI, “a missão própria da Igreja não é civilizar mas evangelizar, ou melhor, civilizar evangelizando“.
Crentes e não crentes somos, pois, igualmente chamados, ainda mais hoje, a transformar a realidade.

2009-03-27

NOVOS MODELOS DE VIDA

Como prometi ontem, aqui deixo o texto dos Bispos franceses que tanto me marcou. Foi escrito pelo Conselho Permanente, em 22.Set.1982, com o título"Pour de nouveaux modes de vie. Déclaration sur le conjoncture économique et sociale".
Se fosse escrito hoje, poucas alterações haveria que introduzir.
E este texto tem quase 27 anos.
Mas quem quer saber de soluções e propostas sensatas!? Sobretudo quando vêm pôr em causa o nosso estilo de vida egoísta, hedonista, consumista, "salve-se quem puder"...

O espírito do Evangelho não se acomoda a qualquer comportamento individual ou colectivo. No caso presente a demagogia, o corporativismo, as múltiplas maneiras egoístas de “lavar daí as mãos”... contradizem as exigências da fé.
Neste espírito evangélico de reconciliação e partilha, convidamos as comunidades cristãs a interrogarem-se sobre a qualidade da solidariedade humana vivida pelos seus membros. Chamar-lhes-emos especialmente a atenção para alguns pontos. Estas propostas são exigentes, realistas e fonte de esperança. Nem todas se dirigem a todos: a cada um ou a cada grupo compete ver as que mais lhe dizem respeito e aprofundá-las.
- Enquanto que alguns casais beneficiam de acumulação de salários mais do que suficientes, a renúncia total ou parcial a um deles, o do marido ou o da mulher, facilitaria a distribuição do trabalho.
- Em certos casais, quando os filhos já estão educados e as despesas diminuem, poderia pensar-se na reforma antecipada.
- Parece-nos que não foi ainda suficientemente explorada a possibilidade do emprego a tempo parcial, pelo menos em certas épocas da vida familiar.
- As inscrições no fundo de desemprego serão todas plenamente justificáveis?
- Os que actualmente podem colocar dinheiro devem fazê-lo em função da sua utilidade social e não apenas da rentabilidade financeira.
- Excepto para os mais desfavorecidos, a defesa do nível de vida não é hoje em dia o objectivo mais urgente.
- É justo que todos os profissionais, assalariados ou não, participem no financiamento da protecção social.
- A dissimulação e as fraudes fiscais e parafiscais são contrárias à solidariedade indispensável.
- O mecanismo de aumentos de salários são legítimos para assegurar o necessário aos menos favorecidos; mas estender este processo sem discernimento a toda a hierarquia profissional, aumenta muitas vezes, as desigualdades.
- O leque actual dos ordenados parece longe de corresponder ao trabalho e aos serviços prestados.

2009-03-26

Solidariedade a sério em tempos difíceis

Acabei de ler no Courrier Internacinal a história da sr.ª Myra Sawicki, funcionária da Chrysler. Quando começaram os despedimentos ela ficou preocupada com um colega que ia ser despedido juntamente com a mulher.
“Então teve uma ideia. Está com 52 anos, os filhos já crescidos, o marido, Peter, motorista rodoviário, tem um bom seguro de vida e ela gostava de se ocupar da sua velha mãe doente”. Com a concordância da direcção propôs ao colega ser despedida em vez dele: “Brian, estou disposta a substituir-te na leva de despedimentos, porque estou em melhor condição que tu para enfrentar o desempregado”. Depois de vencidas as resistências, o colega acabou por aceitar. O artigo vale a pena ser lido pelas referências a uma verdadeira solidariedade que vai existindo, apesar de os jornais não falarem disto.
É perigoso. Pode pegar-se e deixar os egoístas em maus lençóis.

Foi muito bonito este gesto. E referi os pormenores que a sr.ª Myra conta para dizer que eles não foram o fundamental da sua decisão, mas sim o seu sentido de solidariedade a sério. Situações como as dela muitos dos que não foram despedidos as teriam e não se ofereceram para trocar de lugar com outros mais carenciados.
E isto deve ser divulgado. Porque tal como o mal se “pega” também o bem se “pega”. Resta saber de qual fazemos mais publicidade!!!

Este episódio lembra-me de algum modo um momento da minha vida. Este é um segredo que só alguns amigos cobnhecem, mas como aconteceu há tantos anos, já poderá ser divulgado!Reformei-me há cerca de 20 anos, com apenas 20 anos de serviço. Não para que outro não fosse despedido. Mas, porque a minha mulher assegurava suficientemente os nossos custos com a casa, o carro e os dois filhos. E porque eu não conseguia ser investigador, pai e cumprir as responsabilidades eclesiais que entretanto assumira, nomeadamente a organização de um Congresso Diocesano de Leigos. A minha capacidade de trabalho não dava para tudo. Além disso, embora gostasse de ser investigador em Química Teórica, pareceu-me que podia ser muito mais útil lutando num campo que está muito empobrecido de pessoas: o de desafiar e estimular os outros (e sobretudo a mim) a uma cidadania activa na sociedade e na Igreja.
Andava eu a pensar nisto e a discuti-lo com a minha mulher e a minha filha de 11 anos, quando encontrei um texto dos Bispos franceses (publico amanhã uma parte mais substancial dele) de que passo a citar uma frase que me marcou profundamente e, no meio de muitas outras razões, algumas das quais já referi atrás, veio a ter um peso interior quase esmagador:
- Em certos casais, quando os filhos já estão educados e as despesas
diminuem, poderia pensar-se na reforma antecipada.
Eu não conseguia ignorar aquelas palavras, tinha que fazer a extrapolação e não consegui libertar-me das consequências inevitáveis. E reformei-me ao abrigo de uma disposição temporária governamental.

Mas o mais irónico aconteceu quando discuti isto com muita gente: amigos, conhecidos, cristãos e ateus. E sabem quem mais força fez para eu não me reformar? Alguns dos padres com quem falei. Argumentos utilizados:
1º Perdia categoria! A fúria, que me invadia ao ouvir isto, a mim que não tenho curriculum apresentável e só espero que o S. Pedro lá tenha umas anotações favoráveis na minha folha de serviço, não a vou descrever aqui.
2ª E se acontece alguma coisa à tua mulher? Respondia com dois argumento:
- um de elevadíssimo risco sobre a Providência divina que ia buscar a Mt 6,25ss (não é que acredite que Deus ande para aí a fazer milagres e a tirar as pedras do caminho aos que acreditam nele, bastando-nos ficar à sombra da bananeira à espera que as bananas caiam): afinal qual era a qualidade da minha fé e qual era o projecto de Deus para mim (já que, por razões que não vêm ao caso, não fui autorizado a doutorar-me, o que me levou a interpretar isso como sinal de que “Deus não queria que eu me doutorasse”, como eu tanto desejava. Portanto Ele tinha outros projectos para mim, que fui tentando descobrir e cumprir com as minhas limitações e capacidades!). Mas não é a fé um risco elevado, e, passe a heresia, um salto no escuro?;
- o outro era o facto de, na altura, eu não ser física nem mentalmente aleijado e portanto alguma coisa se havia de arranjar.
Aliás ainda lembro o sorriso cúmplice mas sardónico do empregado de secretaria quando fui tratar da papelada, ao aconselhar-me: “Faz muito bem, sr. dr., com a sua reforma e com o que vai ganhar lá fora, fica muito melhor”.
Nem lhe disse que o meu voluntariado seria gratuito.
Porque ele não acreditaria (como ainda há uns tempos atrás alguém me disse que não acreditava que não recebesse nada (de dinheiro, entenda-se!!!) da Diocese) e, lá no seu íntimo, considerar-me-ia maluco!
O que, como imaginarão, me deixaria altamente preocupado!!!

2009-03-24

Menina que não é menina

Uma menina de 9 anos estava grávida de dois gémeos.
Tinha sido violada sistematicamente desde os 6 anos pelo padrasto.
A novidade será a gravidez tão precoce, porque violações destas acontecem tdiariamente, tantas vezes com a conivência de familiares e “amigos”.
Acontecem também porque não sabemos olhar, porque não fomos habituados a perceber os pequenos mas consistentes que mostram, escondendo, diferentes graus de sofrimento.
É um dos efeitos negativos da nossa passagem da selva primitiva, onde cada ruído tinha um significado e cada gesto dava um aviso, para a sociedade urbanizada, onde há demasiado ruído de fundo e excessiva distracção sobre o que acontece aos outros, especialmente aos nossos vizinhos.

Uma menina de 9 anos, grávida de 2 gémeos.
Certamente que não teria condições físicas para um parto normal.
Mais “certamente” não teria condições psicológicas para ter um filho, não teria maturidade para ser mãe. Ela é uma criança, não é uma “mulher”. Mas é com absoluta certeza uma pessoa com “direitos naturais, universais e invioláveis (que) ninguém, nem o indivíduo, nem o grupo, nem a autoridade, nem o Estado, pode modificar e muito menos eliminar esses direitos que emanam do próprio Deus” (Ch L 38).

À divulgação da fúria excomungatória do bispo de Olinda e Recife, absolutamente idiota e condenável, não correspondeu igual divulgação das palavras de outros bispos.
Por exemplo, o presidente da Pontifícia Academia para a Vida, D. Rino Fisichella lamenta a precipitação na condenação num “caso moral entre os mais delicados”, quando a menina “deveria ter sido em primeiro lugar defendida, abraçada, acariciada com doçura para fazê-la sentir que estamos todos com ela”. E até reconheceu quão difícil era tomar uma decisão nestes casos: “por causa da sua tenra idade e das suas condições de saúde precárias, a sua vida corria sério risco por causa da gravidez. Como agir nestes casos? Decisão árdua para o médico e para a lei moral”.

Que haja pessoas religiosas integristas e fundamentalistas em todas as religiões não é novidade para ninguém.
Mas que se nomeie para bispo alguém que não percebeu que o “sábado foi para o homem” e não o contrário (Mc 2,27), que a lei tem de estar ao serviço da pessoas e não o contrário, isso é que causa estranheza. A preocupação exagerada em nomear bispos mais preocupados com a defesa da doutrina (ortodoxia) do que com a defesa da dignidade da pessoa (ortopraxis, que a parábola do Samaritano coloca acima da ortodoxia) deve ser revista não tanto, como dizia D. Fisichella, para que o ensinamento da Igreja não apareça «aos olhos de muitos como insensível, incompreensível e sem misericórdia», mas sim porque, como Jesus Cristo veio mostrar, a prioridade absoluta vai para a dignidade humana: não condenou a mulher adúltera, falou com a Samaritana, curou ao sábado, tocou o leproso, todas estas situações (ortopraxis) absolutamente proibidas pela lei do templo e do AT (ortodoxia).

2009-03-18

Tempo de ser solidário

Nestes tempos de crise, tenho feito um esforço nos meus escritos para ajudar as pessoas a não cair no desânimo e sobretudo não deixarmos "cair" a solidariedade. Tenho a sensação de que me devo repetir demasiado, mas esta é uma mensagem que com facilidade se esquece em tempos difíceis, pelo que é importante insistir nela. Para não estar a inventar o que já inventei, aqui deixo o meu último escrito na revista Além-Mar.

TEMPOS DE SOLIDARIEDADE
Os acontecimentos não mostram sinais de superar a situação que nos “calhou” viver neste momento histórico. “Calhou” porque, se não é fácil controlar o desenrolar da história, muito menos o é quando desistimos de ser os agentes efectivos da sua construção e absolutizamos o dinheiro como o único e verdadeiro deus que vale a pena adorar e seguir na sua ética mercantilista que espalhamos por toda a parte, como a suprema e única salvação.
E “inesperadamente” o ídolo dourado caiu, porque afinal tinha pés de barro. Mesmo assim tem raízes tão fundas no coração dos homens e das mulheres que certamente se irá recompor, aproveitando-se da nossa inércia, falta de criatividade e sobretudo da nossa paixão nostálgica pelos ”bons belos tempos” em que ele era rei e senhor, tal como os hebreus, no deserto do Sinai, preferiam as cebolas do Egipto, apesar de elas trazerem consigo escravidão e falta de liberdade.
Estes são perigos que nos espreitam para o futuro, mas há já alguns que temos de enfrentar e que vão exigir muito esforço, determinação e coragem, “muito sangue, suor e lágrimas”.
Um deles é o de esquecer os outros, sobretudo os mais carenciados e os mais distantes. Preocupados em manter o nosso estilo de vida, predador de recursos e escravo do nosso comodismo e hedonismo, vamos ter menos espaço para a partilha. O tempo das “vacas gordas” não nos preparou para estas dificuldades. Assim, desarmados, podemos fechar-nos sobre nós próprios e cairmos no “salve-se quem puder”. Estas reacções de pânico resultam da nunca assumida consciência de que não somos donos absolutos dos bens e dons da natureza nem dos dos outros e da crescente desvalorização das nossas “reservas psicológicas” que sempre foram a base para a humanidade enfrentar e vencer as crises que foi defrontando ao longo da história.
Hoje é um tempo em que especialmente temos de praticar com mais exigência a partilha e a solidariedade, não como “um sentimento de compaixão vaga” mas como “determinação firme e perseverante de nos empenharmos pelo bem comum”, já que, especialmente agora, “todos somos responsáveis por todos” (SRS 38). Hoje, todos somos obrigados a viver “pior” e os que já viviam “pior” passarão a ter de viver ainda “mais pior”. Não temos o direito de, para manter os nossos “vícios”, cortar no pouco ou muito que distribuíamos pelos outros mais carenciados.
Não é, pois, tempo de nos entrincheirarmos no nosso ainda razoável estilo de vida, mas de manifestar a nossa capacidade de amar, de ser irmão dos nossos irmãos, de termos como modelo, para uns, a viúva do óbolo; para outros, o rico Zaqueu; para todos, o bom samaritano. O tempo dos egoísmos só pode “continuar dentro de momentos”, quando a crise o permitir.
Esta regra não é para ser aplicada apenas pelas pessoas, mas também pelas nações e pelos continentes. E se os egoísmos individuais são uma erva daninha difícil de arrancar, os egoísmos nacionais são uma verdadeira peste para a qual ainda não dispomos de um remédio eficaz. Todos percebemos bem esta doença internacional. Basta olhar para a União Europeia e a sua dificuldade em acertar, em conjunto, atitudes e até pormenores que vistos de fora são verdadeiramente ridículos. Basta olhar para a ONU que, apesar da boa vontade de muitos, acaba por não ter a eficácia necessária sem a qual pouco poderá fazer. E tudo isto se resume a uma expressão: “egoísmo nacional”. Trata-se da incapacidade de partilhar e de praticar a solidariedade, da falta de consciência de que não somos muitas raças mas apenas um único género humano, que vive num planeta tão ridiculamente pequeno que ninguém conseguiria vê-lo de fora da nossa galáxia, já por si tão perdida na imensidão do Universo.
A culpa não é (só) dos governantes. É sobretudo dos cidadãos que alimentam e exigem esse egoísmo nacional em nome de interesses mesquinhos ou de sobrevivência. É culpa de tantos organismos acomodados e de multinacionais que só pensam no lucro a qualquer preço. Por isso, torna-se necessário e urgente a definição de novas regras internacionais, de reformas profundas dos sistemas sociais, económicos e financeiros, de motivações nobres nas ajudas aos países pobres. É tempo sobretudo de todos, pessoas e nações, assumirmos que “Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e de todos os povos” (GS 69), “sem excluir nem privilegiar ninguém” (CA 31). É tempo de sermos uma comunidade moral!
A crise pode ser uma queda no abismo, mas é sobretudo o incentivo que nos faltava para mudarmos de regras, de paradigmas e de estilos de vida… se quisermos e tivermos força de vontade para isso!

2009-03-12

Morte um momento forte da vida

Hoje andei uns longos quilómetros para prestar homenagem a uma pessoa amiga que morrera ontem.
Pelo caminho fui pensando na falta de importância e consideração que temos pela morte. E lembrei-me de reproduzir aqui um artigo que publiquei há quase ano e meio sobre o tema.
Praece-me que essa reflexão continua tão actual como a morte.

SEM MORTE NÃO HÁ VIDA
Vivemos numa sociedade cheia de contradições. Por exemplo, e aproveitando o espírito da época, a nossa atitude perante a morte. Talvez nenhuma sociedade tenha tentado esconder tanto a morte como a nossa: será que a morte nos provoca de modo irreversível, manifestando a nossa finitude e pondo em causa a nossa sensação de omnipotência? Talvez nenhuma sociedade tenha tanto medo da morte como a nossa: será porque a fé num além está esmorecida? Ou será que a morte, como zénite do sofrimento e do envelhecimento, questiona o nosso hedonismo e o nosso desejo de eterna juventude?
Por outro lado, temos e mantemos um estilo de vida e uma mentalidade que multiplicam as situações de morte: a condução que praticamos nas estradas, o descuido de muitos operários com a sua segurança, a inconsciência com que degradamos a natureza, a insensibilidade com que se puxa de uma arma para dirimir questões menores, a imoralidade do comércio de armas ou de drogas, a aceitação de condições de vida desumanas, a superficialidade com que olhamos a eutanásia e até o aborto; tudo isto indicia uma cultura onde a morte está presente, apesar de fazermos de conta que não a vemos.
A morte é, para lá disso, um dos maiores factores de socialização. Em torno de alguém que morre junta-se todo o tipo de pessoas, encontram-se amigos que não se viam há anos, cruzam-se crentes e ateus, ricos e pobres. Em seu redor vivem-se momentos de convívio, às vezes demasiado ruidosos para as circunstâncias. A morte proporciona um local de encontro numa sociedade cheia de desencontros, de solidões e de “não lugares”, aqueles espaços nos quais passamos por desconhecidos que nada nos dizem e por conhecidos a quem disparamos um rápido “olá, oh tempo que não te vejo” mal nos virando para trás, seja um supermercado ou uma estação de caminho de ferro. É como se a morte nos quisesse obrigar a considerá-la como um momento da vida: a morte é ocasião de vida, de encontro, de partilha, de solidariedade. E até de bondade: com ela, quase todos, independentemente da vida que levaram, de repente se tornam boas pessoas.
De qualquer modo, nem sempre os que vivem os seus momentos terminais sentem o apoio humanitário nem estão devidamente preparados para passar esta “passagem para a outra margem” de modo humano. A morte é uma ruptura sempre violenta. Por isso, é preciso aprender a viver com ela: os que cá ficam, a fazer o luto de modo sereno e gradual; quem parte, a preparar a saída com dignidade. As convicções profundas de cada um desempenham um papel fundamental. Mas, independentemente dessas convicções, parece muito difícil de aceitar que tudo acabe aqui e que a pessoa não passe de uma mistura de átomos que vieram da terra e à terra hão-de tornar numa comunhão cósmica que nos torna irmãos das estrelas que já explodiram, dos cometas que connosco chocaram, dos minerais que pisamos, das plantas que nos dão oxigénio, dos animais que nos fornecem energia e até de todos os homens e mulheres com quem trocamos moléculas quanto mais não seja pela respiração. Há uma ânsia de eternidade e de imortalidade que não cabe no decurso de uma vida humana. É um desejo que se manifesta na necessidade que sentimos de deixar algo de nós: um filho, um livro, uma fundação, uma igreja, uma qualquer recordação da nossa bondade.
Neste sentido, a morte é talvez o maior desafio para a vida. A maior parte das vezes ignoramo-lo. Mas a morte, a necessidade de morrer em paz com a nossa consciência, é um acicate para cumprir humanamente a vida, para apostar num dado estilo de vida. Nem todos aceitarão o desafio. Nem todos terão consciência dele. Mas a morte coloca-nos perante o desafio de viver bem a vida. Somos a única espécie nesta nossa Terra que tem consciência de si, que para se realizar não pode viver só “pelo instinto”. Talvez o maior drama da sociedade de hoje seja termos perdido a consciência desta realidade. Por isso, vivemos para o dia a dia, vivemos para o presente e apenas o presente, deixando-nos arrastar pelas circunstâncias. Por isso, vivemos tão depressa, sem tempo para saborear a vida. Por isso, desperdiçamos a vida em inutilidades alienantes. E ao chegar a morte, revoltamo-nos quando percebemos que vegetámos numa vida estúpida e inútil e que ainda não começámos a viver seriamente a vida.
Assim, a morte, independentemente de crermos num além ou apenas num aqui, é a grande mola para a vida. A morte diz-nos que só temos uma vida e que, portanto, ou a vivemos bem ou nunca a viveremos. Sem a morte, não teríamos este estímulo. A garantia de por cá andarmos “para sempre” tirar-nos-ia a “urgência” de viver bem, porque teríamos muito tempo para isso; desincentivaria o compromisso libertador com a vida, porque sempre haveria tempo, num tempo futuro, para viver uma vida ao serviço dos outros, a única verdadeira vida, a única verdadeira vocação humana.
A morte obriga-me a assumir-me, aqui e agora, em cada momento, como pessoa, isto é, sujeito consciente e livre da história. Obriga-me a fazer da vida um permanente exercício de cidadania, porque não sei nem o dia nem a hora a que ela virá buscar-me. E para não me apanhar desprevenido, só tenho de, a cada momento, viver a vida a sério logo desde que nasci.
Quando assim acontecer, a morte nunca vem cedo nem inesperadamente. E sempre será vivida como a irmã morte que me dá sentido à vida. Sem morte, nunca viveria amorosamente a vida.

2009-03-09

Um dia de atraso

Gostaria de, mesmo com algum atraso, registra aqui três passagens da Carta de João Paulo II às mulheres(29.Junho.1955):

1. Uma auto-crítica discreta, que bem poderia abrir uma efectiva igualdade de direitos e deveres entre homem e mulher também na Igreja:
O meu « obrigado » às mulheres converte-se num premente apelo a que, da parte de todos, particularmente dos Estados e das Instituições Internacionais, se faça o que for preciso para devolver à mulher o pleno respeito da sua dignidade e do seu papel. A este respeito, não posso deixar de manifestar a minha admiração pelas mulheres de boa vontade que se dedicaram a defender a dignidade da condição feminina, através da conquista de direitos fundamentais sociais, económicos e políticos, e assumiram corajosamente tal iniciativa em épocas em que este seu empenho era considerado um acto de transgressão, um sinal de falta de feminilidade, uma manifestação de exibicionismo, e talvez um pecado! (6).

2. A denúncia veemente da exploração da mulher, tantas vezes consentida pelas próprias, a que a sociedade de consumo permanentemente recorre.
Pensando, depois, num dos aspectos mais delicados da situação feminina no mundo, como não lembrar a longa e humilhante história — com frequência, « subterrânea » — de abusos perpetrados contra as mulheres no campo da sexualidade? No limiar do terceiro milénio, não podemos permanecer impassíveis e resignados diante deste fenómeno. Está na hora de condenar vigorosamente, dando vida a apropriados instrumentos legislativos de defesa, as formas de violência sexual, que não raro têm a mulher por objecto. Mais, em nome do respeito pela pessoa, não podemos não denunciar a difusa cultura hedonista e mercantilista que promove a exploração sistemática da sexualidade, levando mesmo meninas de menor idade a cair no circuito da corrupção e a permitir comercializar o próprio corpo. (5).

3. A valorização social não só da maternidade, mas também de valores outros que a mulher poderia trazer aos vários âmbitos da vida social.
Falta só acrescentra que também esses valores seriam humanizadores de uma hierarquia demasiado rígida e normativa, sem grandes preocupações práticas com as reais dificuldades que a vida no meio do mundo coloca a maior parte dos leigos.
Basta pensar como, com frequência, é mais penalizado que gratificado o dom da maternidade, à qual, todavia, a humanidade deve a sua própria sobrevivência. Certamente, resta ainda muito a fazer para que o ser mulher e mãe não comporte discriminação. Urge conseguir onde quer que seja a igualdade efectiva dos direitos da pessoa e, portanto, idêntica retribuição salarial por categoria de trabalho, tutela da mãe-trabalhadora, justa promoção na carreira, igualdade entre cônjuges no direito de família, o reconhecimento de tudo quanto está ligado aos direitos e aos deveres do cidadão num regime democrático.
Trata-se não só de um acto de justiça, mas também de uma necessidade. Na política do futuro, os graves problemas em aberto verão sempre mais envolvida a mulher: tempo livre, qualidade da vida, migrações, serviços sociais, eutanásia, droga, saúde e assistência, ecologia, etc. Em todos estes campos, se revelará preciosa uma maior presença social da mulher, porque contribuirá para fazer manifestar as contradições de uma sociedade organizada sobre critérios de eficiência e produtividade, e obrigará a reformular os sistemas a bem dos processos de humanização que delineiam a « civilização do amor ». (4)

2009-03-03

As pequenas solidariedades

Tenho ouvido na Antena 1 o “noticionário regional” (não me recordo agora do nome) que se segue ao nacional das 13 horas
E é muito gratificante ouvir e saber que a solidariedade está a acontecer por todo o lado, repartida de acordo com as disponibilidades locais.
Eu acredito e venho insistindo nisto: que muitos “pequenos” (porque não dão para abrir os telejornais) grandes (porque sempre envolvem pessoas, que existem realmente, que sofrem realmente, que desesperam realmente, que por vezes caem no desânimo porque não sentem a solidariedade “pequena” dos que estão perto deles) problemas se podem ir resolvendo desde que as comunidades locais se envolvam seriamente, os assumam como seus e procurem com seriedade soluções para eles.
Nestas comunidades locais cabem as câmaras, as juntas de freguesias, as organizações culturais e recreativas e sobretudo as comunidades religiosas.
O importante é não assobiar para o lado e fazer de conta que não vemos. Por pouco que se faça (e às vezes é preciso fazer tão pouco!) é sempre um estímulo, é sempre dizer ao outro que o consideramos, que ele continua a ser uma pessoa com capacidades e limitações e que todos juntos podemos encontrar soluções para os desafios e as dificuldades que vão surgindo a cada um.
Não se trata de dar uma esmola ou de ”fazer caridade”. Trata-se de dar um apoio honesto, desinteressado, de modo que ninguém se sinta humilhado.
Neste tempo de crise, são estes gestos que vão salvar muita gente, sobretudo gente que não estava habituada a precisar de ser salva.
Daí a delicadeza, o cuidado e o respeito por quem está em dificuldades: fazê-lo sentir-se em pé de igualdade connosco é um exercício nem sempre fácil, mas indispensável.