divórcio ou casamento eterno?...

2008-12-28

Festa da Sagrada Família

As Leituras da missa de hoje colocam algumas questões interessantes. Só no final, reparei que a reflexão se alongou exageradamente e devia tê-la dividido por três dias. Mas como está tudo tão ligado, fica à paciência de cada um lê-la por atacado ou não.

Em primeiro lugar, e deixando de lado aspectos teológicos e pastorais, não podemos deixar de pensar em inabilidade e até anacronismo o ter colocado como segunda Leitura aquela passagem que tanto magoa muitas mulheres: “Mulheres submetei-vos aos vosso maridos”, agravada ainda pelo complemento ambíguo, “como convém no Senhor”. De pouco adianta acrescentar: “Maridos amai as vossas mulheres”, também com um complemento tão esclarecedor “e não as trateis com aspereza” (Col 3,18-19). Esta escolha da Palavra foi feita "a alto nível" e, portanto, só pode significar que este é o sentimento dominante na hierarquia da Igreja sobre as mulheres. De pouco adianta fazer uma leitura “mulheres servi os vossos maridos”, porque efectivamente no cristianismo há uma identidade entre servir e amar. Esta análise até mais de acordo com versículos anteriores: “Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente. Acima de tudo revesti-vos da caridade, que é o vínculo da perfeição” (Col 3,13-14). Mas, de repente, como se de um anacluto se tratasse, lá aparece o “submetei-vos”! Terá sido um acrescento posterior? Pouco importa. Porque são estas as palavras que hoje se proclamam nas igrejas católicas em toda a parte, pelo menos em Portugal. E, apesar de a atenção não costumar ser muita, sempre repetem uma manifesta injustiça que Deus certamente não quer, mesmo que algum seu intérprete diga que “convém ao Senhor”.

Já a primeira Leitura tem passagens cheias de sabedoria que muito se apropriam à nossa época. Num tempo, em que tantos filhos deixam os pais velhinhos nos hospitais ou os despejam em lares sem ao menos o carinho de uma visita de vez em quando, é oportuno recordar estas palavras do Ben Sirá: “Filho, ampara o teu pai na velhice e não o desgostes durante toda a vida. Se a sua mente enfraquece, sê indulgente com ele e não o desprezes, tu, que estás no vigor da vida…” (Sir 3, 12-13). Na continuação repete uma afirmação muito forte já antes referida (“Quem honra o seu pai obtém o perdão dos pecados e acumula um tesouro (no céu) quem honra a sua mãe” (Sir 3, 3)): “… porque a caridade com o teu pai nunca será esquecida e converter-se-á em desconto dos teus pecados” (Sir 3, 14).
Estas, sim, são palavras para os dias de hoje!

Finalmente a apresentação da Sagrada Família como modelo certamente nem sempre é devidamente considerada.
O Evangelho diz “pouco” sobre esta família, mas deixa muitas lições, que deveriam servir-nos de modelo. Algumas “politicamente pouco correctas”. Mas estão lá!
Como modelo, porque Deus quis fazer-se homem no meio de uma família “comum”: isto é, qualquer família está chamada a ser construtora da história e, em primeiro lugar, a ser um espaço de crescimento das pessoas, especialmente dos filhos: “O menino crescia, tornava-se robusto e enchia-se de sabedoria”. Portanto a família como espaço de crescimento físico, intelectual e sapiencial.
Maria aparece-me como modelo, porque, como já aqui referi (8.Dez), ela não era uma mulher “submissa” ao marido nem ficava fechada em casa deixando que a história acontecesse. E nisso, parece-me, contrapõe-se à segunda Leitura. Cuidava da sua missão como mulher que é mãe, mas também cidadã.
Como modelo, também José, que quase não fala e de quem quase não se fala. Mas que esteve sempre ao lado de Maria, e especialmente porque confiou na sua palavra, quando apareceu grávida: esta família é modelo confiança e apoio mútuo, mesmo em situações muito difíceis.
Para mim, como pai, também me esforço por tomar Jesus como modelo, quando aos 12 anos se autonomiza e segue o seu caminho. Esta é uma “rebeldia” que não encaixa nada bem na mentalidade de muitos cristãos. Será também aqui, para eles, a Sagrada Família modelo?
Finalmente Jesus, mais tarde é também modelo. Quando lhe disseram que estavam lá fora a mãe e os irmãos ele responde, apontando para os discípulos: “Aí estão a minha mãe e os meus irmãos, pois todo o que faz a vontade de meu Pai que está no Céu, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe (Mt 12,46-50). Também aqui temos um modelo: a família não deve fechar-se sobre si e servir de oásis para os males do mundo; deve lutar por um mundo melhor, mais justo e mais humano. Se não o fizer é uma família egoísta e falha a uma missão fundamental: “fazer a vontade do Pai”, que “quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tim 2,4). Cada um, e não só os filhos, deve ser ajudado a descobrir a "sua" verdade, a "sua" vocação e a "sua" felicidade, que não pode ser imposta mas pode e deve ser proposta por palavras e sobretudo por actos.

Neste modelo só me fica uma mácula, que já vários amigos não crentes me atiraram à cara e aos quais não sei responder. Quando “fugiram para o Egipto”, por que não avisaram os seus vizinhos do perigo que aí vinha, ajudando a evitar o “massacre dos inocentes” que também hoje comemoramos?
E, peço desculpa, mas por favor não me venham com essa de que “tal era a vontade de Deus!”

2008-12-24

Multiplicar o Natal

Todos gostamos do Natal. E até procuramos que a maior parte dos que não “têm Natal” o possam ter nestes dias.
É um tempo que traz recordações geralmente felizes.
É um tempo em que as luzes lembram a Luz dos que são crentes e outras luzes dos que o não são, pois todos precisamos de luz para viver.
É um tempo especial para a família: sempre arranjamos uns momentos para nos juntar muitas vezes à mesa comum.
É um tempo de amizade, de estar com os amigos seja presencialmente seja pelas múltiplas formas de comunicar.
É um tempo de solidariedade, às vezes de “solidariedade por atacado”: tantas ceias de Natal para os necessitados que talvez preferissem ter menos ceias de Natal e mais ceias todos os dias ao longo do ano.
Haverá muito poucos que sejam insensíveis a este tempo em que por momentos acreditamos que este mundo pode(ria) ser um oásis de paz.
Especialmente para os cristãos, o Natal é o memorial de um acontecimento único no decurso dos tempos: a irrupção de Deus na história da humanidade. Um Deus que nos veio propor uma história mais justa, mais solidária e mais humana… se nós quisermos construí-la.
Por isso, sempre que alguém luta pela integração dos marginalizados, dá pão e água aos famintos, visita os doentes e os reclusos, luta por uma sociedade mais justa em todos os seus âmbitos, o Natal está a acontecer.
Sempre que nos acomodamos, pensamos só em nós, deixamos que a injustiça prevaleça, somos coniventes, por acção ou omissão, com a violação dos direitos humanos, não afrontamos a corrupção, nas suas múltiplas formas, fazemo-nos distraídos perante as várias formas de crime organizado ou não, o Natal está a agonizar.
O problema que o Natal nos coloca é bem retratado por S. João: “Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam” (Jo 1,10-11).
Será que já todos O recebemos, mesmo os que acreditamos nele?
Não basta ter os presépios em casa, as luzes nas varandas e nas ruas, a música melodiosa e por vezes nostálgica, as famílias juntas, os amigos aos abraços. Isso é bonito, é tudo muito bonito, isso humano, isso é o início do Natal.
Mas o Natal só acontece quando O recebermos em todos os outros e todos os dias.
Enquanto isso não se realizar de modo definitivo, vamos, ao menos, tentando estender o Natal cada vez mais para lá do 25 de Dezembro.

2008-12-21

Diálogo (in)evitável

O Evangelho deste último do Advento apresenta-nos o diálogo de Maria com Deus. É ou pode ser um modelo para o nosso diálogo com Deus, com a história, com a vida, conforme cada um quiser olhar para ele.
Este diálogo começa com uma saudação pessoal. Deus efectivamente trata-nos “pelo nome”, cada um de nós é "único e irrepetível” para Ele (e devia-o ser também para os outros com as consequentes ilações). Mesmo que não demos por isso, mesmo que queiramos ignorá-lo, Ele não força ninguém, mas bate-nos à porta … do coração.
É curiosa a expressão de S. Lucas: “O anjo (Deus), entrando onde ela estava, disse-lhe…”. O diálogo de Deus connosco acontece na circunstância ou no lugar “onde nós estivermos”, isto é, em todos os lugares e circunstâncias.
Portanto se não dialogamos com Ele é porque não queremos ou não sabemos ouvi-lo, pois ouvir alguém com aeriedade implica estabelecer com esse alguém um diálogo sério.
Deus não nos obriga, mas insiste connosco. Se quisermos, pressiona-nos, acho que posso dizer assim, não para fazermos o que Ele quer, mas para que tenhamos a coragem de dizer conscientemente Sim ou Não à sua proposta. Claro que nós não gostamos de fazer opções, sobretudo se são difíceis porque envolvem a conversão do nosso estilo de vida e podem pôr em causa os nossos projectos humanos.
Mas Deus é paciente e encontra sempre maneira de calar as nossas desculpas para não aceitar a sua proposta. Até Maria levantou objecções.
A primeira, silenciosa mas evidente, é a sua perturbação, algum receio do que lhe poderá acontecer. O Anjo sossega-a: “Tranquiliza-te, Maria, porque encontraste graça diante de Deus”.
Depois perante a proposta concreta, vem a outra objecção: “Mas eu não conheço homem (não tenho relações sexuais)?”. O Anjo volta a calá-la com um argumento que irá ser repetido mais vezes: “A Deus nada é impossível”.
E o Anjo fica até ter a resposta. Maria, na sua pobreza interior, no seu coração aberto aos projectos de Deus, não hesita e aceita: Fiat. “Faça-se em mim segundo a tua palavra”. Só então o Anjo se retira (Lc 1, 28-38).
Sempre que leio esta passagem não consigo esquecer uma outra paralela, que se passa com Zacarias, pai de João Baptista. Também ele se perturbou e obteve a mesma resposta: “Tranquiliza-te, porque o teu pedido (ter um filho) foi escutado”. Também ele teve a mesma segunda objecção: “Mas eu já sou velho e a minha mulher é de idade avançada”. Perante esta resposta, foi “castigado”: “Porque duvidaste vais ficar mudo até ao dia em que acontecer o que te anunciei” (Lc 1,8-20).
Tiro duas lições destes dois episódios:
- a primeira é que não devo armar-me em julgador de Deus, que sempre será um mistério e cuja lógica nos ultrapassa: não é Deus que foi feito à imagem de Deus, mas o contrário; no entanto, nós muito gosta(ria)mos de "fazer o Deus" e de lhe pôr as virtudes que achamos mais dignas, não vá o nosso Deus ser um Deus imperfeito;
- a segunda: será que a disponibilidade interior, a abertura de coração, era a mesma em Zacarias e em Maria?
Apesar de poder estar a ser injusto para com Zacarias ou porque, no fundo, gostaria ,também eu, de “ter” um Deus justo à minha maneira, escolha a segunda posição.
E a conclusão lógica é dramática para mim: Será que eu consigo ter o meu coração suficientemente “vazio” para assumir em plenitude os projectos que Deus tem para mim?

2008-12-20

Estatuto dos Açores

As discussões em torno deste estatuto dão uma imagem bem triste do que somos e ajudam-nos a perceber por que estamos cada vez mais na cauda da EU.
Se bem me lembro, a primeira versão foi aprovada na AR por todos os partidos. Apesar desta unanimidade, o Presidente da República (PR), como era seu dever, ao aperceber-se de várias inconstitucionalidades, remeteu o Estatuto para o Tribunal Constitucional (TC) que efectivamente detectou, creio que sete, “inconstitucinalidades”. Entretanto todos os partidos reconheceram que realmente vários artigos violavam a Constituição.
Primeira pergunta: o que estão os deputados a fazer na AR? Com que seriedade cumprem a sua missão?
Apesar de todos os partidos (se não estou em erro) votarem a nova versão, o PR considerou ainda que, pelo menos o artigo 114, limita inconstitucionalmente os poderes do PR.
Duas questões:
Ou o dito artigo é inconstitucional e então a pergunta agora é: o que estão a fazer os membros do TC? Só fiscalizem os artigos que lhes pedem, tipo “pau mandado”? Ou estudam todo o documento e destacam tudo o que é inconstitucional? Faço um esforço para acreditar que os membros do TC são sérios no seu trabalho e portanto sou “obrigado” a admitir que o dito artigo não é inconstitucional.
Assim sendo, caímos no domínio das questões políticas e das diferentes interpretações, supostamente honestas, de cada interveniente. O PR acha que os seus poderes são limitados e insiste devolvendo o Estatuto à AR com as suas justificações. Inicialmente toda a gente parecia de acordo com o PR e o assunto encerrado.
Mas, por razões pouco claras, José Sócrates volta atrás. Este recuo não augura nada de bom para o país, pois estamos em tempos de juntar esforços, tal é a crise, e não de criar conflitos. Mesmo que fosse, como alguns dizem, para não dividir o PS, a situação do país merecia mais sentido de Estado. Mas não parece que tenha unido muito, pois vários deputados do PS não concordam com esta viragem e alguns foram especialmente críticos! O que é certo é que acabou por prevalecer a posição de Sócrates, iniciando, segundo os jornais e comentadores, um braço-de-ferro com o PR.
Insisto: num tempo tão difícil, este confronto parece-me uma verdadeira palermice de Sócrates. Aliás todas as bancadas criticaram o PS (ou José Sócrates) por esta intransigência.
Mas, como se viu ontem, esta acusação não passa de uma palhaçada. É que de acordo com a votação o estatuto como o PR desejava foi rejeitado. Até aqui não há especial novidade! O assunto toma já uma outra dimensão quando se verifica que foi aprovado por uma maioria de dois terços, o que impede o PR de recorrer ao TC, a não ser para pedir a fiscalização sucessiva da constitucionalidade de qualquer uma das suas normas. Mas para tal processo, o TC costuma demorar cerca de 2 anos a decidir sobre este tipo de pedidos!!!
Mais ainda, depois de tantas críticas, tantas palavras, nem sequer um voto a favor do PR. É preciso ter lata! No fundo trata-se, objectivamente, de um braço-de-ferro da AR com o PR.
Com exemplos de cidadania destes, que vêm do top, o que podemos exigir do cidadão comum? Mais a mais quando há também muitas coisas deste tipo vindas das chefias intermédias, nomeadamente as aldrabices na avaliação dos funcionários públicos, geralmente com a conivência (por medo?) dos próprios, mesmo quando ficam prejudicados.
Que pobreza! Que falta de responsabilidade! Que cidadania a nossa!
É assim que queremos construir um país mais desenvolvido, mais justo, mais fraterno, mais humano?

2008-12-19

Manel Alegre

Assisti a grande parte da entrevista de Manel Alegre, ontem, ao canal 1. E até compreendi muito bem o seu drama, que também eu sinto na política mas sobretudo na Igreja.
Praticamente toda a gente o conhece seja pela sua poesia lida ou cantada, seja como deputado e ex-candidato à presidência da república.
Dela retirou algumas linhas de análise.
O desalento de um ambiente político sem alma onde a ideologia (e já não falo na utopia) parece ter perdido todo o seu significado, onde proliferam sucessivas versões da má moeda. Os políticos são quase sempre os mesmos. Há lobbies, muros de betão, que não deixam entrar a novidade nos partidos. Há “sindicatos” de votos, acusou ele, nas eleições partidárias. E podia ter falado dos oportunistas que estão sempre desejosos de estar perto do poder, mesmo sem merecimento.
Não está disponível para concorrer nas próximas eleições no PS. Já o fez uma vez. Mas era bom que aparecessem alternativas. De qualquer maneira fiquei com a impressão que ele estaria disponível (se houver uma “vaga de fundo”) para concorrer à Presidência da República (PR), mas não a secretário-geral do partido, que corre sempre sérios riscos de vir a ser primeiro-ministro (PM).
E aqui coloca-se uma questão interessante e crucial: a da diferença entre um e outro cargo. Ambos são de extrema importância, mas exercem-se de modo diferente. Ao PR compete zelar e garantir a constitucionalidade das nossas leis e organizações. Ao PM compete tomar decisões rápidas, eficazes e que garantam dentro do possível o melhor bem-estar para todos os cidadãos. O PR pode com “alguma facilidade” manter-se fiel aos seus ideais. Ao PM nem sempre isso é possível: ele tem de decidir condicionado pelas várias realidades, pela evolução da história, por várias soluções possíveis, nenhuma delas perfeita.
É claro que eu gostaria de ver Manel Alegre como PM a aplicar tudo aquilo que disse que devia ser feito. Também eu sonho com um governo que um dia dê a prioridade máxima aos mais pobres. A minha pergunta é se, num contexto concreto, nomeadamente de crise e de crise internacional, o próprio Manel Alegre poderia ou seria capaz de, numa sociedade, tão limitada, onde os “cidadãos” só pensam nos seus interesses imediatos e egoístas, cumprir o programa que ele desenhou com duas ou três pinceladas.
O grande drama da política é que quem não governa pode apresentar todas as soluções e as mais justas, mas quem governa têm limitações que, muitas vezes, obrigam a tomar as decisões possíveis, não as ideais. É importante não deixar cair as utopias. Mas a história ensina que essas são alimentadas e sustentadas pelos profetas. Que devem continuar a existir e a insistir no que dev ser feito. Mas quem dispõe do poder para as implementar não as implementa. Porque não quer ou porque não pode? Alguns, é mesmo porque não querem. Mas muitos, é porque não podem.
E serão as soluções mais puras e mais humanas as que melhor servem uma realidade onde há “filhos de muita mãe”? Um dia destes transcrevo um texto de um livro que estou a ler, McMáfia, que ilustra bem esta possibilidade.
Recordo que Leão XIII, embora insinuasse a necessidade de um salário familiar, não insistiu nele, porque, naquele contexto concreto da Revolução Industrial, poderia significar que os patrões, com tanta mão-de-obra disponível, escolhessem em primeiro lugar ou exclusivamente os solteiros, deixando famílias inteiras na miséria.
Tenho também verificado, na nossa Igreja, que Bispos eméritos (isto é, já não responsáveis por uma Diocese) escrevem e propõem, agora, coisas muito bonitas para a Igreja. Mas quando “estavam em exercício” não as puseram em prática. Porque não quiseram ou porque não puderam? Estou certo que foi porque não puderam. Com um povo cristão tão analfabeto e tão sociológico, posso imaginar as suas dificuldades.
Mas isso não nos deve impedir de criticar e de insistir nas utopias do Reino.
Até porque, e aqui há um contributo indispensável do Cristianismo, da Revelação cristã, todos nós, crentes ou não crentes, somos marcados tanto pela graça como pelo pecado.
A utopia, o ideal perfeito, só é realizável no Reino de Deus. Até lá cada um deve cumprir o melhor que sabe e pode a sua missão, seja ela qual for.

2008-12-15

Alegria

Ontem foi o domingo dedicado à alegria.
Não entendo muito bem por que razão há um domingo da alegria no Advento. Não devia ser todo o Advento um tempo de alegria?
Alegria porque celebramos a memória da vinda do Salvador. O nosso Deus entrou na história. E a partir daí, a história passou a ser não só lugar no qual Deus nos fala em cada tempo e lugar, mas também o lugar onde vai acontecendo a salvação. Não, é certo, de maneira definitiva e por isso nós vivemos numa tensão permanente entre o JÁ SIM da Salvação e o AINDA NÃO da sua plena realização.
Todos sabemos que a história é um caminho tortuoso com avanços e recuos, mas que tem um sentido último que ninguém pode anular. Podemos atrasá-lo, mas não anulá-lo. Paulo VI diz isto numa frase densa e linda: “É no coração do mundo (da história) que permanece o mistério do próprio homem, o qual se descobre filho de Deus, no decurso de um processo histórico e psicológico em que lutam e se alternam violências e liberdade, peso do pecado e sopro do Espírito” (OA 37). O Advento indica-nos e garante-nos que, apesar desta ambiguidade, o SIM definitivo está assegurado e isto é, tem de ser, para nós motivo de grande alegria.
Assim, o Advento é o tempo da esperança, da certeza de que a história, apesar dos avanços e recuos ,está apontada para o Reino definitivo de Deus, “um reino eterno e universal: um reino de verdade e vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz” (GS 39).
Certamente por isso temos tantas leituras tiradas do profeta Isaías, um dos profetas que melhor proclamou a esperança que animou e estimulou o povo de Israel nos momentos difíceis da sua conturbada história, anunciando um Salvador definitivo e para todos que há-de nascer de uma Virgem.
Também nós acreditamos nesse Salvador. Não sabemos quando virá definitivamente. Mas sabemos que virá. E o Advento é mais um tempo forte para não só recordar mas sobretudo para celebrar essa esperança, essa certeza, da sua vinda definitiva.
E isto só pode ser motivo de alegria. Não uma alegria exterior, balofa, que se compra nas prateleiras dos supermercados, nos corredores do poder ou nos braços do prazer, mas uma alegria interior, profunda, que, mesmo no meio da maior tristeza, nada nos pode arrancar.
O nosso Salvador venceu “o príncipe do mundo”, a morte e o pecado.
Saber isto, recordar isto, celebrar isto é o fundamento da nossa alegria, da nossa alegria cristã.

2008-12-14

Dar testemunho

Este domingo, terceiro do Advento, continua a mostrar-nos João Baptista. Ele apareceu para dar testemunho da Luz. Ele não é a luz, mas veio para dar testemunho da luz. Como nós, crentes ou não crentes. Cada um deve testemunhar a luz, porque sem luz não podemos caminhar nem construir a história. Os cristãos são chamados a testemunhar a Luz que é Cristo.
Testemunhar esta Luz não é uma tarefa fácil. Porque a Luz que nos compete testemunhar morreu numa cruz. Pode até ser mesmo perigoso: “Bem-aventurados sereis quando por minha causa vos injuriarem e perseguirem”. E imediatamente antes, num paralelismo que não deve ter sido mera coincidência, proclamava noutro macarismo: “Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus” (Mt 5,11.10). Disto o próprio João Baptista foi exemplo como o são muitos mártires antigos ou modernos.
Outro motivo de sofrimento para nós é que esta aposta divina na libertação e na salvação nem sempre acontece na história. Porque apesar de Deus ser o Senhor da história está “sujeito” à nossa vontade e à nossa intervenção. Ele impulsiona, anima, insiste, proclama, pede, mas não obriga ninguém.
Por isso, o Espírito está presente, actua, torna-se visível no mundo sempre que somos criativos e geradores de utopias que apontam para uma humanidade nova, sempre que lutamos pela fraternidade, pela justiça, pela solidariedade e especialmente sempre que lutamos para que não haja pobres, marginalizados, explorados, porque eles são o próprio Cristo que nós só conseguimos ver através dos olhos da fé.
Por isso, ali “onde a globalização das relações económicas condena à morte milhões de seres humanos e ao desaparecimento de muitas e variadas formas de vida, ali onde a afirmação egolátrica da própria liberdade produz insensibilidade e apatia perante o sofrimento alheio, ali onde a idolatria do bem viver desumaniza os seres humanos; numa palavra, ali onde o pecado controla a nossa liberdade, o Espírito, ‘que enche o universo, que guia o curso dos tempos com admirável providência e renova a face da terra’ (GS 26;11), sofre um processo de humilhação, de encobrimento e de quenose” (A. Comin)

2008-12-13

Esta nossa vida tão multifacetada

Nestes dias que não vim a este espaço, houve várias coisas notáveis de diferentes tipos e características, que fazem da nossa vida um caleidoscópio curioso.
Os 60 anos de Declaração Universal dos Direitos Humanos podem servir para reflectir no “sangue, suor e lágrimas” que é a luta pelos direitos humanos. Como cristão, lamento as dificuldades levantadas pela própria Igreja, numa clara traição ao Evangelho (“Dai a César…”) e ao testemunho doloroso dos mártires que deram a vida pelo direito à liberdade de consciência e a adorar o seu Deus e não o imperador. Foi preciso esperar pelo Concílio para que fosse “oficialmente” assumida a célebre trilogia da Revolução francesa: liberdade (a grandeza da liberdade: GS 17), igualdade (a igualdade essencial de todos: GS 29) e fraternidade (o Verbo incarnado como fundamento da fraternidade e da solidariedade: GS 32). É pena que por vezes os Direitos Humanos ainda fiquem à porta da Igreja.
É bonito ver uma pessoa com 100 anos, Manoel de Oliveira, ainda a filmar e cheio de projectos. É sobretudo um exemplo para tanta gente que hoje está mais preocupada em “receber o seu” ao fim do mês do que em contribuir para uma cidadania plena e comprometida.
Interessante foi o gesto de Mário Nogueira (certamente com conhecimento superior) que mostra que a Igreja católica já não é o ópio do povo. Claro que a Igreja mudou muito. Mas só o futuro poderá dizer se este seu gesto é genuino ou tinha segundas intenções…
Ainda relativamente a este sindicalista houve a confirmação de uma frase sua verdadeiramente notável: os professores querem ser avaliados (é bom a gente saber que realmente querem, porque não se tem notado muito!), mas de um modo sério e respeitador da dignidade dos professores. Como? Por auto-avaliação! Comentários, para quê? Pelo que se viu felizmente nem todos alinham nessa farsa.
Finalmente, depois de todo o barulho por causa das faltas dos deputados na passada sexta-feira, com especial penalização para o PSD, chegou agora a vez dos do PS faltarem em força à Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças. Mesmo que tal tenha acontecido pela forma atabalhoada da convocatória, não deixa de ser um sinal negativo sobretudo depois do que aconteceu há uma semana. Parafraseando Jaime Gama: ser deputado não é uma situação de privilégio mas um serviço ao país; no fundo, o exercício máximo de responsabilidade cívica. Acresce que ninguém é obrigado a ser deputado... embora todos saibamos que tem consequências bem chorudas.

2008-12-10

Noticias a mais ou a menos

Os meios de comunicação social têm uma missão nada fácil.
Mas dispõem também de um poder único: há muito já que Paulo VI falava de um “novo poder” com aspectos muito positivos, mas que acarreta também “uma grave responsabilidade moral” por causa das reacções que pode suscitar e os valores que acaba por impor: “Entre as mudanças maiores do nosso tempo, nós não queremos deixar de salientar a importância crescente que assumem os meios de comunicação social e o seu influxo na transformação das mentalidades, dos conhecimentos, das organizações e da própria sociedade” (OA 20).

A recente enxurrada de notícias a propósito de umas toneladas de carne importada da Irlanda contaminada com dioxinas é um bom exemplo para analisar esta dupla vertente.
A pergunta que me coloco é esta: “qual é o interesse para o bem público divulgar que andam por aí perdidas umas toneladas de carne com dioxinas?”. Mais ainda quando se diz sem mais que as dioxinas são responsáveis, pelo menos potenciais, pelo cancro. Houve um especialista que teve o bom senso de explicar que para ultrapassarmos a dose letal precisaríamos de comer, para aí, uma tonelada de carne por dia! E de esclarecer que o perigo está não no facto de se comer uma vez mas na acumulação ao longo do tempo. Porque as dioxinas têm tendência a acumular-se na gordura do corpo em vez de serem eliminadas.
Por isso me pergunto se estas notícias não deviam ser silenciadas, a menos que a situação assumisse ou ameaçasse assumir uma situação calamitosa. Não bastaria, entretanto, informar as autoridades sanitárias para que actuassem rapidamente na defesa e segurança da saúde pública e acompanhar rigorosamente a sua intervenção sem tanto alarido?
Dar assim uma notícia não se correrá o perigo de criar o pânico, sobretudo em tempos de crise e de acrescida sensibilidade às notícias, e pôr em causa a carne de porco?
Em entrevistas que ouvi, alguns recordaram campanhas noticiosas anteriores: a dos frangos com furano que ia dando cabo dos industriais dos galináceos ou a das vacas loucas que quase acabou com a carne de vaca no mercado!
Isto é, as pessoas já pensam na história popular do “Aí vem lobo!” que, por ser tantas vezes repetida sem fundamento, perdeu a sua eficácia e ninguém acreditou no pobre pastor quando o seu rebanho foi mesmo atacado pelos lobos!
Bem sei que nem sempre é fácil discernir o que deve ser noticiado, mas deve haver ao menos um mínimo de bom senso e mais respeito pela dignidade e estabilidade das pessoas.
Até porque estes exageros não acontecem só com este caso. Quantas vezes são noticiadas e repetidas cenas de crime, que podem estimular potenciais criminosos e criar um clima de insegurança? Numa “cultura do aparecer” quantos poderão ser tentados a repetir o gesto só para aparecerem na televisão e se falar deles?
É pois bom não esquecer que estamos efectivamente numa “cultura do aparecer”. Já todos vimos ao que se expõem as pessoas para "ir à televisão". O caso mais típico é o dos concursos onde pessoas com licenciatura não se “envergonham” de mostrar a sua ignorância pelo prazer de aparecer… e também “ganhar algum”. Mesmo fazendo uma figura triste.
Mas será que hoje, numa sociedade tão permissiva, “tolerante” e indiferente como a nossa, ainda haverá quem repare em “figuras tristes”?
Ou não serão as “figuras tristes” motivo de orgulho e de admiração dos colegas menos corajosos?

2008-12-09

Recessão cívica

Portugal corre o sério risco de entrar em “recessão técnica” dizem os sabedores das economias.
Não me admira muito, pois a nossa capacidade de trabalho é certamente ímpar na Europa. Tenho uma pessoa amiga que foi nomeada para uma comissão “governamental” em Lisboa e logo na primeira reunião pediu para que as reuniões fossem à sexta-feira, o dia que tinha mais livre na sua actividade. Foi-lhe logo dito por vários participantes que à sexta-feira não era possível, pois as pessoas estavam já a preparar-se para o fim-de-semana. Não percebeu muito bem o que seria aquela preparação, mas mais tarde veio a perceber que à sexta-feira não se trabalha. Não quer dizer que não se apareça no emprego mas não é dia de trabalhar.
Um amigo que trabalha numa empresa privada ligada a uma qualquer multinacional foi informado que os negócios em Lisboa têm de ser acertados até quinta-feira pois à sexta-feira ninguém está disponível para grandes esforços. Pensou que se tratava de uma piada a alentejana". Mas um dia em que teve necessidade de ir resolver um problema urgente surgido numa quinta-feira, telefonou para a sede em Lisboa a informar que ia lá no dia seguinte. Foi logo demovido pois a sexta-feira era um dia complicado e não seria fácil tratar do assunto! Afinal, concluiu ele, não era piada aquela dos negócios à sexta em Lisboa.
Na última sexta-feira quando estava agendada, na Assembleia da República, a votação para que a avaliação dos professores fosse suspensa, na hora da votação, faltavam 13 deputados do PS e 35 da oposição, 30 dos quais do PSD. Mas o irónico, ou caricato se quiserem, da questão é que, sendo previsível que dois ou três do PS votassem a favor da proposta contra a avaliação, bastaria que toda a oposição estivesse presente para que a proposta passasse e deixasse a ministra entalada. Fiquei sem saber se os faltantes são pela avaliação, são contra a luta dos professores ou são amantes de umas mini-férias prolongadas.
Mas esta situação não é acidental. Não contando com as sessões deste mês, o DN fez as contas e verificou que nos três dias de plenário, desde o início do ano se verificaram as seguintes faltas: à sexta-feira, 640; à quinta-feira, o dia de maior assiduidade, 341 e à quarta-feira, 389. É certo que maioria das faltas é justificada, mas não deixa de merecer a nossa atenção.
Até porque, mais sério e preocupante é a proposta de um vice-presidente da Assembleia da República que, perante esta realidade faltista, propõe que as votações passem a fazer-se à quinta-feira! Para grandes males, grandes remédios, dir-se-á! Mas quando é a própria Assembleia a “justificar” e a estimular esta situação, o problema assume foros de especial gravidade. Não basta que o dito vice-presidente se desculpe dizendo que, embora não seja politicamente correcta esta proposta, devemos ser realistas.
Se a moda pega – e com estes exemplos a vir de cima – não há economia que resista. E a recessão cívica vai ser cada vez mais acentuada.
Nem precisamos de uma grande crise mundial!

2008-12-08

Maria, nossa irmã

Maria é outro estilo de profeta.
À tronitroância (aos puristas da língua peço desculpa por este neologismo, mas precisava dele para melhor explicitar a violência com que o Profeta procura despertar as consciências abertas: qualquer coisa como o ribombar dos trovões) dos Profetas, ela responde com o anonimato de uma vida simples e quase ignorada.
Também ela acredita no mesmo Deus da justiça: “O Todo poderoso… manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias” (Lc 1,51-53).
Também ela renunciou aos seus projectos de vida para aceitar a missão que Deus lhe indicava, porque tinha o seu coração livre para poder enchâ-lo com a vontade de Deus.
Ela não andou a pregar uma doutrina de aldeia em aldeia, mas quando soube que a prima Isabel precisava dela não hesitou em meter-se a caminho e ir a sua casa. Atravessou muitos quilómetros por caminhos difíceis, por florestas onde atrás de cada árvore poderia estar um criminoso. Mas ela foi, arriscando a vida, porque essa era a vontade de Deus: cuidar dos que de nós precisam.
Em Caná, não receou ser repreendida por Jesus (“Mulher, ainda não é chegada a minha hora!”: Jo 2,4) mas intercede pelos noivos que estão a ficar sem vinha na sua festa e até avisa os criados para estarem atentos.
Maria criou a criança Jesus com o mesmo amor e desvelo anónimo com que as mães e pais cuidam ou deviam cuidar dos seus filhos e nisso é nosso modelo. Por isso eu continuo a celebrar o Dia da Mãe neste dia: não por saudosismo doentio, mas porque vejo em Maria um modelo de mãe.
Maria sofreu com os que lhe vinham dizer que o filho devia estar maluqinho mas ouvia as palavras desse Filho e meditava-as no silêncio do seu coração.
Maria não ficou com ciúmes quando Jesus respondeu aos que anunciavam ali a presença da sua família: “Indicando com a mão os discípulos acrescentou: Aí estão a minha mãe os meus irmãos; pois todo o que fizer a vontade de meu Pai que está no Céu, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,49). Ela percebeu que para lá dos laços sanguíneos existem também os laços da fé, da confiança num Deus que quer salvar toda a humanidade, que quer que todos formem uma única família e que quer que todos sejam felizes já aqui.
Muita teologia foi feita sobre a Virgem Santíssima, muitas orações e festas foram instituídas a Nossa Senhora, até dogmas foram proclamados sobre a sua condição excepcional. Ao longo dos séculos o seu Filho, o Salvador, foi quase esquecido perante um culto, a raiar a divinização, a Nossa Senhora. Duvido (!?) que fosse essa a sua vontade!
Por isso, eu gosto mais desta Maria, anónima, silenciosa, pacata, que soube cumprir a vontade de Deus na vida de casa, no cuidado dos mais necessitados, no silêncio do seu coração. Há muitos que acham que este modelo de Maria é um modelo alienante de mulher, de submissão ao marido, de falta de intervenção cívica.
É uma leitura que não corresponde aos relatos evangélicos. Apesar de grávida e da dificuldade dos caminhos ela foi também recensear-se a Belém; quando Deus lhe propõe ser a mãe do salvador, ela, que já era noiva de José, não foi pedir-lhe nenhum conselho nem o seu consentimento; quando decidiu ajudar a sua prima Isabel não pediu a protecção do marido nem certamente a sua autorização, que ele, por mero bom senso, teria possivelmente recusado, tais eram os perigos a que Maria se ia expor.
Será esta uma mulher alienada, sem espírito cívico e sem capacidade de decisão?!

2008-12-07

Um homem chamado João

Com este segundo domingo do Advento aparece João Baptista.
Uns descrevem-no “teologicamente”: “Apareceu um homem enviado por Deus que se chamava João. Este vinha como testemunha para dar testemunho da Luz e todos acreditarem por meio dele. Ele não era a Luz, mas vinha para dar testemunho da Luz” (Jo 1,6).
Outros fisicamente: “Trazia um traje de pelo de camelo e um cinto de couro; alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre” (Mt 3,4).
Mas todos o apresentam como profeta, como o fez o próprio Jesus: “Que fostes ver ao deserto? Uma cana agitada pelo vento? Um homem vestido de roupas luxuosas? Um profeta? Sim. Eu vo--lo digo e mais que um profeta” (Mt 11,8-9).
O profeta está ao serviço da verdade última da pessoa, da sua dignidade inviolável, do seu mistério sempre por descobrir. O profeta não fala de si nem das suas opiniões próprias, mas proclama, nem que seja no deserto da incompreensão, as palavras de salvação que Aquele que o enviou. O profeta vive uma situação muito complicada não só porque nem sempre pode dizer o que quer mas também porque está chamado a ser uma espécie de consciência crítica, sempre pronto, em quaisquer circunstâncias, sem recear as consequências, a apontar o dedo a toda a violação da justiça de que ele servidor. Perante as queixas do profeta Jeremias, o Senhor é radical: “Não digas ‘Sou um jovem’, pois irás aonde Eu te enviar e dirás tudo o que eu te mandar. Não terás medo diante deles, pois Eu estou contigo para te livrar” (Jer 1,7-8). O pior é que o “Eu estou contigo” nem sempre é evidente e nem sempre corresponde ao que nós esperamos, porque a lógica do Senhor é muito diferente da nossa. São precisos os olhos da fé; não basta a confiança humana.
Mas o profeta sabe disso. E João Baptista assumiu em plenitude essa sua missão. Falou “sem papas na língua”. Condenou as hipocrisias e as falsas seguranças, que o poder ou o estatuto social aparentemente dão, com palavras violentas (“Raça de víboras” pensais que estais salvos só porque sois filhos de Abraão: cf Lc 3,7-8) que lembram aquelas outras com que Amós classificava as “senhoras da alta sociedade”: “Vacas de Basan… vós que oprimis os fracos e maltratais os pobres” (Am 4,1)
Não hesita em denunciar o adultério de Herodes sabendo, ou pelo menos suspeitando, que isso lhe custaria a morte: a sua cabeça foi realmente oferecida numa bandeja de prata à bailarina com vocação para odalisca (Mt 14,8).
Este é o desafio de João Baptista nos lança nesta segunda semana do Advento: ser fiel à missão que o Senhor destinou a cada um; renunciar aos projectos próprios e até à sua vida para se manter fiel a essa missão; não ter medo de denunciar as injustiças, mesmo que isso acarrete consequências dolorosas; e sermos coerentes até ao fim.
Numa sociedade, como a nossa, onde muita coisa parece andar à deriva, é uma ocasião propícia para os profetas não só para despertar as consciências perante as situações injustas, mas também para mobilizar vontades no sentido de construir um mundo mais justo, mais solidário e mais humano. Mas onde estão os profetas? E quem os ouve?
Infelizmente a própria Igreja dessorou a sua dimensão profética, resumindo-a a algumas palavras dos seus responsáveis e a uma catequese quase inócua, mas sobretudo retirando-a do estilo de vida das suas comunidades e dos cristãos em geral!

2008-12-04

Piratas há muitos

Parece que voltamos aos tempos de Francis Drake, o pirata que foi promovido a Sir pela sua actividade patriótica ao serviço de Sua Majestade.
Nos mares da Somália, particularmente no golfo de Aden, os piratas saíram “à rua”. Dizem os ocidentais que são piratas que assim descobriram uma forma infame de ganhar pipas de massa: sequestrando petroleiros e barcos de cruzeiro. Parece que é verdade.
Mas é só parte da verdade. E estou a socorrer-me de um artigo do Expresso.
Porque antes apareceram por lá outros “piratas” que descobriram uma outra forma também infame de ganhar pipas de massa: pescadores das mais variadas nações do mundo para ali se deslocam para pescar ilegalmente e ganhar com este seu “trabalho honrado” qualquer coisa como 300 milhões de euros anuais.
Perante esta roubalheira que este país, dividido e governador pelos senhores da guerra e por um governo transitório, não consegue evitar, a “justiça popular” entrou em funções: os pescadores, condenados a morrer à fome, pela sua incapacidade de competir com empresas pesqueiras modernas, aliaram-se aos piratas equipados com as armas mais sofisticadas. Uma associação que está a revelar-se mortífera!
“Vigiai!”. Isto é, estejamos atentos a todas as formas de injustiça e exploração, especialmente às que nós cometemos.
Afinal foi preciso que os piratas locais começassem a actuar para que nós, os civilizados ocidentais, os grandes defensores dos direitos fundamentais das pessoas e dos povos, ficássemos revoltados contra esta barbárie. Mas não vigiámos o suficiente para percebermos que afinal os primeiros piratas são cidadãos de muitos dos nossos países ditos civilizados.
Se não “vigiarmos”, isto é, se fecharmos os olhos às injustiças de que nós ou os nossos concidadãos somos responsáveis e só virmos as que os piratas do Terceiro Mundo cometem, somos ainda mais piratas do que eles.
É que “não há duas morais: uma pra mim, outra pròs mais”, como dizia a sabedoria popular que aprendi, há muitos anos, na minha aldeia e que a Bíblia traduz no “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”.
De qualquer modo, temos ainda uma obrigação suplementar: é converter este preceito negativo do AT na atitude positiva do NT: amarmo-nos uns aos outros porque todos somos irmãos de uma única família e todos temos iguais direitos aos bens que pertencem à única humanidade de que todos fazemos parte.

2008-12-03

Ambulância doente

O nosso país, sobretudo nas regiões do Centro e do Norte ficou coberto de neve. Espectáculo lindo sobretudo para os citadinos mais jovens e até para os mais velhos, que passaram os primeiros anos nas suas aldeias do interior onde a neve nunca faltava.
Linda para os olhos, ela levanta dificuldades para uma sociedade com grande mobilidade e modernos meios de transporte.
Para limitar algumas dessas dificuldades foram sendo inventadas respostas “técnicas” que ajudam os automóveis e sobretudo os automobilistas pouco habituados a estas andanças a poder deslocar-se com alguma segurança.
Segundo notícias de ontem, uma senhora escorregou nas ruas geladas da sua aldeia próximo de Castro Daire e partiu um braço, tendo necessidade de se deslocar ao hospital. A ambulância foi chamada, mas não conseguiu entrar na aldeia nem sequer manobrar de modo a poder de lá sair. Valeu o jipe dos bombeiros que a rebocaram até ela poder deslocar-se autonomamente.
Mas o mais inaceitável é que os bombeiros de Castro Daire têm uma ambulância todo o terreno, certamente a contar com situações destas. Contudo, está parada, há quase ano e meio, à espera de autorização para ser arranjada.
Não é possível que o atraso seja devido a algumas centenas de euros que o arranjo possa custar, até porque se não for arranjada a tempo, as centenas de euros de agora vão converter-se em muitos milhares para adquirir uma ambulância nova.
Não sei de quem é a culpa desta burocracia idiota: se do governo, se dos responsáveis nacionais ou regionais dos bombeiros, se da Câmara, se dos próprios munícipes. Não fundo, é de todos.
“Vigiai”, vigiemos todos para que estas coisas não aconteçam. Pequenos problemas que até localmente se podiam facilmente resolver perdem-se em grandes burocracias nacionais, regionais ou locais e quem fica mal servido é sempre o bem comum, isto é, o bem das pessoas, critério supremo do serviço público.
Ficar de braços cruzados é o pior que pode acontecer nestes casos. E casos destes existem certamente aos milhares po0r esse país fora.
Se não fôssemos um povo de “encostados ao poder”, alguém já teria tomado uma iniciativa eficaz para resolver este "pequeno" problema, nem que fosse pressionando com persistência, mobilizando a opinião pública, pedindo ajudas aos poderes locais ou aos próprios cidadãos, os grandes beneficiários deste serviço.
Mas nós só pensamos nos nossos direitos e esquecemo-nos dos nossos deveres como cidadãos. Deveres que podem não constar da Constituição mas são necessários a um eficaz funcionamento da sociedade e a um são relacionamento entre todos.

2008-12-02

Banco Alimentar

Penso que a solidariedade deve ser antes de mais um estilo de vida, na linha do que escreve João Paulo II ao afirmar que a solidariedade “não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes. É pelo contrário, a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos” (SRS 38).
Mas, como não somos perfeitos, preferimos o que chamo “uma solidariedade de impulsos”, em determinados tempos e circunstâncias. Mas somos assim e pronto.
De qualquer modo, não posso deixar de destacar o facto de apesar da crise que todos vivemos, este fim de semana ter sido batido o recorde em ajudas ao Banco Alimentar: 1905 toneladas de alimentos recolhidos em apenas dois dias, mais 19% em relação a 2007.
Deste gesto de generosidade depende a sobrevivência de muitas pessoas. A distribuição destes alimentos já começou a ser feita por 1618 instituições, que irão atingir 245 mil pessoas, ou seja nas palavras da presidente do Banco Alimentar, Isabel Jonet, "2,5 por cento da população portuguesa" come graças a esta ajuda.
Este gesto é o somatório de dois tipos de solidariedade: a dos que dão alimentos e a dos cerca de 20 mil voluntários que se dispuseram a passar o seu fim de semana à porta das grandes superfícies comerciais.
Convém lembrar que, em 2007, campanhas deste tipo e excedentes oferecidos pelos vários agentes da indústria agro-alimentar atingiram cerca de 20 mil toneladas.Contudo também convém ter muito presente o desabafo de Isabel Jonet: estes alimentos são em muitos casos apenas "uma ajuda pontual" para ultrapassar "uma situação mais difícil".
Isto é, há que passar para lá do simples gesto de dar coisas!
Ou seja, há que reorganizar a vida da nossa sociedade não só a nível macro (da responsabilidade dos governos, que dificilmente passará de uma solidariedade institucional, mais ou menos genérica, mas a quem compete criar as condições para que a dignidade de todos seja dignamente respeitada e promovida) mas também e talvez sobretudo a nível micro (da responsabilidade das comunidades e das pessoas, as únicas capazes de uma solidariedade pessoal e de proximidade, situada e personalizada).

2008-12-01

Espadas em arados

Isaías é hoje recordado como aquela célebre passagem: “Vinde, subamos à montanha do Senhor. Ele nos ensinará os seus caminhos e nós andaremos pelas suas veredas. Ele julgará as nações e dará as suas leis a muitos povos, os quais transformarão as suas espadas em relhas de arados e as suas lanças em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra e não se adestrarão mais para a guerra” (Is 2,3-4).
O Deus, cuja chegada estamos a comemorar, é sobretudo um Deus preocupado com a paz e a solidariedade entre todos, pessoas mas também os povos. As espadas devem converter-se em arados e as lanças em foices. Para um povo rural, o arado e a foice eram dois instrumentos fundamentais, sem os quais a sua vida tornar-se-ia praticamente impossível.
Hoje infelizmente mantém-se esta mesma necessidade: as guerras continuam, porque as espadas são em muito maior número que os arados.
Mas o lema deste Advento “Vigiai!” obriga-nos a tentar discernir quais são as espadas que hoje devemos converter em arados, numa sociedade que já não é rural, mas urbana; que já não é solidária mas anónima; que já não é uma sociedade ética, onde todos se conhecem como amigos, mas uma sociedade jurídica, onde todos lutam prioritariamente e por vezes a qualquer preço pelos seus direitos, esquecendo os seus deveres para com os outros e para com a sociedade que os acolhe e protege.
Particularmente hoje, Dia Mundial contra a Sida, todos sabemos as dificuldades em converter as espadas dos lucros fabulosos das indústrias farmacêuticas em arados dos medicamentos a preços acessíveis aos milhões de seropositivos que vivem nos países pobres.
“Ele nos ensinará os seus caminhos, e nós andaremos pelas suas veredas”. Se levarmos a sério estes caminhos, poderemos cantar como o salmista “Que alegria, quando me disseram: Vamos para a casa do Senhor!”, o Senhor que julgará todas as nações e dará as suas leis a muitos povos.