divórcio ou casamento eterno?...

2008-06-30

Paulo de Tarso

Podemos interrogarmo-nos por que terá Paulo ter sido o grande dinamizador do cristianismo como uma religião universal. Haverá muitas respostas, mas gostava de reter uma: Paulo era, poderemos dizer assim, simultaneamente filho de Jerusalém e de Roma, o que vai fazer dele um homem de pontes culturais, aberto a diferentes mundos e culturas. Esta abertura de espírito não encaixava numa seita.
Nasceu, no seio de uma família judaica, em Tarso, na Ásia Menor (actual Turquia), uma cidade cosmopolita com cerca de 300 mil habitantes, um importante centro cultural e comercial com um porto muito movimentado. Nesta cidade cresceu no confronto entre o ambiente protegido e fechado do bairro judaico e o ambiente aberto da grande cidade grega. Depois foi estudar para Jerusalém (Act 26,4), onde deve ter recebido uma formação superior, junto do rabi Gamaliel (Act 22,3). Foi um judeu com cargos de responsabilidade: foi testemunha oficial no martírio de Estêvão (Act 7,58), foi enviado pelo Sinédrio a Damasco para prender os cristãos (Act 9,2),
Por outro lado era cidadão romano, por nascimento (Act 22,29), situação a que fez apelo várias vezes, exigindo ser julgado pelo “tribunal de César” e não pelos judeus: “Apelo para César” (Act 25,10-11). Há quem diga que foi por isso que Paulo não fez oposição a Roma e até desenvolveu a sua teoria da autoridade que veio a trazer alguns dissabores: “Submeta-se cada um às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus” (Rom 13,1).
Esta abertura de espírito que permite conhecer várias culturas e valores é também hoje fundamental para a construção da paz entre os povos. Por isso, seria bem vinda a disciplina da História comparada das Religiões pedida há dias em Lisboa.

2008-06-29

Ano Paulino

Começámos a celebrar um ano dedicado a S. Paulo. Bem preciso é, porque S. Paulo, apesar de quase todos os domingos se falar no seu nome, é pouco conhecido entre os cristãos.
Fica pouco mais do que a queda do cavalo a caminho de Damasco. Curiosamente só os Actos dos Apóstolos contam esse facto “físico”. S. Paulo nunca o refere. Refere sim a experiência interior violentíssima que viveu e reconverteu toda a sua vida como ele recorda constantemente: “Fui apanhado por Cristo” (Fil 3,12); “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20); “Completo na minha carne o que falta à paixão de Cristo” (Col 1,24).
Foi uma experiência tão marcante que nada daí para o futuro o separou de Deus, angústias, perseguições, fome, naufrágios, prisãões como ele próprio diz neste belíssimo poema:
“Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada?
Porque estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes, nem a altura nem os abismos, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor nosso” (Rm 8,35.38-39)

Devido a esta radical transformação interior, Paulo torna-se o grande lutador por um cristianismo autónomo e universal: não aceita continuar a ser mais uma das muitas seitas do judaísmo, mas transforma-o numa religião universal, onde todos têm lugar e no qual todos podem entrar sem ser necessária a circuncisão (obrigatória para os Judeus). Foi uma luta dura, contínua, contra Tiago, contra Pedro, contra muitos cristãos. Foi ele que abriu o cristianismo ao mundo. Para isso, percorreu quilómetros e quilómetros, cidades e cidades, foi até a Atenas, capital do saber, falar do “Deus desconhecido”, chegou prisioneiro a Roma, planeou ir a Espanha. Fez das tripas coração: “Por isso, me comprazo nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições e nas angústias, por Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,10)
Além disso, num tempo em que só os cidadãos livres eram pessoas, ele soube proclamar: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” (Gal 3,28).

Por isso, ele que vivia na angústia de não ser suficientemente evangelizador: “ai de mim, se eu não evangelizar” (1Cor 9,16), pode dizer com toda a propriedade: “Combati o bom combate, terminei a corrida, permaneci fiel. A partir de agora, já me aguarda a merecida coroa, que me entregará, naquele dia, o Senhor, justo e juiz, e não somente a mim, mas a todos os que anseiam pela sua vinda” (2Tim 4,7-8).

2008-06-28

Os homens da Palavra

Dentro da temática da formação dosleigos, publiquei mais um artigo no Correiode Coimbra onde "apenas" recordo o que diz o Concílio: o clero é prioritariamente o "homem da palavra" (o catequista por excelência") e só depois "o homem do culto". Claro que isto tem implicações profundas na espiritualidade do padre: deveria ter uma espiritualidade mais "profana" (porque deve levar a Palavra de Deus onde ela ainda não existe) do que "cultual". Mas sempre uma espiritualidade mística e proféica.

APRENDER A GERIR OS NOSSOS RECURSOS

É motivo de muita alegria para a Igreja portuguesa que os nossos Bispos tenham percebido que do ponto de vista prático “quando fazemos um Plano Pastoral não basta definir bem os objectivos, mas é necessário que quem faz o plano procure os recursos humanos e materiais para concretizar aquilo a que se propôs” e que tenham tido a humildade (cristã, entenda-se!) de aceitar que a “imposição das mãos” não lhes dá todas as competências nem lhes atribui especiais capacidades de gestão e administração, o que a gerir a colaboração de todos “cada um segundo as suas possibilidades, aptidões, carismas e ministérios” (AdG 28).
Bastaria pôr em prática o exemplo dos Doze que rapidamente concluíram que “não convém que deixemos a palavra de Deus para servirmos à mesa” (Act 6,2). Bastaria reler o decreto conciliar sobre o “múnus dos Bispos” que estabelece com muita clareza as prioridades: “ensinar todas as gentes, santificar os homens na verdade e apascentá-los” (ChD 2; 11; 30). Em primeiro lugar aparece como “um dos principais deveres anunciar o Evangelho de Cristo aos homens” (ChD 12-14) e só depois surge o de santificar (ChD 15) e o de governar (ChD 16). Bastaria recordar as recomendações conciliares de “respeitarem a parte que pertence aos seus fiéis” (ChD 16; LG 37), não como recordava D. Albino, por delegação, “mas sim (para) darem aos leigos aquilo que lhes pertence”, pela sua consagração baptismal acrescento eu. Ou ouvir as queixas de S. João Crisóstomo: “Os nossos bispos estão esmagados pelas preocupações materiais mais que os administradores leigos, que os ecónomos e os comerciantes, enquanto que deveriam ocupar-se unicamente das vossas alma. Em vez de rezar e ensinar passamos o tempo a controlar os preços do vinho, do grão e das restantes mercadorias: discussões intermináveis nas quais se misturam injúrias grosseira (…), que os leva a deixar acumular o pó sobre a Sagrada Escritura, a perder o seu espírito de oração e a que se atrofie o seu sentido espiritual”.
Um outro motivo de muita alegria é que estes exemplos bons venham de cima. Muitos dos nossos párocos também não definiram adequadamente as suas prioridades e, além disso, ocupam-se demasiado com assuntos para os quais os leigos têm possivelmente mais competência. Também aqui bastaria reler o decreto conciliar sobre “o ministério e vida do sacerdotes”. Logo na definição geral da sua missão ficam estabelecidas as prioridades: “são promovidos ao serviço de Cristo mestre, sacerdote e rei” (PO 1). E depois vai repetindo: “o seu ministério que começa pela pregação evangélica”; “quer se entregue à oração e à adoração, quer preguem a palavra de Deus, quer ofereçam o sacrifício eucarístico” (PO 2); “têm, como primeiro dever, anunciar a todos o Evangelho de Deus” (PO 4). Também o número 13 começa por dizer que “sendo ministros da Palavra, todos os dias lêem e ouvem a palavra do Senhor que devem ensinar aos outros” (PO 13a) e só depois passa ao “sacrifício da missa” (PO 13b).
É claro de tudo isto que o padre é, primeiro que tudo, “o homem da Palavra” e só depois “o homem do culto”, até porque sem Palavra não há culto. O problema é que é muito mais fácil “celebrar missas”do que fazer catequese. Para “celebrar a missa”, para lá da fé, basta fazer gestos e ler as palavras do Ritual. Mas para fazer catequese é preciso estudar, meditar, preparar, saber apresentar em palavras e conceitos inteligíveis a mensagem. E isto dá muito trabalho. Bastará ver como estão a reagir os professores na sociedade civil. E fazer catequese é muito mais do que dar aulas. Por isso, já o Concílio dizia, referindo-se apenas à modalidade mais habitual de formação, que é a homilia: “A pregação sacerdotal, não raro dificílima nas circunstâncias hodiernas do mundo, se deseja mover mais convenientemente as almas dos ouvintes, não deve limitar-se a expor de modo geral e abstracto a palavra de Deus mas sim aplicar às circunstâncias concretas da vida a verdade perene do Evangelho” (PO 4).
Daí a lamentação de D. José Policarpo, na sua última Carta pastoral: “má proclamação da Palavra de Deus; demasiados discursos durante a celebração, abundância de palavra humana que ofusca a Palavra de Deus; isto inclui, por vezes, a própria homilia, destinada a ajudar a escutar a Palavra do Deus vivo e a descobrir os caminhos de resposta, na fidelidade; má qualidade e a falta de mensagem religiosa dos cânticos, que deveriam ser uma expressão da oração e do louvor; a ausência quase total de silêncios; o exagero de gestos simbólicos de má qualidade, como é o caso de certos ofertórios; a introdução de textos profanos durante a própria acção litúrgica. Que os sacerdotes tenham consciência que aquele que preside à celebração é o principal responsável da sua qualidade” (14).
A Igreja, como o mundo, vive uma mudança radical, uma verdadeira crise. E as crises são momentos oportunos para quem como a Igreja dispõe de propostas libertadoras e prenhes de esperança. Mas para a poder aproveitar e potenciar temos todos de ser capazes de conversão: de modelos de Igreja, de modelos de pastoral, de modelos de linguagem, de modelos de catequese, de modelos de organização, de mudança de estilo de vida, pessoal e comunitária.
E sobretudo de conversão radical à Palavra de Deus, que, como diz o Concílio, “deve ser como que a alma da sagrada teologia” (DV 24) e de toda a vida cristã (DV 21).

2008-06-27

História Comparada das Religiões

A nível interno, III Colóquio da Comissão de Liberdade Religiosa (CLR), fez também a proposta, com a qual todos pareceram concordar, de que seria muito útil e oportuno a criação, para combater a ignorância dos portugueses relativamente a este tema, de uma disciplina de História Comparada das Religiões na escola pública já, espero eu, no Liceu, com um estatuto equivalente às principais cadeiras. Penso que poderia até ser um bom substituto das aulas de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC), por várias razões, no caso de ser dada de maneira séria, isenta e sem preconceitos.
Por outro lado, as aulas de EMRC exigem mestres de elevadíssima qualidade que infelizmente abundam pouco entre nós: sem querer generalizar, há demasiada gente dogmática, pouco aberta às linguagens de hoje, com dificuldade em entender a malta nova, etc..
Por outro lado, a História de Religiões permitia um espaço para os católicos aprenderem o ecumenismo no sentido lato e não se ficarem por uma total ignorância dos muitos valores das outras religiões e por esse espírito apologético que às claras ou às ocultas ainda está presente em muitos católicos: "A Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, reflectem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens" (NAe 2).
Além disso, remetia para as comunidades paroquiais uma maior exigência na sua obrigação primeira de catequizar, de educar para a Palavra de Deus, que, como escrevia recentemente Bento XVI, é “a palavra de vida que a Igreja deve oferecer num mundo fragmentado: nós actuamos como embaixadores de Cristo, como se o próprio Deus exortasse através de nós. Em nome de Cristo suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus”. E um pouco mais à frente: “A comunidade dos fiéis pode ser o fermento da reconciliação, mas só se permanecer dócil ao Espírito e der testemunho do Evangelho, só se levar a cruz como e com Jesus”.
E do ponto de vista da sociedade, evitavam-se acusações de privilégio, pois havendo uma lei que já aborda esta questão, continuamos a manter uma Concordata, que, para muitos, mesmo católicos, não passa de um tratado entre Estados para regular poderes e regalias. E a Igreja é primeiro que tudo uma comunidade de crentes chamada a testemunhar os valores do Reino e não a partilhar poderes. Já lá diz o documento do Sínodo dos Bispos de 1971: “A conservação de algumas condições de privilégio têm de ser constantemente submetida ao critério de não tornar ambíguo o testemunho evangélico que a Igreja é obrigada a dar” (JM 48).

2008-06-26

Acordo sobre legislação laboral

Dizem os jornais que os parceiros sociais saíram satisfeitos com o acordo. Certamente também poderiam ter dito que todos vinham insatisfeitos
Conheço apenas o que fui lendo pelos jornais, que naturalmente só referem alguns aspectos a que o jornalista será mais sensível.
De qualquer modo atrevo-me a fazer dois ou três comentários, mesmo que passe por um atrevido ignorante. Aliás a ignorância sempre foi muito atrevida!
Quanto ao “horário concentrado” devo dizer que, "quando trabalahva", um dos meus desejos era poder trabalhar mais uns dias e menos noutros conforme os meus interesses. Portanto, esta ideia e o banco das horas, desde que esteja assegurada a liberdade de decisão do trabalhador (como exige a directriz europeia) não me desagrada. Tenho é uma grande reserva. O que acontece aos trabalhadores com funções m/paternais, que não têm a quem deixar os filhos, se as creches continuarem a fechar às cinco e meia? Há alguma coisa prevista neste sentido. É que aqui não estão só em jogo as relações laborais, mas também familiares. Já quanto à queixa de que isso evita o pagamento de horas extraordinárias não colhe para mim: 1) porque pode ser um incentivo às empresas; 2) porque sempre achei as horas extraordinárias uma falta de solidariedade entre trabalhadores.
Preocupa-me também que o patrão possa despedir e depois seja o trabalhador, via tribunal, a fazer o ónus da prova. Não me preocuparia tanto se os tribunais trabalhassem rapidamente, mas com os caracóis que por aí andam, se não forem previstas adequadas garantias será muito mau.
Mas há uma outra preocupação mais geral. Estamos a viver num período muito semelhante ao da Revolução Industrial, no qual todas as estruturas (grémios e associações) se desfizeram completamente e surgiram novos mecanismos. Não sei se os parceiros sociais estão a ter consciência disso. Por isso, deixo de lado a questão de termos sindicatos e de vários quadrantes que se comportam mais ou menos como correias de transmissão de partidos, o que apenas os descredibiliza e lhes retira capacidade de luta pelos reais interesses dos trabalhadores, preteridos pelos reais interesses dos partidos.

Como é já recorrente a CGTP não assinou. E isto coloca-me uma questão. Faz-me lembrar muitos cristãos que há aí uma dúzia de anos ou mais eu encontrava quando me deslocava como cavaleiro andante da doutrina social da Igreja. Fugiam de uma greve como o diabo da cruz. Se era oportuno, começava por perguntar quem tinha feito greve. A resposta era geralmente: ninguém. Então eu recordava o aumento de salário ou de regalias sociais que tinham resultado da greve e todos achavam muito bem. E depois perguntava: “Mas como vocês não fizeram greve vão entregar esses ganhos aos vossos colegas que fizeram a greve e correram o risco de ser mal vistos pelo patrão?” E a resposta óbvia era: “Não”. E lá fazia eu um sermão sobre a falta de ética, a falta de solidariedade e a falta de seriedade.
É a mesma atitude que vejo na CGTP. Não assina, mas não recusa as regalias que outros conquistaram com muito sangue, suor e lágrimas e assim pode aparecer como a grande defensora dos trabalhadores que nunca se verga a ninguém. É a posição mais cómoda e mais propagandística.
É que eu penso que um sociedade mais justa, onde se cruzam tantos interesses diversificados, uns legítimos outros egoístas, só se consegue pelo diálogo dialéctico entre todas as partes, com cedências às vezes dolorosas, com os compromisso que os condicionalismos históricos vão impondo, avançando um palmo hoje, um passo amanhã.
O avanço da história não é um caminho linear.

2008-06-25

Papel fundamental das religiões

No III Colóquio da Comissão de Liberdade Religiosa, a decorrer em Lisboa, houve algumas afirmações interessantes.
Uma das que me chamou a atenção, pelo que traz de confirmação do que eupensava, foi a de Sócrates: “Acredito profundamente no contributo das religiões para a paz" (não me referia a esta parte), um valor que "tão esquecido tem andado na política internacional". E bom seria que as religiões fossem reconhecidas como um dos principais parceiros na construção da paz. Bem sei que há por aí muito a ideia que as religiões são mais foco de guerras que construtoras da paz. Há exemplos demasiado abundantes. Mas não confundamos os que se servem das religiões (tomadas à sua maneira) para fazerem as guerras com as religiões. Pois, como dizia D. José Policarpo, o "processo complexo" de construção da paz tem exigências éticas, políticas, económicas e religiosas e o contributo das religiões para a paz depende da "fidelidade dos crentes" aos princípios em que acreditam. Mas a "simples liberdade de consciência tem um longo caminho a percorrer".
Neste sentido podem ser interessantes a ideia já repetida de René Samuel Sirat, vice-presidente dos Rabinos Europeus, da criação de um "G8" que congregue líderes religiosos, para promover a compreensão entre os povos, e sobretudo a proposta de Vassilios Tsirmpas, evangélico grego, que acentuou "a necessidade de pedir perdão pela arrogância que continua a marcar várias tradições religiosas."
Há quinze anos, o Conselho do Parlamento das Religiões do Mundo elaborou e difundiu uma Declaração sobre uma ética mundial, que partia do princípio de que “não é possível uma nova ordem mundial sem um ética mundial”, porque não haverá paz entre as nações sem a paz entre as religiões; não haverá paz entre as religiões sem haver diálogo inter-religioso; não haverá diálogo eficaz entre as religiões sem posições éticas comuns para o globo; não haverá sobrevivência do globo sem uma ética global. E aqui convirá não cair numa concepção de diálogo redutora ou então utilizar a expressão de Mário Soares que acredita "nas virtudes do diálogo inter-religioso e entre crentes e não crentes".
Ninguém como os líderes religiosos, quando se fundamentam na verdade das suas Escrituras ou das Revelações divinas, poderão ser os melhoes instrumentos ao serviço da construção da Paz. Citando S. Paulo a propósito de Jesus Cristo: "Com efeito, Ele é a nossa paz, Ele que dos dois povos fez um só e destruiu o muro da separação, a inimizade" (Ef 2,14).

2008-06-24

Tempos de crise, tempos fecundos

Escrevi ontem sobre a necessidade de uma formação séria dos cristãos. É uma urgência de todos os tempos mas especialmente hoje, num tempo em que parece vivermos “numa cultura do vazio”, não no sentido de que não haja valores, mas porque estamos numa era de passagem ou transição em que os valores do passado parecem ser rejeitados ou mal postos em prática e os novos ainda não ganharam a consistência que os torne “inevitáveis” como o ar que respiramos.
Como cristão, sou dos que estão convencido que o cristianismo poderia e deveria ter um papel fundamental propondo os valores evangélicos (e não só os valores eclesiais) que tomam a pessoa humana como centro e daí retiram todo um conjunto de valores, princípios e normas que desagum na defesa, respeito e promoção dos direitos humanos.
As crises são sempre tempo oportuno (o kairós dos teólogos) para fazer propostas libertadoras. Nas crises as pesssoas andam desnorteadas (sem norte) e portanto necessitadas de alguma bússola. Essa bússola não tem que ser nem é unicamente a Igreja católica: há muitas outras religiões, há movimentos culturais. Mas para mim, nenhuma tem a força libertadora que dimana das palavras perenes do Evangelho, quando é tomdo a sério.
Mas como fazer? A pergunta do como é hoje crucial. Talvez por isso, a própria Igreja católica esteja tão desnorteada como o mundo.
A propósito gostaria de partilhar convosco um texto de Tolentino Mendonça.
Há um poder contestador, chamemos-lhe assim, que é inerente à experiência cristã e que ela é chamada a exercer face às construções de cada presente, suas derivas imaginárias, suas satisfações mitológicas. A cultura tem de representar uma mediação, e uma mediação a descobrir e a privilegiar, não um absoluto. Como escreve Robert Scholtus, num discurso teológico bem temperado de humor, o cristianismo é por sua natureza insolente, paradoxal e tem-se tornado pior com o tempo: acontece que hoje o testemunho cristão é mesmo chamado a inscrever-se como enigma na paisagem humana, mais até do que como inteligível testemunho.

2008-06-23

Formação dos leigos

Como tive de passar o dia todo no hospital e como vários amigos me pediram para colocar no blog o meu último artigo sobre o tema em epígrafe, resolvi fazer-lhes a vontade.
Nele desenvolvo duas ou três ideias.
1) Não deveriam preocupar-se apenas com a formação dos animadoraes das comunidades (acredito que não seja por isso, mas a suspeita é de o problema se por por causa da falta de padres), especialmente neste ano dedicado a S. Paulo.
2) É urgente que o clero faça uma primeira conversão: respeitar os leigos e assumi-los como colegas igualmente responsáveis pela edificação da Igeja e a realização da missão.
3) A formação qualquer que ela seja e para quem quer seja tem de ser séria, isto é, actual, adequada e sistemática.
4) A formação é a prioridade primeira dos párocos: e esta é a segunda conversão que é exigida ao clero.

Para quem quiser ler o artigo na íntegra ele aí segue:

TESTEMUNHAR O QUE SOMOS

A assembleia do clero apontou, como uma das prioridades dos próximos anos, a formação dos leigos animadores de comunidades. Talvez se esperasse no ano dedicado a S. Paulo, “o apóstolo”, uma aposta mais abrangente já que uma Igreja missionária, tendo a ver com todos os âmbitos da vida, deve cuidar da formação de todos os leigos (LG 31). Mas seja qual seja a opção, o importante é que seja séria. E quando digo séria, não estou a pensar no clero, mas no nosso estilo de pastoral muito ao jeito de “seja o que Deus quiser”.
Uma primeira exigência tem a ver com o modo como o clero olha os leigos. Os leigos têm de ser levados a sério, como corresponsáveis pela missão da Igreja, companheiros de caminhada em quem se confia, a quem se recorre, em quem se acredita e a quem se dá espaço na decisão, planificação e execução das várias actividades (LG 37; GS 43). Isto é, como elementos indispensáveis, não por especial condescendência da hierarquia, mas por um direito próprio que decorre da consagração baptismal, comum a todos (AA 3). Esta é a primeira conversão que o nosso clero deve fazer: os leigos não podem ser olhados como simples criados ou executantes. Dizia Bento XVI no seu discurso aos nossos Bispos (lembram-se?): “É preciso mudar o estilo de organização da comunidade eclesial portuguesa e a mentalidade dos seus membros para se ter uma Igreja ao ritmo do Concílio Vaticano II, na qual esteja bem estabelecida a função do clero e do laicado, tendo em conta que todos somos um, desde quando fomos baptizados e somos corresponsáveis pelo crescimento da Igreja”.
Passando à proposta séria ela deve ser actual, adequada e sistemática. Actual significa que tem de ter uma linguagem actualizada, mobilizadora e sedutora. Não se trata do conteúdo, mas da forma: o século XXI exige uma linguagem nova, diferente, em consonância com o mundo actual. De que vale saber todos os termos técnicos teológicos e catequéticos se eles nada dizem às pessoas de hoje? A linguagem é um dos desafios prioritários como recordava Bento XVI: “Talvez valha a pena verificardes a eficácia dos percursos de iniciação actuais, para que o cristão seja ajudado, pela acção educativa das nossas comunidades, a maturar cada vez mais até chegar a assumir na sua vida uma orientação autenticamente eucarística, de tal modo que seja capaz de dar razão da própria esperança de maneira adequada ao nosso tempo”.
Mas não é só uma questão de linguagem. A generalidade dos cristãos, mesmo os de missa dominical, vive um cristianismo que se esgota numa ética humanista, esquecendo o essencial, cujo centro é o Sermão da Montanha que não é uma proposta para elites mas para todos os que querem ser seguidores de Jesus Cristo (NMI 51) e que Bento XVI resumiu numa frase lapidar: “No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1). Demasiados têm uma ideia de Deus muito mercantilista, afastada do Deus-Amor, que é pai e mãe, que olha para nós não como pecadores mas como gente carenciada de salvação. Muitos não fazem ideia do que seja a eclesiologia da comunhão, cuja espiritualidade João Paulo II tão bem caracterizou (NMI 43).
Uma proposta séria deve ser adequada, isto é, adaptada aos leigos e aos diferentes modos como são chamados a testemunhar e a construir a comunhão e a missão da Igreja. Por exemplo, não é adequada, por muito científica que o seja, uma formação decalcada dos cursos teológicos que se dão nos Seminários. Embora a missão seja uma e a mesma (AdG 6), não serve a mesma “chapa” para clero, religiosos e leigos.
A proposta deve também ser sistemática. Há na nossa Diocese muitos e variados cursos, mas não há suficiente articulação entre eles, o que origina não só uma dispersão de esforços mas também multiplicação de iniciativas que poderiam ser perfeitamente evitadas.
Por outro lado, a formação não é um mero exercício intelectual. Não bastam, embora indispensáveis, as “Escolas de Leigos” e outros cursos. Primeiro, porque o “objectivo fundamental” da formação é “a descoberta cada vez mais clara da própria vocação e a disponibilidade cada vez maior para vivê-la no cumprimento da própria missão” (ChL 58). Segundo, porque a formação deve ser uma espécie de “discipulado”, como que Jesus fez com os seus discípulos. E aqui os párocos têm um papel insubstituível. Esta formação exige um trabalho constante com um núcleo duro que poderia ser o Conselho Pastoral, começando pela Comissão Permanente, iria alastrando depois aos outros agentes pastorais e finalmente a toda a comunidade. Mas… isto pressupõe uma mudança radical nas opções dos nossos párocos, como dizem os nossos Bispos: “As actuais circunstâncias reclamam esta opção que talvez exija uma reconversão das prioridades pastorais dos sacerdotes de modo a deixarem aos leigos as tarefas não específicas dos pastores e a reservar à formação sistemática dos adultos o tempo e as energias que ela requer”.
Sem estas duas conversões, a formação poderá produzir bons gestores de uma pastoral do betão, do turismo, mesmo de actividades, mas nunca uma pastoral da comunhão e da missão, a que a Igreja é hoje especialmente chamada.
O dramático é que o mais difícil no cristianismo é a conversão!

2008-06-22

Trabalhar 13 horas por dia

O Conselho de Ministros do Emprego da União Europeia tentou desdramatizar, dizendo que mantém o limite máximo de 48 horas semanais e não impede os estados-membros de estabelecer um limite inferior de tempo de trabalho, acrescentando que a única novidade é que um "regime de excepção" segundo o qual "os trabalhadores podem optar por exceder as 48 horas de trabalho por semana, se o Estado-membro o permitir, através de legislação específica ou através de um acordo com os parceiros sociais", que devem cumprir um conjunto de condições de defesa do trabalhador.
Apesar desta tentativa de desmentido da aprovação de 65 horas semanais, tal decisão é uma machada gravíssima nos direitos dos trabalhadores e também no modelo social europeu. Esta decisão acaba com a conquista das 48 horas, obtida em 1917, depois de longos anos de lutas sindicais dolorosas desde a greve de 1886, em Chicago.
Dizer que assim se criam "melhores condições para os trabalhadores", porque permite a cada trabalhador negociar individualmente o seu tempo laboral é esquecer que o trabalhador é sempre a parte mais fraca. Por alguma razão se criou um direito do trabalho. Se não houvesse condições específicas certamente bastaria o direito civil “comum”. Sendo a parte mais fraca, o trabalhador vai estar muitas vezes pressionado para aceitar condições inaceitáveis. Já Leão XIII condenava tal facto: “Portanto, mesmo que o patrão e o operário convenham livremente nalguma coisa, e particularmente no salário, fica sempre em pé um princípio que dimana da justiça natural, mais importante e anterior que a livre vontade dos interessados, que estabelece que o salário nunca deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e de bons costumes. E se viesse a suceder que o operário obrigado pela necessidade ou por receio de um mal maior, aceitasse condições inferiores, que não pudesse recusar por lhe terem sido impostas pelo patrão, então estaríamos em face de uma violência contra a qual se insurge a justiça” (RN 32).
Trabalhar 65 semanas por semana dá a insignificância de 13 horas por dia, a menos que se queira também acabar com o fim de semana.
E já agora uma perguntinha que sempre me inquieta: como é que é possível que tendo aumentado a produtividade com aumentou é necessário que o trabalhador trabalhe cada vez mais? Um simples cálculo permite-nos verificar que desde a revolução industrial a produtividade aumentou mais de 25 vezes: o tempo de trabalho passou de 3600 horas anuais, em 1840, para 1650 actualmente, isto é, sofreu uma redução superior a 50%; por outro lado, a produção por activo multiplicou-se por 13. Assim sendo, a produtividade aumentou mais de 26 vezes. Quem ganha com este aumento? Não deveríamos numa sociedade humana trabalhar cada vez menos para termos tempo cuidar do outro, admirar a natureza, cultivar os amigos, realizar projectos para os quais nunca há tempo, “não fazer nada”? Além disso, não estamos nós com tanto desemprego estrutural? Então por que obrigar a trabalhar tanto como há dois séculos atrás?
Não é esta Europa que eu desejo que se cumpra. Quero uma Europa que defenda o seu modelo social europeu e não se deixe colonizar pelos modelos asiático ou americano. A Europa não pode embarcar em violações inaceitáveis da dignidade da pessoa.
Curiosamente os que tanto falaram do referendo ao Tratado de Lisboa, parece que não têm nada a dizer a estes desmandos bem mais graves.

2008-06-20

Corrupção

O PS aprovou sozinho ontem a sua proposta de luta contra a corrupção com a criação do Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC).
Devo dizer que nunca percebi se os deputados do PS estavam ou estão seriamente interessados nesta luta. Sabendo-se que é um dos piores cancros da democracia portuguesa, tantas hesitações e tanto tempo para tomar uma decisão dão para desconfiar. Além disso, a recusa em aceitar a proposta de Cravinho para passado este tempo todo vir a recuperar grande parte dela mais suspeitas levanta.
Um sinal positivo de alguma bondade desta proposta é que todos os outros partidos se abstiveram. E digo que é positivo porque na política portuguesa há uma regra de ouro: tudo o que vem da oposição deve ser rejeitado pelo partido do governo e tudo o que vem do partido do governo deve ser rejeitado pela oposição: é o que podemos chamar o "diálogo democrático à portuguesa".
Positiva me parece a sua independência do governo e o facto de funcionar junto do Tribunal de Contas
No entanto, as críticas de Maria José Morgado não são muito optimistas. Embora se congratule com a sua dependência do Tribunal de Contas, estranha que apareça agora mais uma legislação quando em Fevereiro entrou em vigor uma lei de combate à corrupção que vem responder a algumas das mesmas preocupações. Fala ainda de "incoerência" na produção de leis anticorrupção, de "sobreposição e dispersão" de estruturas envolvidas, para concluir que "não é só fazer leis e dizer coisas, isso é fácil, é barato e não dá nada".
Resumindo, para um cidadão ignorante como eu fica a ideia de que, mais uma vez, produzimos leis atrás de leis, geralmente pouco pensadas, sem preocupação de consenso em assuntos tão graves, pouco enquadradas e naturalmente com os adequados buracos para os bons advogados defenderem os clientes com dinheiro.
Até porque a corrupção é sobretudo uma questão de mentalidade, que se alimenta da pequenina corrupção e vai deslizando, de degrau em degrau, até atingir proporções catastróficas.
Espero, por isso, que a lei seja bem dura nas penas a aplicar. Porque infelizmente nós só aprendemos quando nos entram na carteira ou nos tiram a liberdade.

2008-06-19

Puxar pela cabeça

O nosso comodismo e mentalidade da subsidiodependência têm-nos criado muitos problemas. Enquanto a EU dava dinheiro a rodos a malta, de um modo general, pouco fez para se actualizar e renovar os seus métodos e instrumentos de trabalho. Isto aconteceu em todos os sectores: pescas, agricultura, transportes, etc..
E agora vêm as crises. Porque foi mais fácil meter o dinheiro ao bolso do que apostar na inovação e na criatividade.
Todos falam da crise nos têxteis, mas temos empresas a exportar e bem para o estrangeiro, em mercados exigentes. Falamos da crise do calçado, mas há empresas que exportam e bem. Veiram estrangeiros para o Alentejo e exportam vinhos de alta qualidade.
Muitos de nós nos interrogamos por que razão o peixe chega 17 vezes mais caro ao consumidor do que sai da lota. E sobretudo por que razão os pescadores se deixam roubar pelos intermediários. Por que não se associam e e garantem a distribuição. O mesmo se poderia dizer dos agricultores. Mas é mais fácil pedir subsídios ao governo, isto é, a todos nós, do que puxar pela cabeça e inventar soluções novas para tempos novos.
O editorial do DN de hoje traz dois exemplos que ilustram o muito que poderia ser feito. Passo a citar:
No Alentejo, a Carmin, Cooperativa Agrícola de Reguengos de Monsaraz, tomou a sábia decisão de subir na cadeia de valor ao adquirir uma empresa distribuidora. "Queremos estar mais próximos do consumidor final", explicou José Canita, o presidente da cooperativa.
Em Torres Novas, a Renova arranjou uma solução engenhosa para contornar o aumento do preço dos transportes. Ao retirar o ar das embalagens conseguiu dilatar em duas toneladas (de 5,3 para 7,3) a capacidade de armazenamento de cada camião.
Duas ideias que poderiam multiplicar-se por milhares.
E que poderiam estender-se a todos os âmbitos. Por exemplo, temos escolas exemplares e escolas desastrosas. No entanto, o quadro legal e administrativo é o mesmo. Onde está à diferença? Não será na criatividade e na capacidade de gestão de recursos humanos e técnicos dos conselhos directivos?

2008-06-18

Os holandeses

Sou dos que gostam de futebol. Dos que são suficientemente irracionais sem se sentirem alienados. Dos que insultam os árbitros e neste campeonato tem havido demasiadas oportunidades.
As equipas de que gostei mais como artistas da bola foram a Holanda e a Itália.
Mas se falo hoje de futebol é por outras razões.
É que gostei especialmente dos holandeses sobretudo por um gesto muito simples que costumam fazer no fim de cada jogo.
Em vez de tirar a camisola e ir oferecê-la aos fãs, alimentando o culto da personalidade, vão simplesmente ter com a família, alegram-se, abraçam-se, beijam-se, pegam nos filhos, brincam com eles e até os levam a dar uma volta pelo meio campo. BONITO.
Esse elogio à família é gesto muito sensibilizante. E vale muito mais do que muitos discursos de sisudos teólogos que nem casados são ou de casados que só vêem em cada canto e em cada momento só desgraças e ataques sistemáticos à família no mundo de hoje.
A família é sobretudo isto: um espaço de alegria, uma reserva de afecto, uma garantia de acolhimento, o primeiro espaço de humanização.
Mesmo que não seja abençoada por uma Igreja.
Uma boa sugestão para a pastoral da família.
Parabéns aos holandeses!!!

2008-06-17

Castigo de Deus

Recentemente a actriz Sharon Stone classificou o terramoto, ocorrido na China a 12 de Maio e que matou mais de setenta mil pessoas, como um castigo de Deus, pelo “modo como os chineses tratam os tibetanos”.
A ideia não é nova e pelo menos Homero já a utilizava. Logo a abrir a Ilíada, o sacerdote de Apolo, Crises, queixa-se por lhe terem raptado a filha. Então
… Enfureceu-se o deus
contra o rei e por isso espalhara entre o exército
uma doença terrível de que morriam as hostes.

Assim (o sacerdote) disse, orando; e ouviu-o Febo Apolo.
Desceu do Olimpo, com o coração agitado de ira.
Nos ombros trazia o arco e a aljava duplamente coberta;
aos ombros do deus irado as setas chocalhavam
à medida que avançava. E chegou como chega a noite.
Depois sentou-se à distância das naus e disparou uma seta:
terrível foi o som produzido pelo arco de prata.
Primeiro atingiu as mulas e os rápidos cães;
mas depois disparou as setas contra os homens.
As piras dos mortos ardiam continuamente
. (I, 9-11; 43-52).
Mais tarde, foram os discípulos de Jesus que perante a cura do cego de nascença perguntavam: “Mestre, quem teve a culpa de ter nascido cego: ele ou os pais?”. De pouco adiantou a recusa de Jesus em aceitar tal explicação: “Nem ele nem os seus pais” (Jo 9,2.3).
Mais recentemente, o cardeal Siri veio também dizer que a sida era um castigo de Deus.

É já altura de deixarmos de maltratar Deus e culpá-lo das nossas burrices. Muito do nosso sofrimento é causado pelos nossos erros, pelos erros dos outros ou pela dinâmica de uma natureza que é tão imperfeita como nós. Mas é tão cómodo culparmos Deus.
Coitado de Deus! Deus que é Amor puro, oblativo, comunicativo.
Mas até aqueles que acreditam que Deus é Amor, arranjam maneiras para distorcer esse Amor. Deus castiga porque ama; e quanto mais sofrimento mandar, maior é o seu amor. Tenho ouvido tantas vezes isto, especialmente agora que estou doente!

E, no entanto, Jesus para nos mostrar o Amor de Deus contou aquela parábola lindíssima do filho pródigo. Deus é o Pai que espera todos os dias o regresso do filho pecador. E quando ele regressa e nem sequer se acha digno de ser escravo na casa paterna, o Pai manda aos seus servos: “Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha; ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e alegrar-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado” (Lc 15, 22-24).

Como é bom acreditar num Deus assim que está sempre disposto a amar-nos e parece que nem sequer chega a tomar consciência dos nossos pecados!

2008-06-16

Conversões famosas

Os jornais de anteontem falavam da hipótese de Bush se converter ao catolicismo. O maior obstáculo seria a primeira dama Laura.
Bento XVI fez o seu trabalho, inclusive quebrando o protocolo. Diz-se que nunca, até agora, um Papa e um Presidente se teriam reunido nos jardins do Vaticano, gesto propositadamente aberto à comunicação social.
Não sei se esta conversão traz alguma mais valia à Igreja católica ou a Bush. Não é da minha conta e só Deus sabe.
Mas traz-me à memória um episódio que terá ocorrido há anos no Peru. Um director de um banco que, por meios pouco transparentes, abrira um buraco de 250 milhões de dólares prejudicando muitos dos seus clientes, decidiu casar-se e pediu ao cardeal de Lima para presidir à celebração na Sé. A resposta foi rápida e clara: “Não posso casá-lo, porque o senhor é um ladrão público. Quando o senhor repuser os milhões que retirou a tantos pobres, apareça!”.
Daqui que eu me atreva a fazer uma proposta a Bento XVI: que peça a Bush que faça um gesto público que mostre a sua seriedade. Por exemplo, que antes de acabar o seu mandato, destrua a prisão de Guantânamo, que é um dos exemplos mais diabólicos da negação dos valores evangélicos, porque aí as pessoas não são tratadas como pessoas que foram todas e cada uma criadas à imagem e semelhança de Deus.
Ora esta afirmação é um pilar estruturante da Igreja católica e terá de o ser para todos os que nela queiram entrar, mesmo que se considerem os donos do mundo, da lei e da moral.

2008-06-15

Os países são como as pessoas

Gosto muito da Europa, de uma Europa forte, aberta ao mundo, capaz de lutar pelo seu modelo que é (era?) mais social que outros. A União Europeia é um meio que pode ser eficaz para fortalecer a Europa e lhe dar o lugar que lhe compete no mundo, de tal modo que tenho (temos?) a tendência a confundir Europa e União Europeia.
Por isso, o não irlandês, embora mais que esperado, não foi uma boa notícia. Não sei se eles quiseram dizer não à Europa (EU) ou ao Tratado de Lisboa. Até porque certamente a esmagadora maioria deles (como de todos nós) não o leu nem sequer sabe o que diz esse tratado, o que certamente acontece com todas as constituições nacionais aprovadas pelos respectivos Parlamentos.
Votar "não" porque não se sabe o que é ou apenas se sabe o que os outros dizem mesmo que seja aldrabice (os defensores do "não" utilizaram a mentira; por exemplo, com este Tratado, os irlandeses seriam obrigados a introduzir legislação liberalizadora do aborto ou a fornecer soldados para tropas conjuntas), não é propriamente um bom exercício de cidadania
Aliás dizer "não" é muito fácil e cómodo, sobretudo quando nos garante todas as vantagens e nos liberta das consequências desagradáveis. Difícil, difícil é construir. O egoísmo não é apenas típico das pessoas. Também ataca, e talvez mais ainda, os países e as nações.
Além disso deve dar um especial gozo a um país tão pequeno pôr de cócoras uma Europa inteira. Deve ser uma sensação erótica sentir que 3 milhões podem mandar sobre 500 milhões de europeus que formam a UE. Destes há alguns milhões que estarão de acordo com os irlandeses, mas a desproporção mantém-se.
Geograficamente, a Europa é maior que a Irlanda
Mas a Europa é muito maior que a Irlanda, porque, apesar da Irlanda já a ter rejeitado mais que uma vez, a Europa continuou a dar-lhe largos milhares de milhões de euros que permitiram à Irlanda deixar de ser o Zé-ninguém que era há vinte anos atrás.
Mais, a Europa é demasiado grande para ficar refém de uma tão pequena Irlanda. Todas as grandes construções históricas se conseguiram num diálogo dialéctico entre os que eram a favor e os que eram contra, entre os que queriam assim ou assado e sobretudo numa luta constante e muito difícil contra egoísmos pessoais, grupais ou nacionais.
A Europa é uma proposta muito grande e a sua grandeza ir-se-á fortalecendo com o seu espírito de tolerância, com a sua solidariedade com o mundo, com a sua abertura aos outros, mesmo àqueles que não a querem, e também com estes obstáculos que estimulam a sua criatividade e a sua capacidade de invenção para tornar essa sua grandeza muito mais justa, solidária e humana.
A porta está sempre a aberta.

2008-06-13

Gente reles

Na sequência da falta de combustíveis, foi instrutiva a reacção de várias pessoas. Em entrevistas televisivas, feitas em bichas nas gasolineiras, a resposta de muitos era: “Vinha só atestar. Ainda tenho gasolina, mas…”. No fim da bicha lá surgiu uma pessoa a queixar-se: “Eu preciso de combustível para trabalhar, agora não sei como vou fazer”.
Isso é quem não tinha necessidade imediata de encher o carro nem sequer precisava do carro para assegurar o seu trabalho apressou-se a açambarcar com receios futuros sem sequer pensar que aquele seu supérfluo podia ser o necessário para alguém. Nalguns supermercados parece ter acontecido algo semelhante.
No momento em que a crise apenas começava a desenhar-se, aí surge a nossa irracionalidade e o nosso egoísmo. Deixamo-nos conduzir pelas camadas mais agressivas do nosso cérebro (“o cérebro de réptil”, que é responsável pela territorialidade, pelo medo, pelo pânico): “salve-se quem puder” passa a ser a lei.
Somos realmente gente reles. O que não admira, pois se nós quando vivíamos na abundância pouco nos incomodamos com os outros... o que seria de esperar em tempos de dificuldade!?
Uma sociedade assim terá sempre muita dificuldade em se tornar uma comunidade justa e humana. As sociedades não podem ser apenas instituições jurídicas onde a lei garanta os direitos humanos, muitas vezes de forma formal. Para ser verdadeiramente humana, a sociedade terá de ser uma comunidade também moral onde, para lá da lei, funcione a solidariedade, a justiça social, a garantia do mínimo de subsistência digna para todos.
Mas isso exige que cada um não olhe apenas para o seu umbigo nem se deixe conduzir pelas camadas mais animalescas do seu cérebro.

2008-06-12

Uff!...

Terminou a paralisação dos camionistas. Ontem fiz aqui uma leitura de cidadão comum. Uma atitude que corre sempre o risco de absolutizar um ponto de vista e esquecer os outros. A história é feita por vários intervenientes e pode ser sempre vista de vários lados. Aliás, uma das exigências da opção pelos pobres, um princípio estruturante da doutrina e da natureza da Igreja, é procurar fazer uma leitura da história a partir dos mais pobres.
Não sei avaliar o ponto dos camionistas revoltados, mas aceito perfeitamente que muitos deles tenham atingido uma situação de tal modo desesperada que a única saída que encontraram foi esta. E, apesar dos aspectos negativos, teve o mérito de pôr o país a pensar em problemas que passam para lá do futebol ou do “dia da raça”. É, pois, uma oportunidades para todos tirarem lições.

Os camionistas acabaram por aceitar que nem todas as suas reivindicações eram realistas, o que é prova de uma maturidade, que deve ser institucionalizada, como foi dito que vai ser, de modo a ganhar força negocial que não os obrigue a deslizar para atitudes dificilmente compreendidas pela população e sem suporte legal. Como dizia João XXIII, há mais de 45 anos a propósito da agricultura: “Repare-se, ainda, que, no sector agrícola, como aliás em qualquer outro sector, a associação é actualmente uma exigência vital; e, mais ainda quando o sector se baseia na empresa familiar” (MM 146).
Sabe-se que não é fácil o associativismo não só pelo nosso temperamento individualista mas também, neste caso, porque o sector está pulverizado em 8500 empresas, 48 mil camiões e 70 mil trabalhadores. Mas vale o esforço de todos e esta situação limite a que se chegou criou as condições para que tal aconteça.

Tenho que reconhecer ao governo o bom senso, que eu não teria, de aguentar até ao limite mantendo uma atitude de diálogo e não de força e, sem ceder no essencial, procurar encontrar saídas de maior justiça social. Talvez seja a minha falta de senso mas, como escrevi ontem, continuo a pensar que o governo deveria mais cedo ter garantido a livre circulação nas estradas e ter evitado que a escassez de bens essenciais. Mas também deve tirar lições.
Tem que ser mais lesto e sobretudo não andar a camuflar as consequências do aumento do preço dos combustíveis e ser capaz de antecipar respostas para uma crise que já era previsível. E antecipar significa tomar a iniciativa nas negociações com os colectivos mais afectados para, dentro de uma política que não ponha em causa os esforços pedidos a todos, poder propor um conjunto de ajudas que respondam às especiais dificuldades destes sectores mais vulneráveis. Uma função primeira do Estado na promoção do bem comum é a especial atenção aos cidadãos e aos sectores mais vulneráveis. Não sei se as medidas agora tomadas são as mais indicadas. Aceito que o sejam a curto prazo, mas isso não invalida a necessidade de uma análise série das causas profundas destas manifestações e de respostas estruturais a uma situação que veio para ficar, a alta do preço dos combustíveis.
Além disso, e é uma queixa corrente, o Estado não pode deixar de dar importância prioritária às pequenas e médias empresas, que são geradoras de 75% do emprego, tendo em conta a sua especificidade própria: muito numerosas, diminuta extensão e com débil capacidade institucional. Como medida imediata não ficaria nada mal o pagamenio rápido dos 3 mil milhões de euros que lhes deve.

Também a sociedade em geral deve tirar lições:
- tomar consciência da fragilidade e da volatilidade da nossa realidade;
- não gastar acima das posses de cada um ou de cada família e limitar as despesas supérfluas;
- perceber o clima de interdependência em que vivemos (estamos dependentes de tantas pessoas para ter o que temos) e, por isso, aprender e praticar o exercício da solidariedade.
Talvez esta crise acorde na consciência dos portugueses o quão a situação nacional e internacional é séria e desperte a necessidade de mudarmos um estilo de vida tão depredador de energia e de recursos ambientais não renováveis.

2008-06-11

País em vias de paralização

Um homem, uma pessoa com passado e presente, com família e amigos, com alegrias e tristezas, morreu ontem estupidamente na luta pelo boicote de camiões: por ideal? por interesses egoístas? por imprudência? por incapacidade de diálogo? or que se achava dono da verdade e com direito a fazer o que lhe apetecer? Talvez por tudo isto. Mas foi uma morte de uma pessoa. Que nada e ninguém pode substituir.
Tudo aconteceu no contexto criado por alguns transportadores que, confiados na omnipotência do seu poder, iniciaram um boicote a tudo o que são transportadores, o que já está a colocar as pessoas e muitas empresas em sérias dificuldades.
Dir-se-á que não se lhes pode exigir muito mais num país corporativista que apenas olha para os interesses egoístas como aliás os tempos recentes demonstram, embora com efeitos menos dramáticos.
Mas esta situação coloca-me algumas interrogações.
São apenas os transportadores que sofrem com o aumento de preço dos combustíveis? Certamente que não. Todos os portugueses o sentem ou vão sentir não só no aumento da gasolina, mas também da generalidade dos produtos mesmo essenciais. Há, por outro lado, muitos que precisam, como os camionistas, da gasolina para o seu trabalho diário. Quais as razões para terem um tratamento especial, sobretudo quando a sua situação não depende de nenhuma legislação, como acontece, por exemplo, com os taxistas que, como têm os preços congelado pelo Estado, são obrigados a absorver na sua margem de lucro o aumento do preço dos combustíveis?
Por que não fazem incidir o aumento do preço dos combustíveis no preço que cobram, como acontece nos outros sectores?
Ao abrigo de que legislação lhes vem o direito de obrigar a parar os que não concordam com eles? Acham bem que as associações de consumidores fossem impedi-los de se manifestar?

O governo tem aqui especiais responsabilidades não só como diz Sócrates porque não podem tomar medidas que ponham em causa todo o esforço que foi pedido aos portugueses, mas também porque são os primeiros garantes de um Estado de direito onde não é permitida qualquer forma de justiça popular, com está a acontecer na maior parte dos boicotes.
Além disso o governo tem como primeira obrigação a defesa e promoção do bem comum. Ora começa a ficar insuportável o estado a que chegaram as coisas. Quem viu as SicNotícias ontem deu-se conta de vários estrangulamentos de bens essenciais em supermercados. Mas também outras consequências: só num aviário, duzentas toneladas de frango que terão de ir para a rua por dia; onze mil litros de leite diariamente deitados fora, só numa empresa, etc.
O Estado e a sociedade não podem estar reféns de meia dúzia de indivíduos que pensam que são mais cidadãos que os outros e cuja filosofia de vida é “os outros que paguem a crise”. Porque todo o país está em causa, o que não acontece com nenhuma greve sectorial ou geral (e nem sequer sei se esta situação se pode considerar equivalente a uma greve ou tem fundamento legal), é urgente que rapidamente o governo tome atitudes não só de protecção aos abastecimentos mas até mesmo de penalização adequada de quem se quer, sem qualqure legitimidade, tornar dono do país.

2008-06-10

Heróis de Portugal

Foi uma alegria / ganhar 2-0 à Turquia. / Até dá para fazer poesia!
Mas não é de futebolistas que quero falar. Apenas recordar que, enquanto todos lhes batem palmas (e que não lhes doam as mãos até 30 de Junho!!!), há outros portugueses famosos não tanto conhecidos, mais a mais, nesta euforia futebolística.
Entre muitos, escolho João Magueijo, que apenas com 40 e poucos anos recebeu rasgados elogios do New York Times pela sua capacidade de divulgação científica numa estação televisiva.
Extremamente irreverente, diria mesmo iconoclasta, ao seu lado Mourinho parece um menino de coro, como cada um pode verificar lendo o seu livro “Mais rápido que a luz” traduzido pela Gradiva. Três exemplos apenas, nos quais ele coloca em causa a actual organização científica.
“Se pensam que os cosmólogos vivem num estado permanente de excitação intelectual, desenganem-se. A verdade é que a nossa sobrevivência financeira está à mercê de instituições extremamente burocráticas que gerem os orçamentos da ciência. Estas instituições são controladas por ex-cientistas já muito fora de prazo. Têm enorme poder, mas à parte isso são uma espécie de ferros-velhos intelectuais” (p. 156).
“Claro que não há bela sem senão e, na prática, num clima destes, corre-se sempre o risco de que nos roubem as ideias. Estes sítios são frequentados por muitas pessoas que trabalham esforçadamente, mas que não têm qualquer talento ou imaginação e andam por lá a ouvir conversas “informais”, a partir das quais constroem carreiras de sucesso. Todos os anos uma universidade americana de renome atribui um prémio ao melhor artigo baseado na ideia de alguém que não o autor” (p. 180).
“Os chefes do Imperial (College, onde é ou foi professor de Física Teórica) gostam de se ver como chulos científicos, num contexto em que os cientistas fazem o papel de putas” (p. 218).
Mas o livro não é só isto.
É certamente uma “autobiografia” onde se destacam todas as lutas, ciúmes e guerras entre cientistas e responsáveis universitários, mas é também a história da sua ainda inacabada teoria VSL (variable speed of light, teoria da “velocidade da luz variável”). Perante uma série de questões levantadas pelo modelo actual do big bang, ele começa por perguntar: “E, se no Universo primordial, a própria luz se tivesse propagado mais depressa do que o faz hoje? Será que resolveria alguns dos enigmas? E a que preço para a física como a entendemos?” (p. 147). Mas isto ia pôr em causa um dos postulados fundamentais do monstro Einstein: a constância da velocidade da luz. De qualquer maneira não era o primeiro a perguntar-se se num mundo e num tempo tão violento como foram os seus primeiros instantes, as constantes físicas se mantiveram mesmo constantes: por exemplo, Paul Dirac perguntava: "Por que é que as constantes da natureza têm o valor que têm?”.
A partir dessa questão, Magueijo foi analisando as consequências e verificou que podia encontrar algumas respostas e algumas com consequências bem espantosas quanto a viagens espaciais, buracos negros, dilatação do tempo ou teoria das cordas.
E foi concluindo que “a raiz de todos os males era obviamente a relatividade restrita (de Einstein)” (p. 264), ironizando: “Deste ponto de vista, pareceria então que postular a invariância da velocidade da luz mais não é que uma convenção, uma definição da unidade de tempo que, por sua vez, assegura que o postulado é válido. Será o famoso postulado de Einstein tautológico?” (p. 238).
Não absolutiza a sua teoria: “E se estiver errada? Diverte-me que alguns dos meus colegas – justiça seja feita, uma minoria de entre eles – estejam desesperados por ver a VSL ir por água abaixo. São pessoas que nunca tiveram tomates (parece que o original é mais vernáculo) de tentar algo verdadeiramente novo” (pp. 272s).
Citando J. Barrows, concorda que “qualquer ideia nova atravessa três etapas aos olhos da comunidade científica. Etapa 1: é uma grande merda, não queremos sequer ouvir falar nela. Etapa 2: não está errada, mas não tem certamente qualquer relevância. Etapa 3: é a maior descoberta de todos os tempos e nós chegámos lá primeiro. É certo que, se a VSL estiver correcta, não faltarão adversários actuais a reclamar prioridade na sua descoberta. Isso é tão certo como eu já ter embarcado noutra aventura intelectual”(p. 273).
Criativo, imaginativo e sempre disposto a navegar pelos mundos desconhecidos da ciência, sente-se feliz por contribuir para a eterna busca da verdade que a ciência sempre terá de ser, tendo a coragem de afrontar ideias feitas e dogmas que querem eternizar-se.
Até porque os cientistas têm muito de religiosos... quanto estão em causa os seus intocáveis dogmas.

2008-06-09

Os celíacos

Celíacos são as pessoas que sofrem de alergia ao glúten que entra na composição dos cereais.
Sabe-se que esta sensibilidade está relacionada com um antigene situado na região D do cromossoma 6. Trata-se, portanto, de uma doença genética. É até a mais comum na Europa (cerca de 1 em cada 300 pessoas), sendo rara entre os africanos e asiáticos.
Como o trigo que entra na composição da hóstia, levanta-se o problema da comunhão eucarística.
O problema surgiu de novo na diocese de Huelva quando não foi permitido a uma criança celíaca comungar com uma hóstia sem glúten, porque “as hóstias utilizadas comummente na celebração da Eucaristia estão fabricadas com farinha de trigo e, portanto, contêm glúten”. Entretanto, foi autorizada a comungar uma hóstia confeccionada na Alemanha com amido de trigo e um conteúdo quase imperceptível de glúten.
A diocese, entretanto, elaborou um documento que sugere aos celíacos duas formas de comunhão: “utilizando hóstias especiais, que contêm uma pequena quantidade de glúten de trigo, com o qual a matéria empregada é válida para a consagração eucarística, sem que prejudique a saúde dos celíacos – não são válidas as confeccionadas com milho; ou também sob a espécie do vinho”.
Perante isto, surgem-me algumas perguntas.
Que imagem de Deus, pessoal e amoroso, está ser transmitida? Deus vale pela quantidade de glúten? E em que quantidade? Não haverá um pecado de orgulho da parte dos responsáveis que querem “amarrar” Deus ao glúten? Por onde passa o amor infinito de Deus pelas suas criaturas?
Lembro-me de, quando fiz a primeira comunhão, uma menina começar a chorar convulsivamente porque tinha “tocado com a hóstia nos dentes” e tinha-nos sido dito que tal atitude era um “pecado gravíssimo”. Enquanto foi palavreado, não liguei nada. Mas perante aquele desespero da miúda lembro-me de ter pensado: "Será Deus assim tão mau!” E precisei de vários anos para me recompor. Só quando encontrei Jesus a sério e vi o que dizia do Pai, que é Amor, que é o Pai do filho pródigo, que é providência amorosa, que é Senhor da história, que quer que sejamos felizes já aqui, fiquei revoltado com aquela incrível “pastoral do medo” com que se fazia a evangelização e que tanta gente traumatizou. As maiores questões e dificuldades, pelas quais os meus colegas universitários me diziam ter abandonado e esquecido a Igreja, estavam relacionadas com os traumas gerados pela pastoral do medo: “vais para o inferno”; “ai de ti que peques; Deus está em todo lado, tudo vê e castiga-te”.
Só não abandonei a Igreja, porque percebi que, apesar de todos os seus pecados históricos e os seus truques pastorais e curiais, a Igreja deu-me a conhecer Jesus Cristo. Foi devido a este acontecimento estruturante e absolutamente marcante na minha vida, que eu “perdoo tudo” à Igreja… mas não sem refilar e lutar contra o que me parece incoerente.
Ao ler este episódio de Huelva, foi a minha primeira comunhão que me veio à memória com as suas circunstâncias traumatizantes.
Não estará a Igreja ainda muito marcado por esta mentalidade? Para a Igreja, Deus é mesmo Amor? E já agora outra “incoerência romana”: “sem Eucaristia, não há comunidade cristã” (PO 6); “a Eucaristia edifica a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia" (EE, 26). Se é assim, qual é mais importante é a existência da Eucaristia para todos ou o sexo ou o estado civil do presidente da assembleia litúrgica?
Não está a Igreja hierárquica, nestes e noutros casos, a absolutizar o acidental e a ignorar o essencial?
Talvez fosse bom os presidentes das congregações romanas meditarem seriamente a frase de Bento XVI que ontem aqui citei: No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa (Jesus Cristo), que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1).
Ou naquelas palavras do Concílio: “Os crentes podem ter tido parte não pequena na génese do ateísmo, na medida em que, pela negligência na educação da fé ou por exposições falaciosas da doutrina ou ainda por deficiências da sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião” (GS 19).

2008-06-08

A minha amiga Cândida

A Cândida casou-se ontem com o Maurice. É uma grande amiga minha pelo que foi com tristeza que não pude, por razões de saúde, participar neste momento tão significativo para eles. Mas fiquei muito feliz pelas conversas que tivemos na preparação e pelo que me foi relatado da cerimónia. Foi realmente uma festa muito bonita: uma celebração litúrgica toda carregada de simbolismo; o pedido aos amigos para que transformassem as habituais prendas num gesto de solidariedade para com instituições sociais e a oferta, que, por insistência dos familiares deram aos convidados, foi preparada numa instituição que cuida de mongolóides.
Portanto, uma celebração sacramental fora do habitual, que não só valorizou o símbolo, mas também quis destacar a dimensão social do sacramento, não esquecendo os que mais necessitados.
Porque não pude ir, mandei-lhes uma carta amiga, da qual os noivos quiseram que parte fosse lida na celebração. Aqui deixo esta passagem como homenagem à Cândida e ao Maurice:
Hoje é dia de festa para vós mas também para todos nós que temos o gozo de ser vossos amigos.
É uma festa humana, porque estamos entre irmãos da que deveria ser uma única família humana; é uma festa cristã, porque estamos entre crentes; é uma festa litúrgica, porque estamos entre aqueles que querem testemunhar publicamente a sua fé.
A Liturgia é o espaço por excelência do símbolo: mostrar por símbolos visíveis e inteligíveis o Invisível e o Ininteligível. É um exercício em que a estética justifica a ética e em que a criatividade valoriza o rito.
Apesar de não ser nada fácil, vós preparastes cuidadosamente uma celebração simbólica muito rica, dividindo-a em três gestos profundamente humanos e profundamente divinos, porque têm em comum a vivência do amor: acolher foi o grande gesto do Pai do filho pródigo; receber é o grande gesto que se espera da humanidade no acolhimento ao Deus que quis armar a sua tenda entre nós; partilhar é o sentido último da nossa vida.
Não quisestes partilhar apenas com os que estão aqui, mas também abraçar o mundo que está lá de fora. Para isso manifestastes junto dos amigos o desejo de que não houvesse prendas a não ser as da presença, da alegria e da amizade. Qualquer outra oferta, o ritual mais forte na sociedade de consumo, devia ser convertida num gesto de amor e solidariedade para com uma instituição que apoie pessoas em dificuldades.
Interpelados por esta vossa provocação tão evangélica, escolhemos as Criaditas dos Pobres, que dedicam toda a sua vida aos mais pobres dos pobres, e as Irmãs Adoradoras, que acolhem as mulheres mais marginalizadas pela nossa sociedade.
Este centrar-se no amor e na partilha é não só uma condenação profética de um consumismo imoral e alienante mas também uma forma diferente de manifestar o vosso ser cristão. Ser cristão é muito mais da ordem do estético, do encontro amoroso e gratuito com Deus e com os irmãos, do que da ordem do ético, do conjunto de normas e regulamentações muitas delas casuísticas. Sempre será uma ética mas como consequência de uma estética, como diz Bento XVI: “No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa (Jesus Cristo), que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1).
Que o nosso Deus, que é Amor oblativo, vos abençoe e vos acompanhe sempre em todos os momentos da vossa vida na fidelidade ao projecto a dois que agora assumistes publicamente.

2008-06-07

A crise volta dentro de momentos… mas não antes de 29 de Junho!?

Começa hoje o campeonato europeu de futebol.
Foi quase alienante o modo como a preparação da nossa equipa foi tratada pelas televisões. Tudo o resto parece ter passado para segundo plano. Mesmo as manifestações de centenas de milhares de pessoas contra o pacote laboral, o comício da Esquerda foram esquecidosperante esta euforia.
Os exageros estimulam a quase certeza da vitória final sem repararmos que temos uma equipa, que é ainda de transição, onde os grandes timoneiros deram lugar a gente muito talentosa mas nova e com alguma falta de calo.
Mas o futebol sem esta alienação seria futebol? E não será estimulante para quem vive em dificuldades ter o prazer de antever a vitória, de admirar uma defesa, de saborear o golo redentor?
Apesar das SADs, das corrupções, da falta de amor à camisola, resultado da dinheirização do futebol, ainda sobra para o adepto o que há de irracional, de emotivo, de quase religioso (não se fala tanto da mística clubística!?).
Que este seja um tempo de festa. Se não ganharmos, que ao menos tenhamos passado um bom bocado. A crise, entretanto, volta dentro de momentos, de preferência não antes do fim do mês.
Para que a festa seja a sério, aqui fica a receita: fazer como Jesus, nesta parábola de Antony de Mello, “Jesus e o futebol”:
Jesus disse que nunca tinha visto um jogo de futebol. Resolvemos, então, levá-lo a um, eu e alguns amigos. Foi um jogo renhido entre os Católicos, azuis, e os Protestantes, preto e branco.
O primeiro golo foi dos católicos, com grande alegria para Jesus que até atirou ao ar o seu chapéu. Mas, logo veio o golo dos Protestantes e Jesus teve a mesma reacção de entusiasmo e fez o mesmo gesto com o chapéu.
Isso deixou meio baralhado um dos muitos entusiastas que estava atrás de nós. Não resistiu a bater no ombro de Jesus e perguntar-lhe:
- Mas, afinal, você de que equipa é?
-Eu? - responde Jesus - de nenhuma; estou aqui para me divertir a ver o jogo.
O homem atrás de nós, então, disse ao vizinho:
- Olhe aí! Mais um ateu!
Ao sair do estádio, demos algumas dicas a Jesus a respeito da situação religiosa do mundo hodierno. Concluímos dizendo:
- Sabes, Senhor? As pessoas religiosas parecem pensar que Deus está sempre do lado delas contra as pessoas do outro lado.
- É assim mesmo, concordou Jesus; é por isso que Eu não apoio religiões; Eu apoio pessoas! As pessoas são mais importantes do que as religiões. O homem é mais importante do que o sábado.
- Cuidado, Jesus! Olha bem o que estás a
dizer! Lembra-te de que já foste crucificado uma vez por andar dizendo estas coisas...
- Sim, fui crucificado... e por pessoas religiosas - disse Jesus com um sorriso meio enigmático
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2008-06-06

Solidariedade e aumento dos preços alimentares

De acordo com as previsões de organismos internacionais, no decénio 2008-2017, a carne de vaca e de porco aumentará 20 % relativamente à década anterior (1988-2008), o milho e o trigo 40 a 60 % e a manteiga 60%. Para isto contribuem muitos factores, especialmente quatro deles estruturais: a subida do preço do petróleo, os biocombustíveis, a melhoria do nível de vida em economias emergentes como a chinesa ou a indiana e a especulação.
Hoje quero apenas referir o terceiro, o da melhoria do nível de vida de muitos milhões de chineses e indianos, que será o responsável pelo facto de, apesar de ter aumentado a produção de arroz, o seu preço ter subido o ano passado mais de 130%.
Chegou, pois, a altura de os que sempre puderam comer o que lhes apeteceu a preços moderados começarem a pagar para que milhões de esfomeados possam agora comer mais e melhor: arrancar centenas milhões de pessoas à fome e à miséria tem custos, mas custos que todos devíamos sentir orgulho e não uma inoportuna obrigação em suportar. Como proclamava João Paulo II: “De facto, não se trata apenas de "dar o supérfluo", mas de ajudar povos inteiros, que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo do desenvolvimento económico e humano. Isto será possível não só fazendo uso do supérfluo, que o nosso mundo produz em abundância, mas sobretudo alterando os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades” (CA 58).
Mas mesmo tendo de pagar mais, ainda estamos em grande vantagem. É que, segundo dados citados pela Reuters, enquanto um queniano, por exemplo, gasta metade do seu rendimento em alimentação, um alemão fica-se pelos 10%. E já nem falo do valor dos quantitativos em jogo.

2008-06-05

O medo ou a esperança

Há meio ano atrás, quase todos pensavam que Hillary Clinton, com todo o peso da família e da sua “capacidade e experiência” venceria facilmente as primárias.
Pelo meio, calmamente, intrometeu-se o desconhecido Obama, que, pouco a pouco se foi impondo e angariando apoios “inesperados”.
Muitas terão sido as causas, nomeadamente o discurso de mudança em que Obama sempre insistiu. Mas talvez o mais importante tenha sido apontado por Jonathan Alter que “escreveu na Newsweek que "todas as eleições americanas se podem resumir à escolha entre o factor medo e o factor esperança e que a vitória não depende apenas da qualidade dos concorrentes mas do estado de espírito do país. Hillary jogou no factor medo. Bill tinha sido o candidato from hope” (Teresa de Sousa).
Se assim foi, estão de parabéns os americanos, porque nenhuma sociedade se pode construir com base no medo; a esperança é que comanda a vida.
O futuro a curto prazo dará duas indicações preciosas: a capacidade de liderança de Obama que conta um partido partido ao meio e a qualidade moral e cívica de Hillary.
P.S. De qualquer modo, Obama já alcançou uma grande vitória por que é preto. Tal como Hillary se tivesse ganho, porque é mulher. Nisso, a jovem nação americana de pouco mais de 200 anos deu cartas à velha nação de quase 900 anos, que é Portugal: só na semana passada elegemos uma mukher para presidir a partido político

2008-06-04

Três dias na vida

Não sei quais os efeitos práticos em termos de prejuízos para as três principais “controleiras” da gasolina em Portugal nestes três dias de suposto boicote.
A campanha teve aspectos positivos: exercício de cidadania, pressão sobre as empresas, chamada de atenção para uma realidade que todos já sentem na pele mas não sabem muito bem o que fazer.
Mas tinha um aspecto bem negativo: deixava como alternativa meter gasolina noutras companhias. Isto é, apenas pretendia castigar aquelas três, em vez de propor que ficássemos três dias sem meter gasolina em lado nenhum.
As respostas que ouvi nalgumas reportagens são também significativas: para lá de um ou outro que por opção se recusava a meter (naquelas empresas) havia quem respondesse: “Hoje está um dia porreiro para dar uma volta”; “Sabe… pelo comodismo ara me deslocar…” Etc.
Ora a questão de fundo é mesmo esta. Não queremos prescindir dos nossos comodismos. E não há alternativas. O preço do petróleo nunca voltará aos preços antigos. Não é justo chatear os governos para alimentar preços artificiais. Temos mesmo é que mudar de viva. E a primeira e mais fácil é utilizar transportes colectivos e, para pequenas distâncias, andar a pé, o que só faz bem à saúde e à bolsa.
Claro que isto implica medidas quase radicais na melhoria dos transportes públicos (embora mesmo os que funcionam bem só agora comecem a ter mais alguns clientes).
Mas o problema está na nossa cabeça ou no nosso coração. E ainda não percebemos a contradição de querermos viver num mundo fundamentalmente construído na base do petróleo sem sofrer as suas consequências nefastas.
Por exemplo, já pensámos no que este nosso estilo de vida influencia as alterações climáticas – estações do ano subvertidas, excessos de chuvas e de tempo de seca, … - ou no aquecimento global?
Por exemplo, já pensámos que a guerra do Iraque tinha pouco a ver com de bombas de destruição maciça ou com o Saddam Hussain, mas muito mais com a necessidade que os Estados Unidos sentiam de controlar as zonas ricas do petróleo, um bem que eles bem sabem que vai começar a escassear ou a atingir preços incomportáveis?
Mudar de vida para mudar a qualidade de vida é a única alternativa válida.
Doloroso? Muito. Mas não temos grandes escolhas!

2008-06-03

Índios ameaçados

Foram agora divulgadas fotografias de um pequeno grupo de índios, perdidos na imensidão da floresta a amazónia. Vivendo até agora sem a presença predadora dos brancos, parece que estão condenado pela ganância dos madeireiros, mineiros e até arrozeiros. É conhecida a luta que a FUNAI, o organismo brasileiro responsável pela protecção dos indígenas, vem mantendo com estes gananciosos. Neste caso, as coisas parecem complicar-se porque não tendo estes índios a noção das fronteiras e precisando de muito espaço para se deslocar, com facilidade entram no Peru onde não há o mesmo cuidado com a sua protecção.
Àqueles que apenas estão preocupados com os seus lucros, mesmo que isso signifique a matança de centenas de índios, que por não estarem integrados na civilização actual não são menos pessoas e irmãos nossos e não têm menos direito a viver com a sua qualidade de vida que os seus perseguidores, continua a aplicar-se a famosa passagem de Antonio de Montesinos, no seu sermão do quarto domingo do Advento de 1511 (21.Dez.):
Todos vós estais em pecado mortal. Nele viveis e nele morrereis, devido à crueldade e tiranias que usais com estas gentes inocentes. Dizei-me, com que direito e baseados em que justiça, mantendes em tão cruel e horrível servidão os índios? Com que autoridade fizestes estas detestáveis guerras a estes povos que estavam nas suas terras mansas e pacíficas e tão numerosas e os consumistes com mortes e destruições inauditas? Como os tendes tão oprimidos e fatigados, sem lhes dar de comer e os curar das suas enfermidades? Os excessivos trabalhos, que lhes impondes, fazem-nos morrer ou, melhor dizendo, vós os matais para poder arrancar e adquirir ouro cada dia... Não são eles acaso homens? Não tem almas racionais? Vós não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Será que não entendeis isso? Não o podeis sentir?

2008-06-02

Leigos, animadores de comunidades

Há quinze dias a assembleia do clero da diocese de Coimbra propôs como uma das prioridades pastorais dos próximos anos a formação de leigos animadores das comunidades.
Esta restrição a leigos animadores de comunidades levanta-me algumas questões, de que refiro duas.
Primeira: E os outros leigos não merecem igual esforço pastoral? Não são os leigos primariamente chamados a dar testemunho de Jesus Cristo no meio do mundo: “por vocação própria compete aos leigos procurar o Reino de Deus, tratando das realidades e ordenando-as segundo Deus” (LG 31)? E que formação específica lhes tem sido dada para esta sua missão? Como pode evangelizar-se hoje se os leigos não forem eles os evangelizadores nos locais onde vivem e trabalham: “os leigos são especialmente chamados a tornarem a Igreja presente e activa naqueles locais e circunstâncias em que só por meio deles ela pode ser sal da terra” (LG 33)? Não é difícil verificar quais são os locais onde só por meio dos leigos a Igreja pode estar presente e activa.
Segunda: Qual a razão por que devem apenas formar-se leigos para a animar as comunidades? A resposta que logo salta à vista, o que não significa que seja a verdadeira, é que como os padres são cada vez menos, então vamos socorrer-nos dos leigos. Portanto, no fundo não seriam razões teológicas ou eclesiológicas, decorrentes da comum consagração baptismal, mas uma mera razão instrumental. O que é uma perspectiva bem pobrezinha de olhar os leigos e indicativa da importância que o clero lhes atribui.

2008-06-01

As crianças também têm direitos

É muito habitual os adultos pensarem as crianças com objecto das suas decisões e não como sujeitos da sua história. Foram milénios de hábitos de protecção, ditados pelas suas limitações e pelo carinho dos pais. Dizem os evolucionistas que foi esse longo período de cuidados maternos/paternos, muito maior que o de qualquer outro animal, que nos preparou para sermos uma espécie especial no mundo dos seres vivos.
Os tempos foram passando e as crianças passaram por vicissitudes variadas e muitas até pouco humanas: moeda de troca, força de trabalho, exploração sexual, tráfico de órgãos, etc.. Mas a maioria, pelo menos em países desenvolvidos, tem tido muito amor dos pais, às vezes um amor doentio, porque obsessivo, outras um amor por interpostas prendas, mas a maioria vive num clima afectivo saudável.
No Dia da Criança pensa-se em várias coisas até na baixa de natalidade. Mas poucos nos lembramos que em 20.Nov.1959, a ONU aprovou uma Declaração Universal dos Direitos da Criança e que 30 anos depois (20.Nov.1989) aprovou uma Convenção dos Direitos da Criança, que foi ratificada por todos os países, excepto pela Somália e os Estados Unidos (!!!). Portugal ratificou-a a 21.Set.1990.
O grande traço de união é o interesse da criança. E manifestamente pelas exemplares decisões de alguns dos nossos juízes e juízas esse objectivo primeiro parece não ter sido foi interiorizado por muitos aplicadores da lei. Mas o esquecimento não se cinge aos julgamentos mais mediáticos, pois, como lembra o Notícias magazine, “entre 2005 e 2008, a CDC (Convenção dos Direitos da Criança) foi referida apenas seis vezes em quase cinco mil acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e cinco vezes em cerca de 2 500 acórdãos do Tribunal Constitucional”. Trata-se de crianças, claro!!!
Mas dos 54 artigos da CDC, gostaria de destacar o artigo 31º, o que lhes garante o direito a brincar: “Os Estados Partes reconhecem à criança o direito ao repouso e aos tempos livres, o direito de participar em jogos e actividades recreativas próprias da sua idade e de participar livremente na vida cultural e artística”.
Hoje basta olhar para o aproveitamento mercantilista de todos os espaços livres pelas nossas câmaras, sem espaços abertos, campos para correr e saltar, andar de bicicleta, sem espaços verdes onde não haja uma tabuleta a dizer "é proibido jogar a bola". Alguma coisa está a mudar, mas a passo de caracol.
Basta olhar também para a plena ocupação das crianças com aulas de inglês, de balet, de música, de explicações.
Muito mais feliz foi a meninice de outros tempos, durante a qual passávamos o tempo a “correr o ferrolho”, isto é, a andar o dia todo fora de casa a correr as ruas da aldeia e os campos vizinhos, a ir aos ninhos, a trepar às árvores, a esfolar os joelhos, a sujarmo-nos nas poças de água, a atirar com a fisga aos pássaros, a jogar às escondidas, a desligar pelas encostas abaixo rompendo os fundilhos dos calções, a cravar alguma comida em casa dos vizinhos e até a construir, sob vigilância dos mais velhos, os nossos próprios brinquedos. Nesse tempo, vivia-se, sem declarações da ONU, o direito a brincar. É certo que durava pouco pois logo começava o tempo de trabalho: ir com as cabras, depois ir ás pinhas, depois ir ao mato, depois trabalhar no campo.
Hoje vive-se muito melhor, mas há aspectos que andaram para trás. O direito das crianças a brincar foi um deles.