divórcio ou casamento eterno?...

2009-10-31

CinV (39) Progresso policêntrico (nº 22)

Hoje o progresso é policêntrico porque os actores e as causas do (sub)desenvolvimento são múltiplas e variadas e é complexo porque as culpas e os méritos são também diferenciados, o que “deveria induzir a libertar-se das ideologias que simplificam, de forma frequentemente artificiosa, a realidade e levar a examinar com objectividade a espessura humana dos problemas”.
A primeira manifestação desta realidade complexa é que “hoje a linha de demarcação entre países ricos e pobres já não é tão nítida” como há 40 anos. Já João Paulo II destacara esta diferença: “Uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo consiste precisamente nisto: que são relativamente poucos os que possuem muito e muitos os que não possuem quase nada. É a injustiça da má distribuição dos bens e dos serviços originariamente destinados a todos”. É, por isso, que “deveria ser altamente instrutiva uma desconcertante verificação do período mais recente: ao lado das misérias do subdesenvolvimento, que não podem ser toleradas, encontramo-nos perante uma espécie de superdesenvolvimento, igualmente inadmissível, porque, como o primeiro, é contrário ao bem e à felicidade autêntica” (SRS 38).

As fronteiras da pobreza já não passam apenas entre o Norte e o Sul, mas dentro de cada um destes blocos e mesmos dentro de cada país.
Nos países ricos, não só surgem novas pobrezas, como há categorias sociais que vão empobrecendo: todos lemos ou ouvimos que há já pessoas ditas da classe média que recorrem ao Banco Alimentar. Há já algum tempo que se tornou comum a expressão “Quarto Mundo”, um mundo dos pobres no interior dos países desenvolvidos. Todos acompanhámos a luta de Obama para impor uma Sistema de Saúde universal porque há mais de 30 milhões de americanos que não têm qualquer tipo de ajuda na área da saúde. E pior que isso vimos a resistência dos mais ricos a lutarem ferozmente contra este exercício de cidadania e solidariedade.

Mas também nos países, mesmo mais pobres, há pessoas que “gozam de uma espécie de superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora”. A esta “miséria imerecida”, Paulo VI acrescenta “o escândalo de desproporções revoltantes, não só na posse dos bens mas ainda no exercício do poder. Enquanto, em certas regiões, uma oligarquia goza de civilização requintada, o resto da população, pobre e dispersa, é privada de quase toda a possibilidade de iniciativa pessoal e de responsabilidade, e muitas vezes colocada, até, em condições de vida e de trabalho indignas da pessoa humana"(PP 9).

Também a corrupção é “policêntrica”, isto é, está espalhada por todo o lado: “Infelizmente a corrupção e a ilegalidade estão presentes tanto no comportamento de sujeitos económicos e políticos dos países ricos, antigos e novos, como nos próprios países pobres”:
- quantas vezes não são respeitados os direitos dos trabalhadores tanto pelas multinacionais, que vêm de fora para se aproveitarem da mão de obra barata, como por empresas locais, que, dentro do próprio país, põem em prática métodos análogos, marcados pelas exploração e exclusão;
- “as ajudas internacionais foram muitas vezes desviadas das suas finalidades, por irresponsabilidades que se escondem tanto na cadeia dos sujeitos doadores como na dos beneficiários”

Até no âmbito dos bens imateriais ou culturais há uma espécie de “policentrismo”: tanto nos países desenvolvidos como nos outros “podemos encontrar a mesma articulação de responsabilidades: existem formas excessivas de protecção do conhecimento por parte dos países ricos, através duma utilização demasiado rígida do direito de propriedade intelectual, especialmente no campo sanitário; ao mesmo tempo, em alguns países pobres, persistem modelos culturais e normas sociais de comportamento que retardam o processo de desenvolvimento.”

Por outro lado, apesar de toda a aparente diversidade, o “uniformismo” vai proliferando e alastrando…

2009-10-30

Teologia do Corpo

Terminei o meu último comentário com um “Felizmente hoje já se vai falando de uma “teologia do corpo”. Pelo menos incipiente (digo eu, que sou “leigo”).
E como leigo aqui deixo alguns aspectos, que gostaria de ver aprofundar:
1) para lá de recusar de modo absoluto todas as concepções dualistas, porque hipervalorizam a alma e a denigrem tudo o que vem do corpo (pressuposto mínimo indispensável);
2) reabilitar o corpo perante todas as formas de exploração ou degradação modernas:
- da sociedade de consumo com as suas necessidades artificiais tornadas obrigatórias;
- da transformação em máquina muscular pelo esforço laboral, desportivo ou estético;
- da exploração dos instintos sexuais, nomeadamente através da publicidade;
- das variadas formas de violência física ou psicológica;
3) reconhecer a sua função essencial para o desenvolvimento pessoal e relacional:
o corpo não é um mero apêndice ou cabide, mas o mediador insubsitituível para estabelecer e manter os contactos com as pessoas, com a cultura, com a realidade existente e com o mundo exterior; sem corpo "não existiríamos" para nada nem para ninguém;
4) admitir os seus limites, a sua vulnerabilidade, porque a finitude é uma característica estruturante do ser humano em todos os âmbitos;
5) equipará-lo em dignidade à alma, porque o que está em questão é sempre a pessoa na sua totalidade: corpo, sentimento, espírito, inteligência, vontade;
6) dessacralizar a sexualidade, porque foi criada por Deus:
“Criou Deus o ser humano (´adam) à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho (zakar) e fêmea (neqebah) os criou (Gn 1,27)”. Ora zakar significa "macho, membro viril" e neqebah, "que se rasga, que se penetra", derivado do verbo naqab, "penetrar". Estas duas palavras indicam claramente a diferença sexual dos dois "elementos" constitutivos da humanidade. Portanto, Deus não criou apenas a humanidade, criou-a, logo no acto criador originário, nos seus dois sexos, zakar e neqebah, ambos à sua imagem; é preciso retirar daqui as radicais consequências;
7) libertá-la do estigma da impureza: o NT liberta a sexualidade da necessidade de qualquer purificação cultual; a pureza cultual deixa de ser importante, pois, como ensina Jesus, a impureza não vem do contacto com as coisas mas está dentro de cada um de nós (Mt 15,11);
8) dignificar o prazer:
- porque nos foi dado por Deus: “Foi Deus que nos fez atractivos, bonitos, acolhedores, capazes de jogar, e é Ele que nos convida a viver com intensidade cada minuto da nossa vida e que nos dotou deste corpo para comunicarmos com os outros, para amar até ao extremo, para gozar com os cinco sentidos. Porque é assim que deve ser vivida a sexualidade: gozando o sabor, o cheiro, o calor, o rumor e a beleza do corpo do outro, que goza em uníssono com o nosso e de nós recebe a ternura, a delicadeza, a beleza e tantas qualidades que só brotam da intimidade do amor” (M.P. Ayerra); leia-se esse encantador livro bíblico “Cântico dos Cânticos”;
- porque a alegria, na plenitude do amor, na ternura da compreensão recíproca, na contemplação da vida que se renova, é instrumento de participação comum no gozo pascal de Cristo: a capacidade de viver com alegria o próprio corpo e a vontade não distorcida de o pôr em relação com o corpo e a vida do outro produzem o prazer que atravessa o corpo e impregna a vida inteira. “Quando se fala de ‘densidade lúdica’ da sexualidade é preciso superar o equívoco da trivialização e do engano. Não se trata de ‘jogar-se ao outro’ mas de ‘jogar com o outro’, na festa da vida que se abre e que se dá. É preciso também superar o preconceito de que este jogo é fácil e que pode praticar-se sem grande responsabilidade” (A. Autiero).

2009-10-29

BeautifulPeople.com

Este site tem, como grande missão (!?) “criar uma comunidade mundial perfeita de beleza”, uma espécie de gueto... mas para lind@s, uma favela de bonit@s no meio da fealdade.
Vivemos hoje o culto da beleza: quem é bel@ tem muitas portas abertas emai ainda se souber usar os seus atributos. Este culto da beleza insere-se num contexto mais lato do culto do corpo.
Felizmente, que o corpo ganhou foros de cidadania. Claro que, como manda o pêndulo da história, agora caiu-se no exagero. Dados de 2003, apontavam para gastos, só em cosméticos, de 180 mil milhões de dólares; não contando com cirurgias estéticas, etc..
Mas era indispensável reabilitar o corpo. Sobretudo perante a desconsideração e até humilhação a que foi submetido pela Igreja católica e não só.
A antropologia semito-bíblica do A.T. é a unicidade da pessoa, isto é, mesmo quando se fala de um órgão ou membro, estes não se significam a si mesmos mas sim a concepção unitária e sintética da pessoa como se pode ver por estes dois entre milhares de paralelismos sintéticos da poesia bíblica: alma e pescoço: (“ darão vida à tua alma / e beleza ao teu pescoço”: Prov 3,23); “eu” e “meus ossos” e “minha alma” e “eu” (Sal 6,3-5).
Com a tradução dos LXX passou-se a uma antropologia dicotómica (corpo e alma) ou tricotómica (corpo, alma e espírito) que escancarou as portas à antropologia grega dualista. Longos séculos passaram até ao Concílio escrever: “O homem, ser uno, composto de corpo e alma” (GS 14)
Neste arco histórico, muita coisa aconteceu. O dualismo grego apresenta o corpo como prisão da alma. A mais simples e estética explicação do mito da caverna é certamente a do Adamastor:
Abraçados as almas soltaram
Da formosa e misérrima prisão
(Lusíadas, V, 48).
Com estas “más” influências (platónicas, estóicas, maniqueias), a Igreja foi denegrindo o corpo até o considerar um dos três inimigos da alma. E com a diabolização do corpo, vieram todos os traumas e mal-entendidos com o sexo, o prazer e quejandos. Claro que houve excepções como a de Tertuliano: Caro cardo salutis (a carne (o corpo) é a charneira da salvação). Mas o próprio prazer sexual (dentro do casamento, claro!) teve de esperar por Pio XII para ser legitimado.

Há uns anos atrás, aceitei um convite para animar um curso de Verão com freiras. Pensei que fosse mesmo “um curso de Verão” e com freiras “normais”. Quando lá cheguei deparei-me com 14 freiras, mas todas elas directoras de instituições religiosas de… todo o mundo. Imaginarão como fiquei…
Recordo isto, não por razões curriculares, mas porque de todo esse trabalho, extremamente interessante, pelo menos para mim, o que me ficou foi uma pergunta posta por alguém que vinha da Índia. O seu problema era que as noviças gostavam de se apresentar bem, de serem ou parecerem lindas. E pediu a minha opinião: “Olhe, Irmã, o que Deus quer é que todos sejamos felizes, bonitos na alma mas também no corpo. E, por que razão deviam as noivas do Senhor não ser bonitas? Será que as feias e as que não querem cuidar do seu corpo são, por isso, mais amadas pelo seu Amado? Deixe-as ser bonitas. Isso não é pecado. Pode até ser uma virtude!”. Com um suspiro de alívio, agradeceu-me: “Não imagina o peso que me tirou de cima da alma!".
Quantos teólogos e moralistas me teriam crucificado por causa desta resposta, não sei. Mas o que sei é que o nosso Deus é Amor, Beleza, Alegria, Paz. E as suas criaturas também o devem ser, mesmo as ditas “consagradas”. Não acham que tenho razão!?

Felizmente hoje já se vai falando de uma “teologia do corpo”.

2009-10-28

CinV (38) Crise alavanca do Desenvolvimento? (nº 21)

Neste capítulo II, Bento XVI utiliza o método das comparações: antes, no tempo de Paulo VI, era “assim”; agora é diferente. Destaca as diferenças e procura apontar algumas pistas para a solução dos novos problemas.
Começa por repetir uma ideia central do pensamento social da Igreja, a de que o desenvolvimento autêntico não pode ser apenas económico: “Isto significava, do ponto de vista económico, a sua (dos povos) participação activa e em condições de igualdade no processo económico internacional; do ponto de vista social, a sua evolução para sociedades instruídas e solidárias; do ponto de vista político, a consolidação de regimes democráticos capazes de assegurar a liberdade e a paz”.
E explicita com uma observação sobre o lucro: “O lucro é útil se, como meio, for orientado para um fim que lhe indique o sentido e o modo como o produzir e utilizar. (Contudo) o objectivo exclusivo de lucro, quando mal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a destruir riqueza e criar pobreza”. Já João Paulo II chamara a atenção para a interpretação errada sobre o lucro: “A Igreja reconhece a justa função do lucro, como indicador do bom funcionamento da empresa (…) Todavia o lucro não é o único indicador das condições da empresa. Pode acontecer que a contabilidade esteja em ordem e simultaneamente os homens, que constituem o património mais precioso da empresa, sejam humilhados e ofendidos na sua dignidade” (CA 35).
Como todas as realidades humanas também o desenvolvimento é uma realidade ambígua:
- por um lado, arrancou milhões de pessoas da fome e permitiu a muitos povos tornarem-se agentes efectivos e eficazes da política internacional;
- por outro, “foi e continua a ser afectado por anomalias e problemas dramáticos, evidenciados ainda mais pela actual situação de crise”: os maus usos da tecnologia e da ciência; a injustiça em muitas relações internacionais, os efeitos dramáticos sobre a economia real de uma actividade financeira mal utilizada e maioritariamente especulativa; os crescentes e mal acompanhados fluxos migratórios; a exploração descontrolada dos recursos da terra com a consequente degradação ambiental.

Estas e outras anomalias estão a ser agudizadas por uma das maiores crises das últimas décadas, o que nos induz, “hoje a reflectir sobre as medidas necessárias para dar solução a problemas que são não apenas novos relativamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI, mas também e sobretudo com impacto decisivo no bem presente e futuro da humanidade”.
Esta crise surge num tempo em que há uma maior interdependência entre os povos e, portanto, obriga a uma séria articulação e colaboração entre todos, porque a crise não é só de alguns, mas atinge todos, embora de modo e intensidade diferentes: “Os aspectos da crise e das suas soluções bem como de um possível novo desenvolvimento futuro estão cada vez mais interdependentes, implicam-se reciprocamente, requerem novos esforços de enquadramento global e uma nova síntese humanista”.
Contudo não podemos olhar a crise apenas como um desastre ou uma fatalidade, mas sobretudo como um tempo de mudança e de reconversão de hábitos, costumes, mecanismos e instituições, tornando-nos mais preocupados por todas as pessoas e todos os povos e não apenas por alguns. É uma janela de oportunidades que não devemos deixar fechar. É mais uma oportunidade (kairós)para nos assumirmos como membros de uma única família com iguais direitos e deveres e com iguais responsabilidades por um futuro que ou é comum ou não será. É tempo de praticar a esperança e a confiança e de recusar o pessimismo, o desânimo e o fatalismo. Porque o futuro será o que nós quisermos: “A complexidade e gravidade da situação económica actual preocupa-nos, com toda a justiça, mas devemos assumir com realismo, confiança e esperança as novas responsabilidades a que nos chama o cenário de um mundo que tem necessidade duma renovação cultural profunda e da redescoberta de valores fundamentais para construir sobre eles um futuro melhor. A crise obriga-nos a projectar de novo o nosso caminho, a impor-nos regras novas e encontrar novas formas de empenhamento, a apostar em experiências positivas e rejeitar as negativas. Assim, a crise torna-se ocasião de discernimento e elaboração de nova planificação. Com esta chave, feita mais de confiança que resignação, convém enfrentar as dificuldades da hora actual”.

2009-10-25

CinV (37) Urgência na actuação (nº 20)

A fechar este I capítulo, Bento XVI recorda a urgência de fazer mudanças profundas: “A Populorum progressio sublinha repetidamente a urgência das reformas, pedindo para que, à vista dos grandes problemas da injustiça no desenvolvimento dos povos, se actue com coragem e sem demora”. Esta era efectivamente uma das grandes preocupações de Paulo VI, que várias vezes fala de urgência:
- “Este ensinamento é grave e a sua aplicação urgente. Os povos da fome dirigem-se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência. A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão” (3);
- “Diante da amplitude e urgência da obra a realizar, os meios herdados do passado, apesar de insuficientes, não deixam contudo de ser necessários” (7);
- “Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, incluindo os de propriedade e de comércio livre, estão-lhe subordinados (ao destino universal dos bens): não devem portanto impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização; e é um dever social grave e urgente conduzi-los à sua finalidade primeira” (22);
- “Urge começar: são muitos os homens que sofrem, e aumenta a distância que separa o progresso de uns da estagnação e, até mesmo, do retrocesso de outros” (29);
- “A situação actual deve ser enfrentada corajosamente, assim como devem ser combatidas e vencidas as injustiças que ela comporta. O desenvolvimento exige transformações audaciosas, profundamente inovadoras. Devem empreender-se, sem demora, reformas urgentes” (32);
- “Não se trata apenas de vencer a fome, nem tampouco de afastar a pobreza. O combate contra a miséria, embora urgente e necessário, não é suficiente. Trata-se de construir um mundo em que todos os homens, sem excepção de raça, religião ou nacionalidade, possam viver uma vida plenamente humana, livre de servidões que lhe vêm dos homens e de uma natureza mal domada; um mundo em que a liberdade não seja uma palavra vã e em que o pobre Lázaro possa sentar-se à mesa do rico” (47);
- “Quando tantos povos têm fome, tantos lares vivem na miséria, tantos homens permanecem mergulhados na ignorância, tantas escolas, hospitais e habitações, dignas deste nome, ficam por construir, torna-se um escândalo intolerável qualquer esbanjamento público ou privado, qualquer gasto de ostentação nacional ou pessoal, qualquer recurso exagerado aos armamentos. Sentimo-nos na obrigação de o denunciar. Dignem-se ouvir-nos os responsáveis, antes que se torne demasiado tarde” (53);
- “Neste caminhar, todos somos solidários. A todos, quisemos nós lembrar a amplitude do drama e a urgência da obra que se pretende realizar. Soou a hora da acção: estão em jogo a sobrevivência de tantas crianças inocentes, o acesso a uma condição humana de tantas famílias infelizes, a paz do mundo e o futuro da civilização. Que todos os homens e todos os povos assumam as suas responsabilidades” (80).

Bento XVI destaca dois aspectos: “A urgência não está inscrita só nas coisas, não deriva apenas da rápida sucessão dos acontecimentos e dos problemas, mas também do que está em jogo: a realização de uma autêntica fraternidade. A relevância deste objectivo é tal que exige a nossa disponibilidade para o compreendermos profundamente e nos mobilizarmo concretamente, com o «coração», a fim de fazer avançar os actuais processos económicos e sociais para metas plenamente humanas”.
É realmente um problema de “coração”, de vontade, de fraternidade. Se quisermos, podemos, como reconhece a própria ONU: “A erradicação global da pobreza é mais que um imperativo moral e um compromisso da solidariedade humana. É uma possibilidade prática. Chegou a altura de erradicar os piores aspectos da pobreza humana dentro de uma ou duas décadas, de criar um mundo mais humano, mais estável, mais justo” (PNUD, 1997).
Para tal precisamos de uma “cultura da doação”: “A economia tornar-se-á mais humana mediante um conjunto de reformas a todos os níveis, inteiramente orientadas para o melhor serviço ao verdadeiro bem comum, isto é, mediante uma visão ética fundamentada sobre o valor infinito de cada homem e de todos os homens; uma economia que se deixa inspirar pela necessidade de criar relações entre os povos, com base num constante intercâmbio de dons, numa verdadeira cultura da doação que deve capacitar todos os países para responder às necessidades dos menos afortunados” (Conselho Pontifício “Cor Unum”, A fome no mundo (1996), 40).

2009-10-24

Caim

Não li nem faço intenções de ler o livro. Mas as palavras públicas de Saramago e outros intervenientes sugerem-me algumas reflexões.
Vou partir do princípio de que Saramago quando fala da Bíblia e de Deus se refere ao AT. O que é, já de si estranho, para quem escreveu um “Evangelho”.
Efectivamente o AT descreve alguns episódios e atribui a Javé ordens que podem ser classificadas de cruéis. "A Bíblia nem sempre é um livro edificante" dizia o meu professor de Hagiógrafos (Sapienciais). O problema é que o AT não pode ser reduzido a essa meia dúzia de páginas num total de 1500. É verdade que no AT se cruzam várias concepções de Deus. Mas falar apenas do Deus cruel é ignorar, propositadamente ou não:
- o Deus que cria o ser humano à sua imagem e semelhança, isto é, livre, comunitário, com igualdade de género, num mundo cultural onde os deuses criaram o homem para ser seu escravo e bode expiatório;
- o Deus libertador que luta contra o faraó e liberta os hebreus e lhes dá uma terra “onde corre leite e mel”;
- o Deus que faz opção decidida pelos pobres: “Ai de vós se a viúva, o órfão e o estrangeiro se queixar do vosso comportamento”;
- o Deus que detesta os cultos sem o cumprimento d justiça social: “Já me enjoa a gordura dos vossos cordeiros (imolados), o ruído das vossas assembleias litúrgicas. Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem, procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas”;
- o Deus “lento na ira e cheio de misericórdia”.
E já nem falo do NT, que nos mostra Deus como o Pai do Filho pródigo, que é Amor, e que aponta como característica dos seus discípulos o amor; o Deus, que, em Jesus Cristo fala publicamente com as mulheres, que toca fisicamente nos leprosos, que come com os pecadores, etc.
Ora de um prémio Nobel espera-se que investigue aquilo de que fala. Que escreva, como outros, ficcionando, óptimo. Mas a liberdade de expressão não pode desvirtuar os factos. Nem serve o o argumento da liberdade de opinião. Se assim fosse, poderia dizer-se que o Holocausto não existiu ou que o grande responsável pela descoberta do caminho marítimo para a Índia foi exclusivamente D. Manuel I não cabendo nenhum mérito a D. João II.

Enquanto crente, não me sinto ofendido com as suas palavras. Não ofende quem quer.
O que disse antes é mais como cidadão, que espera que haja algum respeito pelos factos históricos, agradáveis ou desagradáveis.

Penso que a reacção dos responsáveis da Igreja deveria ser muito mais no sentido de mostrar a bondade do nosso Deus, o seu amor infinito pela humanidade, a sua infinita misericórdia, que a Igreja nem sempre manifesta devidamente.
Mas é importante não esquecer que esse Deus de que fala Saramago foi o Deus que foi ensinado na catequese antes do Vaticano II, o que eu chamo o Deus do Salmo 29, um Deus que eu não conseguia aceitar. Um Deus de que me libertei ou então deixaria de acreditar nele, quando descobri Jesus Cristo que nos veio revelá-lo (“fazer a sua exegese”, diz a versão grega): “A Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigénito, que é Deus e está no seio de Deus, foi ele quem o deu a conhecer (exegesato)” (Jo 1, 18).

Finalmente esta insistência de alguém, que aparece como ateu, em temas bíblicos faz-me lembrar a célebre abertura das Confissões de S.to Agostinho: “O homem, fragmentozinho da criação, deseja louvar-Vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós”.

2009-10-20

CinV (36) Fundamentos da convivência entre pessoas e povos

Uma leitura mesmo superficial desta primeira parte da encíclica mostra os pilares de um desenvolvimento ao serviço do bem comum: justiça (6), liberdade (17), verdade (18) e caridade (19).
Quem introduziu formalmente esta tetralogia foi João XXIII, que a apresenta logo no título de uma das suas grandes encíclicas: “Pacem in Terris, sobre a paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade” e a coloca, como recapitulação, já na parte final: “A paz será uma palavra vazia de sentido, se não estiver fundada sobre aquela ordem que, com confiante esperança, esboçamos nas suas linhas gerais nesta nossa encíclica: ordem que tem de ser fundada na verdade, construída segundo a justiça, vivida e integrada pela caridade e, por fim, na liberdade” (167).
Como se sabe esta foi uma encíclica que ficou muito famosa e é a primeira inteiramente dedicada à paz, que era uma sua preocupação fundamental e um “profundo anseio que sabemos ser comum a todos os homens de boa vontade: o desejo da consolidação da paz neste mundo" (166). Esta declaração final fecha o círculo, ao fazer-se eco das suas primeiras palavras: "A paz na terra, profunda aspiração dos homens de todos os tempos…" (1).
Apenas três notas sobre esta reflexão inovadora feita por João XXIII sobre a paz e seus fundamentos.

1ª. João XXIII não segue o esquema clássico sobre a paz nem sequer repete o que disse Pio XII, não só porque o considerava conhecido, mas sobretudo porque se coloca num plano diferente. Enquanto Pio XII aborda o problema principalmente como moralista, João XXIII põe de lado a casuística, isto é, não se põe a dizer o que devemos fazer se a guerra rebentar de novo, mas espera que ela não comece, assumindo uma abordagem profética. Prefere, portanto, partir da aspiração de todos à paz, o que significa que ela é possível, pois trata-se de uma causa que não só “se impõe pelos princípios da recta razão mas que é sumamente desejável e fecunda em preciosos resultados” (113). João XXIII aposta na natureza humana. A guerra não é conforme à verdadeira natureza humana; a guerra é demasiado cruel para ser uma fatalidade. Em vez de apresentar a sua doutrina da paz a partir de fora, parte do sujeito humano e leva-o a descobrir o sentido das suas aspirações: mostra aos homens que, partindo quer das suas inquietações (113), quer dos seus entusiasmos (2), só uma comunidade fundada sobre a verdade, a justiça, o amor e a liberdade pode satisfazer a sua vontade histórica e incoercível de progresso e que a paz constitui antes de mais uma realidade de ordem espiritual (36; 45).

2ª. Especial destaque merece a afirmação de que os critérios, que devem regular as relações entre as pessoas, são exactamente os mesmo que devem regular as relações entre os povos. Isto é, as nações no concerto internacional estão sujeitas às mesmas leis morais que as pessoas na sua comunidade, “porque é necessário que a mesma lei natural que regula as relações entre os cidadãos regule as relações entre as respectivas comunidades políticas” (80).
“A convivência entre os seres humanos só poderá, pois, ser considerada ordenada, fecunda e conforme à dignidade humana, quando fundada na verdade (…). Isto obter-se-á se cada um reconhecer devidamente tanto os direitos recíprocos e os correspondentes deveres (…), quando os cidadãos, guiados pela justiça, respeitarem efectivamente esses direitos e cumprirem os respectivos deveres; quando se deixarem conduzir por um amor que sinta as necessidades alheias como próprias, fazendo os outros participantes dos próprios bens (…) Mas isto não basta. A sociedade humana tem de realizar-se na liberdade, ou seja, no modo que convém à dignidade de cidadãos que, sendo por natureza dotados de razão, devem assumir responsabilidade dos seus actos” (35).
“As comunidades políticas, umas em relações às outras, são de igual modo sujeitos de direitos e deveres e, por isso, as suas relações têm também de ser reguladas pela verdade, pela justiça, pela solidariedade generosa e pela liberdade” (80).

3ª. Assim, João XXIII antecipa a decidida aceitação pelo Concílio da célebre trilogia da Revolução francesa: liberdade (a grandeza da liberdade: GS 17), igualdade (a igualdade essencial de todos: GS 29) e fraternidade (o Verbo incarnado como fundamento da fraternidade e da solidariedade: GS 32).

2009-10-16

CinV (35) Progresso e Caridade (nº 19)

O subdesenvolvimento não tem apenas e primariamente causas do âmbito material. Há outras causas bem mais gravosas e com efeitos mais profundos.

1ª A falta de vontade política em resolver o problema. Aliás esta fora já uma queixa de João Paulo II: “Se durante os anos decorridos desde a publicação da Encíclica de Paulo VI o desenvolvimento não se verificou — ou se verificou em medida escassa, irregular, se não mesmo contraditória — as razões não podem ser só de natureza económica. Como já se fez alusão, acima, intervêm nele também motivações políticas. As decisões que impulsionam ou refreiam o desenvolvimento dos povos, outra coisa não são, efectivamente, senão factores de carácter político. Para superar os mecanismos perversos, já recordados, e substituí-los com outros novos, mais justos e mais conformes ao bem comum da humanidade, é necessária uma vontade política eficaz. Infelizmente, depois de se ter analisado a situação, é forçoso concluir que ela foi insuficiente” (SRS 35). Foi insuficiente e continua insuficiente. Veja-se, a título de exemplo, o que se passa com os Objectivos do Milénio, aprovados pela ONU em 2000: erradicar a pobreza extrema e a fome; alcançar o ensino primário universal; promover a igualdade de género e dar poder às mulheres; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a saúde materna; combater a Sida, a malária e outras doenças; assegurar a sustentabilidade ambiental; promover uma parceria mundial para o desenvolvimento. O que se tem feito? Com que eficácia? E a que velocidade?

2ª Bento XVI encontra uma outra causa “no pensamento, que nem sempre sabe orientar convenientemente o querer; por isso, para a prossecução do desenvolvimento, são necessários «pensadores capazes de reflexão profunda, em busca de um humanismo novo, que permita ao homem moderno o encontro de si mesmo» (PP 20)”. Isto é, temos muitos técnicos mas poucos sábios. Já o Concílio reconhecia que “nosso tempo precisa de uma tal sabedoria, para que se humanizem as novas descobertas dos homens. Está ameaçado, com efeito, o destino do mundo, se não surgirem homens cheios de sabedoria. E é de notar que muitas nações, pobres em bens económicos, mas ricas em sabedoria, podem trazer às outras inapreciável contribuição” (GS 15).

3ª “A falta de fraternidade entre os homens e os povos” (PP 66) é talvez a causa mais profunda, já que sem um espírito de fraternidade falta a solidariedade, a compaixão, o cuidado pelo outro, a preocupação pelo bem de todos e de cada um: “Esta fraternidade poderá um dia ser obtida pelos homens simplesmente com as suas forças? A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade. Esta tem origem numa vocação transcendente de Deus Pai, que nos amou primeiro, ensinando-nos por meio do Filho o que é a caridade fraterna”.
Esta expressão deveria fazer-nos meditar profundamente: a nossa sociedade, com todo o seu aparato jurídico quando muito torna-nos vizinhos (e às vezes bem mauzinhos!) mas nunca nos tornará irmãos. Enquanto não sentirmos a sociedade como uma comunidade moral em vez de apenas jurídica jamais conseguiremos construir uma comunidade à medida da pessoa, de todas as pessoas e da pessoa na sua totalidade.
Este é um contributo imprescindível que o cristianismo e outras religiões têm de dar: todos somos filhos do mesmo Pai e, portanto irmãos e herdeiros de Terra que é de todos, com igual direito à felicidade. A fundamentação cristã da igual dignidade entre todas pessoas assenta em três argumentos muito fortes e que não dependem das qualidades nem dos méritos de cada um: todos fomos criados por Deus à sua imagem e semelhança; todos fomos redimidos pelo sangue de Cristo e todos somos chamados à felicidade eterna. Não precisamos de converter ninguém a esta certeza, mas temos a obrigação acrescida de a testemunhar e colocar como norma suprema da nossa vida nas nossas relações com os outros e no nosso compromisso “único e insubstituível” para a construção de um mundo e de um futuro melhores, em colaboração e diálogo leal com todos os homens e mulheres de boa vontade.

2009-10-13

Convites a Bento XVI e a Obama

Causou alguma polémica e dissonância o convite feito ao presidente Obama para proferir uma conferência na Universidade de Notre Dame (Indiana, EUA).
Enquanto o cardeal Cottier, ex-teólogo da Casa Pontifícia, se mostrou publicamente favorável, o arcebispo de Denver, D. Chaput, considera esta decisão “grave”, porque “num momento em que os bispos americanos de forma institucional já haviam expressado uma grande preocupação com as políticas abortistas da nova administração, não só Notre Dame fez do presidente o centro de seus actos de graduação, mas também lhe outorgou um Doutorado honoris causa, apesar dos seus preocupantes pontos de vista sobre o direito ao aborto e a questões sociais relacionadas com ele”.
Não vou discutir concretamente as “políticas abortistas” de Obama. Mas ao ignorar toda a sua preocupação pelos mais pobres, nomeadamente a grande batalha que teve de travar por um sistema de saúde para todos, a sua preocupação por lutar pela paz procurando quebrar espirais de violência, estabelecer pontes, fomentar decisões partilhadas, respeitar os povos, o arcebispo Chaput atira isto tudo para o cesto dos papéis, como se Obama devesse obedecer às suas normas disciplinares.
Gostaria de saber se D. Chaput achou bem que Bento XVI fosse proibido, por causa de meia dúzia de “chaputianos” de outra cor, de fazer a lição inaugural numa Universidade italiana para que tinha sido convidado.
E já agora o que pensa ele da recente suspensão, pelo Partido dos Trabalhadores brasileiro, de dois deputados pelo facto de serem contrários à "legalização do aborto".
Juntei estes três factos porque eles são sintomas das dificuldades que ainda existem no diálogo da Igreja com a(s) sociedade(s).
É dever e missão indeclináveis da Igreja proclamar, com convicção (eu até diria, sobretudo, com sedução) e respeito pelos outros, a maravilhosa mensagem libertadora de Jesus Cristo que nem sempre ressalta das suas palavras e gestos. Contudo, não pode considerar-se única, nem o único movimento legítimo de opinião, nem a única responsável pela moral pública, nem sobretudo a única detentora da verdade. Tem de perceber que a sua influência é a do testemunho, a do amor mesmo e sobretudo aos que não concordam connosco, a permanente atenção às linguagens de cada geração, procurando traduzir para os nossos dias e para as mentalidades de hoje as palavras do Evangelho, as únicas que são palavras de vida eterna. Esgotar-se na repetição de condenações (com vão longe as palavras e as atitudes de João XXIII que preferia o remédio da misericórdia!), numa pastoral do medo (que falta de fé no Espírito Santo!?), no apontar de pecados (Deus olha-nos não como pecadores mas como sofredores, necessitados de libertação, como tão bem mostra a parábola do Filho pródigo) deixa a Igreja muito distante da misericórdia, do amor e do perdão permanentes de um Deus que é chamada a testemunhar e a proclamar.
Por isso, não conseguimos centrar-nos no essencial e vamo-nos deixando cair na armadilha dos “temas fracturantes” sem uma palavra inovadora e esclarecedora preferindo a repetição de argumentos anacrónicos, desincarnados, que nada dizem aos homens e mulheres de hoje.
Perdemos a capacidade criativa, profética e sedutora. E, assim, as nossas Igrejas (as de pedra e as comunidades) vão sendo abandonadas pelos desiludidos, sem respostas, amorosas, convincentes e repassadas de misericórdia, sobre os grandes problemas que os atormentam e afectam sobre a vida presente e o futuro que se apresenta tão nebuloso.

2009-10-10

CinV (34) Progresso e Verdade (nº 18)

“Além de requerer a liberdade, o desenvolvimento humano integral enquanto vocação exige também que se respeite a sua verdade”. Bento XVI desenvolve esta ideia em quatro aspectos.

1ª. O progresso deve levar as pessoas a “realizar, conhecer e possuir mais, para ser mais” (PP 6). Mas o que significa “ser mais”. Paulo VI explica que “só assim se poderá realizar em plenitude o verdadeiro desenvolvimento, que é, para todos e para cada um, a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas” (PP 20). E explicita de seguida: “Deve-se dizer que vivem em condições menos humanas, primeiramente os que são privados do mínimo vital pelas carências materiais ou que por carências morais são mutilados pelo egoísmo. E depois os que são oprimidos por estruturas opressivas, quer provenham dos abusos da posse ou do poder, da exploração dos trabalhadores ou da injustiça das transacções. Mais humanas: a passagem da miséria à posse do necessário, a vitória sobre os flagelos sociais, o alargamento dos conhecimentos, a aquisição da cultura; … a consideração crescente da dignidade dos outros, a orientação para o espírito de pobreza, a cooperação no bem comum, a vontade da paz; o reconhecimento, pelo homem, dos valores supremos, e de Deus que é a origem e o termo deles. E finalmente e sobretudo, a fé, dom de Deus acolhido pela boa vontade do homem, e a unidade na caridade de Cristo que nos chama a todos a participar como filhos na vida do Deus vivo, Pai de todos os homens” (PP 21).

2ª. “Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo” (PP 14). Portanto não só deve promover cada pessoa em todas as suas dimensões mas também todas as pessoas e povos. Como diz Bento XVI: “A verdade do desenvolvimento consiste na sua integralidade: se não é desenvolvimento do homem todo e de todo o homem, não é verdadeiro desenvolvimento”. Esta é a visão cristã que “tem a peculiaridade de afirmar e justificar o valor incondicional da pessoa humana e o sentido do seu crescimento. A vocação cristã ao desenvolvimento ajuda a empenhar-se na promoção de todos os seres humanos e da pessoa toda”. Paulo VI sintetizava: “O que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à humanidade inteira” (PP 14).
Paulo VI, no encerramento do Concílio (7.Dez.1965), recordou que uma das suas preocupações centrais foi “o homem tal qual se mostra realmente no nosso tempo: o homem que vive, o homem que se esforça por cuidar só de si; o homem que não só se julga digno de ser como que o centro dos outros, mas também não se envergonha de afirmar que é o princípio e a razão de ser de tudo. Todo o homem fenoménico, revestido dos seus inúmeros hábitos, com os quais se revelou e se apresentou diante dos Padres conciliares, que são também homens, todos pastores e irmãos, e por isso atentos e cheios de amor; o homem que lamenta corajosa­mente os seus próprios dramas; o homem que não só no passado mas tam­bém agora julga os outros inferiores, e, por isso, é frágil e falso, egoísta e feroz; o homem que vive descontente de si mesmo, que ri e chora; o homem versátil, sempre pronto a representar; o homem rígido, que cultiva apenas a realidade científica; o homem que como tal pensa, ama, trabalha, sempre espera alguma coisa; o homem sagrado pela inocência da sua infância, pelo mistério da sua pobreza, pela piedade da sua dor; o homem individualista, dum lado, e o homem social, do outro; o homem que louva o seu tempo e o homem que sonha com o futuro; o homem por um lado sujeito a faltas e por outro adornado de santos costumes; e assim por diante”.
E João Paulo II lembrou que “o homem é o verdadeiro e fundamental caminho da Igreja” (RH 14).

3ª. “A fé cristã ocupa-se do desenvolvimento sem olhar a privilégios nem posições de poder nem mesmo aos méritos dos cristãos”. Suponho que as últimas palavras não quererão indiciar qualquer superioridade “moral ou cívica” dos cristãos. Mas o desenvolvimento para ser autêntico não pode olhar a privilégios nem fazer discriminações, sejam de que tipo forem.

4ª. O Evangelho é elemento fundamental do desenvolvimento, porque Jesus Cristo sempre colocou a pessoa no centro de todas as preocupações.

2009-10-07

UNESCO

Tão agitada andou a nossa campanha eleitoral foi (e ainda anda, mas mais localizada) que possivelmente nem demos pelas eleições para Director Geral da UNESCO.
A UNESCO (das iniciais United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) é um dos primeiros organismos especializados da ONU, pois foi criado a 16.Nov.1945, tendo como objectivo de contribuir para a paz e segurança no mundo através da educação, da ciência e da cultura, como o seu nome indica, especialmente através da erradicação do analfabetismo. Preocupa-se também com a definição, preservação e restauração de locais que classifica como “património da humanidade”. Tem ainda uma vertente de “patrimónios imateriais” de que se espera que, dentro de dois anos, o nosso fado faça parte, tal como o tango já faz.
Com objectivos tão nobres, a verdade é que a UNESCO tem perdido credibilidade, devido a situações escandalosas de compadrios e corrupção bem como declarações e atitudes demagógicas.
Pois há cerca de quinze dias foi eleito o novo Director Geral. E mais uma machadada lhe ia acontecendo. O candidato, dado como vencedor, pois era apoiado, pela Liga árabe, pela OUA e também pela França e outros países europeus, era Faruk Hosni, pintor e ministro da cultura do Egipto. Além disso, parecia ter o curriculum ideal para continuar esta caricatura da UNESCO: faz parte de um governo que pratica sistematicamente a censura, colaborou na fuga de terroristas árabes que assaltaram o cruzeiro “Achille Lauro”, matando um turista inválido, que por acaso era judeu (e) americano, e comprometeu-se no Parlamento a queimar os livros judeus pertencentes ao espólio da grande biblioteca de Alexandria.
Não sei que interesses se moviam por detrás destas manobras (nem sequer Israel manifestou o seu desacordo) mas é altura de a UNESCO ser dignificada e procurar alcançar os objectivos iniciais e que são a sua real razão de ser. A sua responsabilidade é hoje acrescida pois estamos num tempo de mudança, no qual a cultura vai ter, tem de ter, um papel determinante na procura de uma bússola que nos aponte algum rumo libertador e gerador de amanhã(s) que canta(m) para todos, num mundo onde vários milhares de milhões de pessoas não têm o mínimo para uma refeição decente.
Felizmente, a meio das sucessivas votações dois votos mudaram de sentido, o que permitiu derrotar Hosni e eleger Irina Bokova, embaixadora da Bulgária em Paris.
Não conheço a senhora de lado nenhum, mas pior que Hosni deve ser difícil.
Mas não chega ser melhor qu ele. É preciso reabilitar rapidamente a UNESCO.

2009-10-06

CinV (33) Santa e sempre necessitada de purificação

No contexto que venho analisando, não devo deixar de fora a Igreja, tendo sempre presente o muito que a Igreja deu e dá de bom à humanidade num saldo francamente positivo. E é para que ele seja cada vez maior e mais fiel a Jesus Cristo e aos homens e mulheres de hoje que faço este comentário.
A frase do título é uma das afirmações fortes do Concílio: “Enquanto Cristo «santo, inocente, imaculado», não conheceu o pecado, mas veio apenas expiar os pecados do povo, a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação” (LG 8). Não sei se os padres conciliares teriam presente a “casta meretrix” de S.to Ambrósio: “(A Igreja é) casta meretriz, porque muitos amantes a frequentam pelos atractivos do amor, mas sem a contaminarem de culpa”.
A Igreja é também uma instituição humana, formada por homens e mulheres pecadores, com as suas fraquezas e limitações, como a história mostra e o Concílio recordou: “Ainda que a Igreja, pela virtude do Espírito Santo, se tenha mantido esposa fiel do Senhor e nunca tenha deixado de ser um sinal de salvação no mundo, no entanto, ela não ignora que entre os seus membros, clérigos ou leigos, não faltaram, no decurso de tantos séculos, alguns que foram infiéis ao Espírito de Deus” (GS 43).
João Paulo II, consciente disso, pediu perdão público pelas muitas faltas que os homens da Igreja cometeram ao longo da história. Este seu gesto merece-me três observações:

1ª. A coragem de João Paulo II ao tomar esta atitude inédita, apesar das muitas pressões da Cúria romana, receosa de que tal gesto diminuísse a autoridade moral da Igreja!!!

2ª. O pedido de perdão pelas faltas passadas, esquecendo as presentes, que aliás o Concílio reconhecera sem dificuldade: “E também nos nossos dias, a Igreja não deixa de ver quanta distância separa a mensagem por ela proclamada e a humana fraqueza daqueles a quem foi confiado o Evangelho” (GS 43). Muitos criticam o “atraso” deste mea culpa, pois pode significar que em décadas ou séculos futuros se venha a fazer outra mea culpa por atitudes que hoje a Igreja já comete mas não quer ou não sabe reconhecê-las. Assim sendo, perguntam para que servem estes pedidos de perdão. É que não basta pedir perdão pelo passado; deve olhar-se e viver-se o presente tendo em conta os valores perenes do Evangelho mas no contexto de cada época. E a Igreja corre o risco de andar sempre atrasada e a reboque, quando devia estar na fila da frente já que dispõe de uma força profundamente libertadora desde que se mantenha fiel às palavras de Jesus de Nazaré e não a interpretações de alguns responsáveis aparentemente mais interessados na conservação da (sua?) doutrina do que na libertação total da pessoa e do mundo. A história deve tornar mais humildes os que dispõem de poder, pois mostra quantas vezes foram impostas doutrinas e normas, que mais tarde tiveram de ser abandonadas.

3ª. O cuidado do Papa em falar dos “homens da Igreja” e não “da Igreja”. São homens os que fazem parte de estruturas da Igreja, como o antigo Santo Ofício, nas quais se cometeram faltas gravíssimas contra a “sacralidade” de muitas pessoa. Quem foi o autor dessas faltas: os homens ou as estruturas? Esses homens isoladamente teriam cometido essas faltas? Muito provavelmente não. Sabe-se que essas estruturas foram feitas para defesa da doutrina, do “sagrado depósito da fé”. Mas onde está a prioridade? Não “foi o sábado feito para o homem e não o homem para o sábado”? Acredito que quem ocupa estes cargos deve, por vezes, debater-se com dolorosos problemas de consciência. Mas qual deve ser a prioridade à luz do Evangelho, critério último das nossas acções e intervenções pessoais e comunitárias?
O grande teólogo moralista Häring, no seu livro “A Igreja que eu amo”, conta os mil tormentos a que foi sujeito por duas Congregações (da Doutrina da Fé e da Educação cristã), quando da publicação de alguns dos seus livros, num tempo em que ele ficara doente com “um cancro na garganta, tendo sido submetido a sete intervenções cirúrgicas e a terapia de cobalto, além de outros cuidados muito constrangedores” (p. 53). O relato desta perseguição neste contexto é realmente assustador e sinal de uma absoluta ausência de misericórdia para com alguém que está em profundo sofrimento. De tal modo que “apareceu-me a necessidade de provocar um escândalo que espero seja salutar, precisamente na medida em que pode contribuir para curar uma situação tornada patológica” (p. 51). Neste sentido termina com quatro sugestões, pois “o problema continua a ser o da reforma das instituições: os peixes não poderão viver com muita saúde num lago envenenado” (pp. 79-81).

Passado o tempo eleitoral, de cuja elevação todos certamente nos congratulamos, penso ir intervalando os comentários da encíclica com outros acontecimentos do dia a dia.

2009-10-03

CinV (32) Estruturas de pecado

Durante muitos séculos era impensável pôr em causa a organização social, pois a doutrina da Igreja considerava-a, de algum modo, de origem divina. Esta mentalidade fixista e alérgica a qualquer mudança ainda hoje, como referi, faz parte estrutural da mentalidade de muitos cristãos. E não só leigos. Pois até no Catecismo da Igreja Católica se pode ainda ler: “Os que estão sujeitos à autoridade considerarão os seus superiores como representantes de Deus, que os instituiu ministros dos seus dons” (nº 2238)!

João XXIII acrescentou três “novas desigualdades” para lá da já conhecida entre operários e patrões: “entre os diversos sectores económicos, entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas economicamente menos desenvolvidas dentro da economia nacional, e, no plano, mundial, entre países desigualmente desenvolvidos em matéria económica e social” (MM 122). O Concílio retoma esta ideia: “Enquanto multidões imensas carecem ainda do estritamente necessário, alguns, mesmo nas regiões menos desenvolvidas, vivem na opulência e na dissipação. Coexistem o luxo e a miséria. Enquanto um pequeno número dispõe dum grande poder de decisão, muitos estão quase inteiramente privados da possibilidade de agir por própria iniciativa e responsabilidade, e vivem e trabalham em condições indignas da pessoa humana” (GS 63). E aponta alguns princípios orientadores, nomeadamente a pessoa como destinatário e medida do desenvolvimento (64-66), o carácter instrumental dos vários elementos da economia (67-68), o destino universal dos bens (69).
De Paulo VI já muito se disse. Mas foi sobretudo João Paulo II que deu o passo decisivo ao contrapor esta organização social, que décadas antes era considerada intocável, como incompatível com a ordem realmente querida por Deus. O papa evita a expressão “pecado social”, preferindo falar claramente de “mecanismos perversos” e de “estruturas de pecado” porque estas “estão sempre ligadas a actos concretos das pessoas que as fazem aparecer, as consolidam e tornam difícil removê-las”. O problema é que elas depois como que se autonomizam e controlam os acontecimentos: “E assim, elas reforçam-se, expandem-se e tornam-se fontes de outros pecados, condicionando o comportamento dos homens” (SRS 36).
Contudo no Sínodo de 1983, “pecado social” foi muito referido o que levou João Paulo II a esclarecer, na Exortação apostólica que publicou na sequência do Sínodo, que “a Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais certas situações ou certos comportamentos colectivos ou de grupos sociais, mais ou menos vastos, ou até mesmo de nações inteiras e blocos de nações, sabe e proclama que tais casos de pecado social são o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais. Trata-se dos pecados pessoalíssimos de quem gere ou favorece a iniquidade ou dela desfruta; de quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, eliminar ou, pelo menos, limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa conivência, por cumplicidade disfarçada ou por indiferença; de quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo; e, ainda, de quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior. As verdadeiras responsabilidades, portanto, são das pessoas” (RP 16).
Por isso, lembra que muitas iniciativas boas se podem tornar estruturas de pecado, concretamente os empréstimos internacionais: “Por força deste mecanismo, o meio destinado ao desenvolvimento dos povos tornou-se um travão e, em certos casos, até mesmo uma acentuação do subdesenvolvimento” (SRS 19).
Há várias razões para isto: por exemplo, os condicionalismos impostos pelos doadores e a corrupção de muitos responsáveis beneficiários têm um peso muito elevado. Mas, sem ignorar estas realidades, Bento XVI destaca um outro aspecto menos referido: “Às vezes sucede que o destinatário das ajudas seja utilizado em função de quem o ajuda e que os pobres sirvam para manter de pé dispendiosas organizações burocráticas que reservam para a sua própria conservação percentagens demasiado elevadas dos recursos que, ao invés, deveriam ser aplicados no desenvolvimento” (47). É o que J. Sachs mostra de modo quantitativo: “Ao contrário da percepção pública, o montante anual, por cada habitante da África subsariana, foi de apenas 30 dólares em 2002. Desta modesta verba, quase 5 dólares foram na verdade para consultores dos países doadores, mais de 3 destinaram-se a comprar alimentos e outra ajuda de emergência, 4 foram para o serviço da dívida e mais 5 para operações de alívio da dívida. Só o restante, 12 dólares, chegou à África”. Mas mesmo que chegasse tudo o que fora doado, cada pessoa teria por dia … 0,084 dólares!
A ajuda é já ela própria,indepentemente de chegar ou não na sua totalidade, uma autêntica “estrutura de pecado”.

2009-10-01

CinV (31) A ordem estabelecida pelos homens

Para chegar às “estruturas de pecado” foi preciso percorrer um longo caminho de quase 2000 anos. É certo que elas já estavam bem presentes nas condenações que Jesus fazia do seu tempo, mas os nossos olhos olham e não vêem sobretudo quando não nos interessa.
Um bom ponto de partida é a palavra de S. Paulo, tantas vezes citadas em documentos papais: “Que todos se submetam às autoridades públicas, pois não existe autoridade que não venha de Deus e as que existem foram por Deus estabelecidas. Por isso, quem resiste à autoridade opõe-se à ordem querida por Deus e os que se opõem receberão a condenação” (Rom 13,1-2).
Esta ideia veio a ter consequências enormes ao longo de toda a história. Deixando de lado as disputas medievais e os interesses em jogo na doutrina do direito divino dos reis, o que é certo é que, apoiados nesta frase bíblica, os Papas recomendavam, em nome da boa ordem social, esta estratificação, que colocava “cada macaco no seu galho”. Daqui decorrem, entre outras, duas consequências:

1ª. A ordem estabelecida não pode ser posta em causa. Repare-se nestas palavras de Gregório XVI: “Tendo sido divulgadas, em escritos que correm por todo o lado, certas doutrinas que deitam por terra a fidelidade e a submissão que se deve aos príncipes, com o que se fomenta o fogo da rebelião, deve vigiar-se muito para que os povos não se afastem, enganados, dos caminhos do bem. Saibam todos que, como diz o Apóstolo, todo o poder vem de Deus e todas as coisas são ordenadas pelo próprio Deus. Assim, pois, o que resiste ao poder resiste à ordenação de Deus e condena-se a si mesmo (Rom 13,2). Portanto, todos os que, com torpes maquinações de rebelião, se afastam da fidelidade que devem aos príncipes, querendo arrancar-lhes a autoridade que eles têm, oiçam como clamam contra eles todos os preceitos divinos e humanos” (Mirari vos, 13 (15.Agosto.1832)).
Mesmo que os “príncipes” abusem do seu poder a única solução é ter paciência e esperar que Deus lhes peça contas no Além: “Mas se alguma vez suceder que os príncipes exerçam o seu poder temerariamente e fora dos seus limites, a doutrina católica não consente insurreições contra eles, não aconteça que a tranquilidade da ordem pública seja perturbada ou que a sociedade receba por isso maior prejuízo. E se as coisas chegassem a tal ponto que não se vislumbrasse outra esperança de solução, ensina que o remédio se há-de acelerar com os méritos da paciência cristã e as fervorosas preces a Deus” (Leão XIII, Quod apostolici muneris, 6).
Esta doutrina foi tão interiorizada pelos cristãos que ainda hoje muitos são acriticamente subservientes à(s) autoridade(s) e seus acérrimos defensores. Aí poderá estar uma das dificuldades do compromisso sócio-político de muitos cristãos e dos seus medos das mudanças.

2ª. Pela mesma razão os pobres não devem revoltar-se contra os ricos, como explica Leão XIII: "O problema das relações entre ricos e pobres ficará perfeitamente solucionado se se admitir com clareza e firmeza que também a pobreza tem a sua dignidade; que o rico há-de ser misericordioso e generoso para com o pobre e o pobre há-de satisfazer-se com a sua própria sorte e o próprio trabalho, já que nem um nem outro nasceram para estes bens perecedouros e um há-de ganhar o céu com paciência, enquanto o outro deve fazê-lo com a sua liberalidade" (Auspicato concessum,12 (17.Set.1882)).
Razões tinha Marx para chamar a (esta) religião "ópio do povo".

Entre parêntesis, referiria uma outra consequência, que diz respeito à natureza da Igreja: “Esta Igreja é, por essência, uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade que compreende duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho; os que ocupam um posto nos diferentes graus da hierarquia e a multidão dos fiéis. E estas categorias são de tal modo distintas uma da outra que só no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessários à promoção e direcção de todos os membros para o fim da sociedade. Quanto à multidão, não tem outro direito senão o de deixar-se conduzir e de, como dócil rebanho, seguir os seus pastores” (Pio X (11.Fev.1906), Vehementer Nos, 8).
E foi preciso chegar ao Vaticano II para “sabermos” que a Igreja não é “rebanho de Deus”, mas “o povo de Deus”. Mas muitos cristãos (e não falo só de leigos) ainda não assimilaram esta realidade!