divórcio ou casamento eterno?...

2008-07-31

Sociedade plural e democrática

Houve tempos, longos tempos na história em que as sociedades eram muito hierarquizadas, muito “arrumadinhas”, com cada um no seu lugar, uma espécie de “cada macaco no seu galho”. Só em casos excepcionais, geralmente feitos de guerra, podia haver alguma mobilidade entre as várias “castas”.
Mas a a humanidade foi evoluindo e percebendo, também do ponto de vida prático, que todos eram iguais: todos, isto é, primeiros os homens com posses, depois os outros homens e finalmente as mulheres, que parecem condenadas a ocupar sempre a última carruagem da história. Esperemos que brevemente a história passe a ter só uma carruagem!
Ao passar a sermos todos iguais em direitos e deveres, uma das consequências é que cada um tem a liberdade de pensar e de agir de acordo com critérios diferentes, já que neste mundo não há absolutos. E talvez sejam os crentes os únicos que admitem um único absoluto: Deus.
O facto de cada um ter mundividências diferentes, leva-o a comportamentos diferentes, que só são legítimos desde que não ponham em causa o bem comum e a ordem pública. Nem sempre é fácil e nada como o caso do véu muçulmano em França para o demonstrar.
Mas deixando de lado estes “pequenos episódios”, há dois aspectos que gostaria de referir: o modo como cada um vê o outro e o modo como cada um olha a sociedade.
Vou tendo a sensação de que, de um modo geral, estamos a deteriorar a nossa imagem do outro, no qual vemos muito mais um rival perigoso dos nossos interesses do que um companheiro igualmente interessado num mundo mais justo e humano. Olhamos o imigrante como uma ameaça, não só por que vem ocupar-nos postos de trabalho e aumentar a instabilidade social, mas porque pode introduzir valores que podem conflituar com os nossos. Basta pensar nas últimas directrizes europeias sobre imigração a que muitos não hesitaram em chamara “a directriz da vergonha”. No nosso país encaixotamos os “outros” – ciganos, africanos – numa qualquer “Quinta da Fonte”, sem um esquema coerente de integração, baseados na política ateia de “seja o que Deus quiser”.
Não não são apenas os “outros”, pois também olhamos mesmo os “cidadãos como nós” mais como competidores perigosos que nos podem ocupar um lugar no mercado de trabalho, no acesso à universidade, nas listas de espera dos hospitais. É como se se tratasse de alguém de quem devo defender-me e vencer, a qualquer preço, nesta sociedade que não oferece saída para todos.
No fundo, quem é o outro para mim? Um inimigo abater? Um rival a desviar do meu caminho? Um companheiro de caminhada sem o contributo do qual a sociedade será sempre mais pobre?
É certo que ninguém, enquanto cidadão, tem a obrigação de amar os seus concidadãos. Essa obrigação advém-lhe das suas convicções religiosas ou ideológicas. Só as religiões e equivalentes são éticas de máximos e só elas podem obrigar a amar o outro. As sociedades baseiam-se na justiça que “apenas” obriga cada cidadão a respeitar o outro, por si só ou como membro de um grupo, a promover os seus direitos inalienáveis e a tomar como critério de convivialidade a dignidade inalienável de cada pessoa, cada grupo e cada povo. Uma sociedade justa é aquela que dá igual espaço a cada cidadão, lhe dá iguais oportunidades e distribuiu com equidade e proporcionalidade os seus bens e dons.
Uma sociedade justa não obriga amar os outros, mas obriga a aceitá-los na sua plenitude de pessoa e de cidadão, na defesa, promoção e respeito pelos seus direitos fundamentais.
Certamente que aqui as religiões têm um papel fundamental, não para imporem a suas propostas mas para contribuírem com elas para uma base comum de convívio, de fraternidade e de solidariedade. Nem sempre este exercício é fácil de alcançar. Sobretudo quando séculos de história apontaram noutro sentido.

2008-07-30

Construção de um mundo melhor

É evidente que a luta obrigatória pela justiça tem como primeiro significado colaborar na construção de um mundo mais à medida da pessoa.
Mas antes, sobretudo para os cristãos, é importante desmontar alguns preconceitos e mudar algumas atitudes.
Como resultado de uma catequese muito marcada por um tom pessimista relativamente ao mundo, há conceitos a superar e há a atitudes novas a assumir.
Este pessimismo, que ainda marca muitos cristãos, esquece que foi Deus que criou o mundo e que ao criá-lo viu que era bom. Há pois uma bondade natural do mundo, que o pecado veio manchar mas não apagar.
O mundo não é o" inimigo da alma", como durante tantos anos se ensinou na catequese, mas é o local onde acontece a salvação de Jesus Cristo e “onde permanece o mistério do próprio homem, o qual se descobre filho de Deus, no decurso de um processo histórico e psicológico em que lutam e se alternam violências e liberdade, peso do pecado e sopro do Espírito” (OA 37).
Por outro lado, a ordem existente, porque marcada pelo pecado, não é a ordem querida por Deus. Por isso João Paulo II falou de “estruturas de pecado” (SRS 36) e de “mecanismos perversos” (SRS 16) que é preciso combater. E este combate é muito difícil porque as estruturas de pecado – todas as situações e instituições que não oprimem a pessoa e evitam o seu desenvolvimento autêntico – embora sejam criação do homem, rapidamente se autonomizam e escapam ao controlo humano.
Esta ambiguidade do mundo, associada a um estilo de intervenção pouco estimulante dos políticos em geral, muitos deles, deve-se dizer, cristãos ou pelo menos de formação cristão, afasta os cristãos deste compromisso que decorre do seu próprio baptismo. Por isso, João Paulo II verberou tão violentamente esta falta grave de “compromisso político” que nada justifica: “Todos e cada um têm o direito e o dever de participar na política, embora em diversidade e complementaridade de formas, níveis, funções e responsabilidades. As acusações de arrivismo, idolatria de poder, egoísmo e corrupção que muitas vezes são dirigidas aos homens do governo, do parlamento, da classe dominante ou partido político, bem como a opinião muito difusa de que a política é um lugar de necessário perigo moral, não justificam minimamente nem o cepticismo nem o absentismo dos cristãos pela coisa pública” (ChL 42).
Paulo VI deixou-nos desafios irrenunciáveis especialmente aos leigos.

Encargo pelo futuro colectivo
Construir a cidade, lugar de existência dos homens e das suas comunidades ampliadas, criar novos modos de vizinhança e de relações, descortinar uma aplicação original da justiça social, assumir, enfim, o encargo deste futuro colectivo que se preanuncia difícil é uma tarefa em que os cristãos devem participar. A esses homens, amontoados numa promiscuidade urbana que se torna intolerável, é necessário levar uma mensagem de esperança, mediante uma fraternidade vivida e uma justiça concreta (OA 12).

Responsabilidade individual
Seria bom que cada um procurasse examinar-se para ver o que é que já fez até agora e aquilo que deveria fazer. Não basta recordar os princípios, afirmar as intenções, fazer notar as injustiças gritantes e proferir denúncias proféticas; estas palavras ficarão sem efeito real se não forem acompanhadas, para cada um em particular, de uma tomada de consciência mais viva da sua própria responsabilidade e de uma acção efectiva. É por demais fácil alijar sobre os outros a responsabilidade das injustiças se se não dá conta ao mesmo tempo de como se tem parte nelas e de como a conversão pessoal é algo necessário, primeiro que tudo o mais (OA 48).

Pluralismo de opções
Nas diferentes situações concretas e tendo presentes as solidariedades vividas por cada um, é necessário reconhecer uma variedade legítima de opções possíveis. Uma mesma fé cristã pode levar a assumir compromissos diferentes. A Igreja convida todos os cristãos para uma dupla tarefa de animação e de inovação, a fim de fazerem evoluir as estruturas para as adaptarem às verdadeiras necessidades actuais (OA 50)

2008-07-29

Luta pela justiça

É bem conhecida aquele ditado de que a quem tem fome deve dar-se um peixe. Mas o melhor é dar-lhe uma cana e ensiná-lo a pescar. A primeira fase é de mera assistência e ainda há muita gente presa a esta fase. A segunda acarreta a ideia de autonomia e desenvolvimento, sem os quais a pessoa nunca poderá ser pessoa em plenitude. E muitas instituições estão já preocupadas também com esta segunda fase, mesmo que nem sempre possam por si só resolvê-las.
Contudo, na minha opinião, falta uma terceira dimensão: é preciso não deixar poluir o rio, pois se não houver peixe de que vale a cana e o saber pescar? Ora esta terceira dimensão implica uma adequada organização social, implica a luta pela justiça.
Para enquadrar eclesialmente esta questão, é bom recordar que a missão da Igreja assenta em três funções igualmente estruturantes: profética (catequese), sacerdotal (liturgia) e real (serviço fraterno). Esta última dimensão, que as comunidades cristãs geralmente ignoram, divide-se na minha opinião em duas vertentes: uma, de apoio imediato à pessoa, a que vulgarmente se chama acção sócio-caritativa; outra, de apoio indirecto à pessoa através de uma adequada organização social, que podemos chamar compromisso sócio-político. Em qualquer caso, a pessoa é sempre o objectivo último; simplesmente os caminhos e os métodos são necessariamente diferentes nos dois casos. Gosto especialmente da terminologia dos bispos espanhóis: à primeira chamam a diakonia (serviço) da caridade; à segunda, promoção da justiça.
É assim que a luta pela justiça assume também na Igreja um papel estruturante. Aqui, e em jeito de parêntesis, devo dizer que não me revejo de todo na reflexão que Bento XVI fez sobre a justiça na sua encíclica Deus é caridade, nomeadamente no nº 28.
Seja como seja, a luta pela justiça envolve pelo menos duas dimensões eclesiológicas fortes. Vou apenas lembrá-las, recordando duas passagens de documentos oficiais da Igreja, que os cristãos em geral não conhecerão, mas também talvez não queiram saber.
No documento final do Sínodo dos Bispos de 1971 lê-se: “A acção pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, isto é, da missão da Igreja em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as situações de opressão” (JM 6).
Bento XVI não fez esta citação nem sequer chamou a atenção para ela.
Mas a conclusão evidente que daqui se tira é que não há uma evangelização autêntica sem uma assumida luta pela justiça. Aliás esta ideia é reforçada no mesmo documento um pouco mais à frente: “A missão de pregar o Evangelho requer, nos tempos que correm, que nos comprometamos, em ordem à libertação integral do homem, já desde agora, na sua existência terrena. Se, efectivamente, a mensagem cristã sobre o amor e a justiça não mostra a sua eficácia na acção pela justiça no mundo, muito dificilmente ela será aceitável para os homens do nosso tempo” (JM 36).
Na Mensagem do Sínodo de 1987 pode ler-se: “Somos todos chamados a ser santos como o Pai que está no Céu, segundo a nossa vocação específica… O Espírito faz-nos descobrir, cada vez com mais clareza, que a santidade não é hoje possível sem o compromisso com a justiça e sem a solidariedade com os pobres e oprimidos. O modelo de santidade dos fiéis leigos deve integrar a dimensão social da transformação do mundo segundo o plano de Deus” (4).
Também aqui a conclusão é clara: hoje não se pode ser santo sem o compromisso com a justiça e sem a solidariedade com os pobres e oprimidos.
A Igreja, como um todo, e cada uma das suas comunidades e dos seus membros estão a atraiçoar o Evangelho sempre que não se empenharem seriamente numa luta constante pela justiça, ou seja, “em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as situações de opressão”.

2008-07-28

Opção pelos pobres – Critérios práticos

O Concílio, depois de deixar claro que “toda a actividade apostólica deve fluir e receber a força da caridade”, recorda que “algumas obras, porém, prestam-se, por sua própria natureza, a tornarem-se viva expressão dessa caridade. Cristo quis que elas fossem sinais da sua missão messiânica” (AA 8).
Por isso, no exercício dessas obras, o próprio Concílio define critérios exigentes que nem sempre são tidos em conta no exercício da caridade para com os mais necessitados: “Para que este exercício da caridade seja e apareça acima de toda a suspeita, considere-se no próximo a imagem de Deus, para o qual foi criado; veja-se nele a Cristo, a quem se oferece tudo o que ao indigente se dá; atenda-se com grande delicadeza à liberdade e dignidade da pessoa que recebe o auxílio; não se deixe manchar a pureza de intenção com qualquer busca do próprio interesse ou desejo de domínio; satisfaçam-se antes de mais as exigências da justiça e não se ofereça como dom da caridade aquilo que já é devido a título de justiça; suprimam-se as causas dos males, e não apenas os seus efeitos; e de tal modo se preste a ajuda que os que a recebem se libertem a pouco e pouco da dependência alheia e se bastem a si mesmos” (AA 8).
Bento XVI, na sua primeira encíclica (DCE: Deus caritas est), quis também ele explicitar, no nº 31, esses critérios tendo em conta os tempos e a prática de hoje, sempre a partir de que a actividade caritativa da Igreja nunca pode resumir-se a uma simples obra assistencial: “É muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o seu esplendor e não se dissolva na organização assistencial comum, tornando-se uma simples variante da mesma” e logo a seguir pergunta: “Mas, então quais são os elementos constitutivos que formam a essência da caridade cristã e eclesial?
O Papa enumera cinco normas.
1) A dimensão assistencial, que não sendo a única, é sempre necessária no nosso mundo: “Segundo o modelo oferecido pela parábola do bom Samaritano, a caridade cristã é, em primeiro lugar, simplesmente a resposta àquilo que, numa determinada situação, constitui a necessidade imediata: os famintos devem ser saciados, os nus vestidos, os doentes tratados para se curarem, os presos visitados, etc.”.
2) A competência profissional, tantas vezes esquecida; muita gente pensa que basta a boa vontade, mas os problemas de hoje são por vezes demasiados complexos para os deixar ao simples voluntarismo, por muito bem intencionadas que sejam as pessoas: “Requer-se antes de mais a competência profissional: os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam fazer a coisa justa de modo justo, assumindo também o compromisso de continuar o tratamento”. 3) Mas não basta ser competente na matéria; é preciso ser perito em humanidade, saber ver e trabalhar com o coração. A melhor técnica pode ser fria; só o amor dá calor humano: “A competência profissional é uma primeira e fundamental necessidade, mas por si só não basta. É que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um tratamento apenas tecnicamente correcto: têm necessidade de humanidade, precisam da atenção do coração. Todos os que trabalham nas instituições caritativas da Igreja devem distinguir-se pelo facto de que não se limitam a executar habilidosamente a acção conveniente naquele momento, mas dedicam-se ao outro com as atenções sugeridas pelo coração, de modo que ele sinta a sua riqueza de humanidade. Por isso, para tais agentes, além da preparação profissional, requer-se também e sobretudo a «formação do coração».
4) Não deve estar dependente de governos e partidos: “A actividade caritativa cristã deve ser independente de partidos e ideologias. Não é um meio para mudar o mundo de maneira ideológica, nem está ao serviço de estratégias mundanas, mas é a actualização aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem necessidade”.
5) E sobretudo deve ser desinteressada. Não deve fazer-se para converter alguém ao cristianismo ou para exigir serviços pessoais que a pessoa pode ter dificuldade em recusar, porque o amor autêntico é sempre um amor gratuito: “Além disso, a caridade não deve ser um meio em função daquilo que hoje é indicado como proselitismo. O amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins”.

2008-07-27

Opção pelos pobres: Dificuldades

João Paulo II (SRS 42) explicou o que se deve entender por opção pelos pobres: é uma opção preferencial e não exclusiva, firme e irrevogável, baseada na Palavra de Deus e não em critérios políticos ou sociológicos. E traçou os seus conteúdos: é uma forma especial de primazia no exercício da caridade cristã; refere-se à vida do cristão enquanto imitação da vida de Cristo; aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais, isto é, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar quanto à propriedade e uso dos bens. Finalmente definiu o seu âmbito: as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem tecto, sem assistência médica e os sem esperança de um futuro melhor.
Nem sempre é fácil cumprir estes critérios, atendendo a que as comunidades cristãs, como referi, são muitas, têm muita gente, como mundividências naturalmente diferentes, embora se espere que saibam sempre dar prioridade à dignidade da pessoa necessitada.
As instituições cristãs de solidariedade correm o risco de nem sempre estarem efectivamente ao serviço dos pobres.
Uma primeira dificuldade é que, nalguns casos, parecem mais preocupadas em reger-se pela lógica de mercado do que da solidariedade. É evidente que ninguém pode servir se não tiver condições económicas para isso. E aqui a questão que se coloca é: onde está o apoio da comunidade cristã? A comunidade sente como sua aquela obra? Se não, como podem elas dar testemunho evangélico no apoio e acolhimento dos mais necessitados.
Uma segunda vem do perigo da burocracia, que pode levar, sem dar por isso a uma crescente desumanização, de que se queixava D. José Policarpo: “Dentro da Igreja estou igualmente preocupado com a demasiada profissionalização da parte assistencial: são grandes estruturas, com regras técnicas, com mecanismos estereotipados, com máquinas administrativas muito pesadas, onde, às tantas, a vertente do voluntariado não é realçada. Ele ainda existe e favorecemo-lo, mas é certo que passámos de uma fase, em que tudo era feito fundamentalmente a partir do voluntariado, para uma fase de aperfeiçoamento técnico na prestação de serviços sociais. O equilíbrio entre ambos tem de se manter. E o voluntariado é um potencial enorme para resolver este tipo de situações sociais”.
Uma terceira é que a de poder ficar-se por um mero exercício assistencial. Eu sei que hoje a maior parte das instituições superaram ou estão em vias de superar esta tentação. Mas o exercício não é fácil e é necessário estar-se muito atento. As palavras de Bento XVI são certamente muito animadoras: “A natureza íntima da Igreja exprime-se num tríplice dever: anúncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria), celebração dos Sacramentos (leiturgia), serviço da caridade (diakonia). São deveres que se reclamam mutuamente, não podendo um ser separado dos outros. Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de actividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência (DCE 25).
Daqui decorre uma outra dificuldade, muita real e presente nas comunidades cristãs: perceber que o agente principal de toda esta actividade é a própria comunidade e não os seus grupos, por muitos e bem organizados que eles sejam. Não se trata de ter na paróquia um grupo dedicado esta nobre tarefa, mas de ser toda a comunidade a sentir-se a primeira responsável por esse trabalho. Os nossos Bispos são muito claros nesta denúncia: “O agente principal é, sem dúvida, a comunidade cristã. Se a comunidade cristã, enquanto tal, não se envolve de forma participativa e corresponsável na concretização da pastoral social, jamais se passará do patamar das “acções pontuais” para o testemunho de uma Igreja realmente comprometida com Jesus Cristo e, por isso mesmo, “perita em humanidade”, capaz de tornar visível o Evangelho e de construir na caridade o mundo novo da justiça e da santidade que é o Reino de Deus”.

2008-07-25

Opção pelos pobres: Prática

Não tenho quaisquer dúvidas de que a Igreja, através das suas instituições de solidariedade sociais, é a que mais gente necessitada apoia. Ouvi isto a muita gente não crente e até em reuniões oficiais.
Sei que a Conferência episcopal prepara um inquérito que pode quantificar esta afirmação. E penso que é muito útil termos esses dados. Bem sei que os cristãos foram durante muito tempo educados para cumprir a passagem evangélica: “Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita” (Mt 6,3). E, no entanto, ainda antes aparece uma outra afirmação não menos importante: “Não se acende uma cadeia para colocar debaixo do alqueire mas sobre o candelabro e assim alumiar quantos estão em casa. Do mesmo modo brilhe a vossa luz diante dos homens, a fim de que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos céus ” (Mt 5,15-16).
Numa sociedade, mais pronta a noticiar as acções menos dignas do ser humano, era bom não perder de vista este último desafio evangélico. Até porque tal como o mal se “pega”, também o bem se “pega” se for igualmente publicitado.
Contudo, a opção pelos pobres, como referi ontem, não é uma “”obrigação” de um grupo ou de um conjunto de pessoas, mas faz parte da estrutura e da natureza da Igreja. Portanto não se esgota na atenção aos mais carenciados. Tem repercussões fundas no comportamento da própria Igreja.
Isto é, a opção pelos pobres tem inevitáveis consequências eclesiológicas e, portanto, deve reflectir-se nas estruturas e na vida da Igreja. Não se trata de uma mera declaração de intenções. Por exemplo, há que perguntar qual o papel e a função social que a Igreja e os próprios cristãos exercem na sociedade. E, poderia colocar, como muitos outros, algumas questões:
- O acento tónico põe-se na conservação ou na transformação da ordem social? E que tipo de transformação?
- Insiste nos problemas estruturais que criam a injustiça na ordem nacional ou internacional ou, pelo contrário, a sua preocupação centra-se no âmbito do privado, individual ou familiar?
- Destaca o carácter escatológico e peregrino da Igreja (LG 48) para, a partir dessa perspectiva, abordar os conflitos e as tensões sociais, fazendo uma adequada leitura dos sinais dos tempos, ou, pelo contrário, passa ao lado das tensões, como se elas não existissem?
- A prioridade vai para a relação Igreja-Mundo e para a teologia da missão ou, pelo contrário, a comunidade cristã fecha-se e concentra-se nos seus problemas internos?

Estas e outras questões análogas resultam das exigências de uma verdadeira opção pelos pobres que implicam um novo estilo de vida, quer das pessoas quer das comunidades, que deve passa por:
- um modo novo de olhar as coisas: olhar a história e os acontecimentos a partir do pobre dá uma perspectiva muito diferente da que se obtém quando nos colocamos na posição do rico e do poderoso;
- um modo diferente de ver os pobres: não como um fardo (CA 58) ou "importuno maçador" (CA 28c), mas como um irmão em Cristo e como um (potencial) cidadão também responsável pela construção da sociedade e do futuro;
- uma maneira nova de viver: criando novos estilos de vida e de modelos de produção, de consumo e de poder (CA 36b) e sacrificando "as situações de lucro e de poder e os (actuais) estilos de vida" (CA 52b.c).
Como se vê a opção pelos pobres não é um mero acidente mas uma maneira de ser Igreja e de ser cristão.

2008-07-24

Opção prioritários pelos pobres: Fundamentos

Quero começar por dizer que a praticamente todos os autores que li sobre a opção pelos pobres colocam-na como uma consequência de outros princípios ou valores. Eu discordo absolutamente pois considero que esta é uma característica estruturante do ser Igreja e do ser cristão.
Só encontrei um teólogo que tem uma opinião diferente dessa esmagadora maioria: “A opção pelos pobres não significa um processo exclusivamente pastoral, de extensão da Igreja a mais um novo campo de evangelização, mas significa fundamentalmente um processo interno de mudança radical e de conversão profunda da Igreja na sua totalidade. A opção pelos pobres não é para a Igreja uma opção acidental, preferencial ou privilegiada, mas uma opção constitutiva, estrutural e essencial” (P. Richard)
Os meus principais argumentos são os seguintes.

É a opção do nosso Deus
Faz parte da essência do nosso Deus preferir os pobres: o nosso Deus não é neutro; intervém na história em favor dos mais desprotegidos, ouve-os e castiga quem os oprime, como mostra o AT. Deus, na sua primeira apresentação, define-se como libertador: ouve o clamor dos oprimidos, toma a sua defesa contra o faraó opressor e decide comprometer-se para libertar os oprimidos: «Porque conheço as suas (do meu povo) angústias, decidi libertá-lo da mão dos egípcios, para fazê-lo subir a uma terra onde corre leite e mel» (Ex 3,7-8). Os Profetas e os Salmos estão continuamente a apresentar Deus como o defensor dos pobres: da viúva, do órfão e do estrangeiro.

É a opção de Jesus Cristo
Jesus Cristo veio para anunciar a Boa Nova aos pobres (Lc 4,18-21) e até se identificou com eles (Mt 25,40.45). Introduz até perspectivas radicalmente diferentes das do mundo: seremos julgados pelo modo como tratarmos os mais pobres (Mt 25,40); veio para todos (Lc 4,18ss), mas coloca-se prioritariamente do lado dos excluídos: mulheres, pecadores, publicanos, leprosos.

O pobre como lugar teológico
O pobre é um dos “lugares” onde Deus está realmente presente. Bento XVI diz isso de um modo tão simples como profundo: “Amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus” (DCE, 15).

É uma exigência estrutural de qualquer sociedade
Por muito evoluídas que sejam as sociedades, por muito que os serviços e variados apoios sociais se multipliquem e actualizem, sempre haverá situações de carência a exigirem das comunidades cristãs o exercício da opção pelos mais pobres (ChL 41).
Evangelizar os pobres hoje não pode resumir-se a apresentar-lhes a Boa Nova da salvação, mas também a anunciar e sobretudo a realizar a justiça divina que o Evangelho proclama e que está prometida não apenas para um futuro longínquo, fora da história, na plenitude do Reino de Deus, mas para o hoje concreto em que somos chamados a testemunhar e a proclamar a salvação.

É o critério último para entrar no Reino de Deus
“Quando vier o Filho do homem… todos os povos estarão reunidos e separados… Então dirá aos da sua direita: “Vinde benditos de meu Pai, entrai na posse do Reino que vos está preparado… Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e deste-me de beber, era peregrino e hospedastes-me, andava nu e vestistes-me, estava doente e visitastes-me, estava no cárcere e fostes ver-me”… E quando é que fizemos isso?... E o Rei responder-lhes-á: “Em verdade vos digo que tudo o que fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos foi a Mim que o fizestes” (Mt 25,31-32.34-37. 40).

2008-07-23

O Homem é o caminho da Igreja

Ninguém é mais defensor da dignidade da pessoa que a doutrina bíblica e a da Igreja. Logo nas primeiras páginas, Deus cria o ser humano à sua imagem e semelhança (Gn 1,27). No Evangelho, Jesus proclama que “o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2, 27). Várias vezes se repete que Deus não faz acepção de pessoas.
João Paulo II fez dessa doutrina uma doutrina basilar da prática da Igreja. O Homem é o caminho da Igreja: o homem e a mulher não abstracto mas concreto nas suas circunstâncias específicas.
Cada homem, em toda a sua singular realidade do ser e do agir, da inteligência e da vontade, da consciência e do coração. O homem na sua singular realidade (porque é "pessoa") tem uma história da própria vida e, sobretudo, da própria alma. Segundo a abertura interior do seu espírito, e tendo em conta tantas e tão diversas necessidades do seu corpo e existência temporal, o homem escreve a sua história pessoal, através de numerosos laços, contactos, situações e estruturas sociais, que o unem aos outros homens, a partir do primeiro momento da sua existência sobre a terra, desde o momento da sua concepção e do seu nascimento. O homem, na plena verdade da sua existência, ser pessoal e ser comunitário e social - no âmbito da própria família, da sociedade, de circunstâncias bem diversas, no âmbito da própria nação ou povo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo), enfim no âmbito da humanidade inteira - este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão: ele é o primeiro e fundamental caminho da Igreja, caminho traçado pelo próprio Cristo e que imutavelmente o conduz através do mistério da Incarnação e da Redenção (RH 14).
Por isso, ele definiu como “tarefa essencial, central e unificadora da Igreja descobrir e ajudar a descobrir a dignidade inviolável de cada pessoa humana” (ChL 37). São três adjectivos muito fortes: essencial, pertence ao seu núcleo estruturante; central, deve estar no centro das suas preocupações; unificador, deve ser o pirmiero critério e presidir à elaboração e planificação de toda a acção pastoral.
E estabeleceu, como sinal específico para que essa tarefa fosse eficazmente cumprida e exercida, a luta incessante e permanente pelos direitos humanos: O reconhecimento efectivo da dignidade pessoal de cada ser humano exige o respeito, a defesa e a promoção dos direitos da pessoa humana. Trata-se de direitos naturais, universais e invioláveis. Ninguém, nem o indivíduo, nem o grupo, nem a autoridade, nem o Estado, pode modificar e muito menos eliminar esses direitos que emanam do próprio Deus (ChL 38).
A luta pelos direitos humanos é hoje uma luta universal e é, portanto, um campo onde os cristãos são chamados a colaborar com todos os homens e mulheres de boa vontade, crentes e não crentes.
Mas será que os cristãos conhecem estes textos estruturantes? E se os conhecem estão disponíveis para os pôr em prática e para colaborar com outras religiões e outras ideologias? Ou basta-lhes ir à missa aos domingos?
Para evitar essa tentação também os nossos Bispos fizeram um solene apelo: Se cada cidadão, no âmbito da sua vida e influência, se preocupar em viver e em praticar, com verdadeiro espírito, os direitos humanos fundamentais, fará com que a sua convicção e acção se estendam, progressivamente, a outras esferas da vida. Um cristão tem redobrados motivos para fazer dos direitos humanos um campo de militância e para se empenhar com eles e com outros, cristãos ou não, na mesma causa, tão urgente como importante (Carta Pastoral nos 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos).

2008-07-22

A Igreja tem futuro?

Manifestamente que o ponto de interrogação é uma provocação, pelo menos para mim que sou crente.
A história mostra que todas as instituições, tal como as pessoas, nascem, crescem e morrem.
Tal não parece acontecer com as religiões. Talvez, para lá de exemplos secundários, talvez apontasse duas excepções: a “derrota” da Deusa-Mãe perante um deus masculino, “o senhor dos exércitos”; a passagem do politeísmo, via enotismo, ao monoteísmo.
A Igreja católica tem atrás de si uma longa história e uma longa experiência, mas isso de pouco lhe vale, se não mudar e se adaptar, como pedia o Concílio, ao mundo de hoje.
Rahner dizia que a Igreja estava a passar por um Inverno. Neste momento é crescente a perda de praticantes. Bastará recordar o inquérito à diocese de Lisboa que em meia dúzia de anos perdeu cerca de 100 mil fiéis praticantes. Consolamo-nos, dizendo que somos poucos (quantidade) mas melhores (qualidade)!
Seja como seja, parece estarmos a caminhar para um “resto”. Esperemos que se trate de um “resto” no sentido bíblico do “resto de Israel” que resistiu ao exílio na Babilónia e renovou e reforçou a sua fé em Deus, superando situações aparentemente insolúveis.
Possivelmente este será um caminho, se não soubermos dar respostas convincentes aos desafios actuais: ser um “resto” e ainda, por cima, em diáspora: pequenas comunidades, onde se pratique o acolhimento, se aprofunde a fé, se embeleze a liturgia, se exercite a solidariedade, se viva a caridade.
Mas não terá que ser assim. A Igreja tem um futuro e até risonho se for capaz de responder aos desafios que o nosso tempo permanentemente coloca. O núcleo central da sua doutrina está definido, mas poucas vezes é testemunhado: amar a Deus em cada homem e mulher, especialmente nos mais carenciados, visibilizando o amor; lutar pela justiça num mundo tão desigual e tão marginalizador. Não é daí que vem o perigo para o futuro da Igreja. Vem, por exemplo, de muitas das suas estruturas desajustadas, de muita da sua pastoral mais apologética que de comunhão, de um excesso de clericalismo, de uma falta de coerência e do profundo analfabetismo religioso de muitos cristãos.
Tudo isto vale a pena ser aprofundado: uma doutrina perene que deve dar respostas de modo actualizado e não a-temporal a um hoje, tão sem esperança, um testemunho de vida coerente e convincente e uma organização pastoral e institucional que seja mobilizadora dos próprios cristãos.

2008-07-21

Direito divino à diferença

Gosto muito desta parábola de Jesus, que foi lida no domingo de ontem. Para quem não a conheça aí vai ela.
O Reino do Céu é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo.
Ora, enquanto os seus homens dormiam, veio o inimigo, semeou joio no meio do trigo e afastou-se. Quando a haste cresceu e deu fruto, apareceu também o joio. Os servos do dono da casa foram ter com ele e disseram-lhe: “Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Donde vem, pois, o joio?” Respondeu-lhes ele: “Deve ser obra de um inimigo”. Disseram-lhe os servos: “Queres que vamos arrancá-lo?”. Ele respondeu: “Não, para que não suceda que, ao apanhardes o joio, arranqueis o trigo ao mesmo tempo. Deixai um e outro crescer juntos, até à ceifa; e, na altura da ceifa, direi aos ceifeiros: Apanhai primeiro o joio e atai-o em feixes para ser queimado; e recolhei o trigo no meu celeiro
(Mt 13,24-30).
Para mim esta parábola traz-me três ensinamentos.
O primeiro é que, apesar de haver trigo e joio, ambos têm direito a viver até ao tempo da colheita, porque não sabemos bem se o trigo é mesmo trigo e o joio é mesmo joio. É o que chamo o direito divino à diferença. Somos todos diferentes. E a vida não é apenas branco e preto, trigo e joio, bom e mau. Todos temos um pouco das duas partes.
O segundo é consequência deste primeiro. Devo ter muito cuidado a julgar os outros: quantas vezes penso que é joio o que afinal é autêntico trigo e quantas vezes considero trigo o que não passa de mero joio.
O terceiro é a paciência de Deus. O nosso Deus é de uma paciência infinita. Está sempre à espera de um gesto nosso que ao menos insinue a nossa conversão, a nossa mudança de vida. E por esse pequeno gesto Ele está disposto a esperar toda uma vida. Por isso, não permite que o joio seja arrancado, porque sempre espera que o joio se converta em trigo. E então haverá uma grande festa!
Claro que nós nem temos essa paciência, somos demasiado prontos a julgar e só estamos disponíveis para ver o trigo como nós o imaginamos.
É por isso que somos tão diferentes de Deus.
Mas, que diabo!, podíamos aprender alguma coisinha com Ele!

2008-07-19

Um vídeo importante

Guantânamo é um dos pontos mais negros da nossa história actual; ou mesmo o mais negro porque criado por um governo dito civilizado. Se fosse um qualquer “senhor da guerra” dos que abundam por esse mundo fora, mas pelos Estados Unidos!!!
Basta ser suspeito para lá ficar preso durante anos. Ali não impera a lei, não se faz sentir o direito. É a lei da selva onde vale tudo: privação de sono, uso de cães para assustar o detido, simulação de afogamento e outras manifestações da dimensão bestial do ser humano, que estão a produzir distúrbios mentais a uma boa parte dos quase 300 suspeitos de terrorismo, nenhum dos quais foi levado em seis anos perante un tribunal digno de tal nome. Nem sequer se aplica (parece que agora as coisas vão mudar de figura, embora contra a vontade expressa de Bush) a doutrina estabelecida en Junho de 2006 pelo Supremo Tribunal , segundo a qual qualquer pessoa sob a custódia militar estadounidense em qualquer parte do mundo tem direito pelo menos a ser julgada por unm tribunal constituído regularmente e com todas as garantias judiciais. Como conclui um relatório pedido pelo Senado americano: “os EUA estão a cometer crimes de guerra”.
Podemos falar dos autores deste campo de extermínio e de degradação, mas não sejamos hipócritas: todos sabemos bem o que é Guantânamo e as injustiças que lá se cometem. E já sabemos há muito.
Foi agora divulgado um vídeo que, embora de má qualidade, mostra Omar Khadr, uma criança de 15 anos (haverá uma pedofilia militar para torturadores?), que mostra o corpo marcado por cicatrizes e que no final, quando os trucidários se retiram, pede que o matem.
Eu tenho muita esperança neste vídeo, porque acredito que, apesar de não apresentar a violência pura e dura, vai ter um efeito eficaz, porque nós já não vivemos tanto na época do áudio, mas do visual.
E a minha esperança resulta do que aconteceu com o vídeo “massacre de Santa Cruz” em Timor. Não me recordo de ver sangue, ouvi uns tiros em fundo, vi muita gente a fugir e a refugiar-se na igreja a rezar a Avé Maria.
Não vi nenhum morto mas já lera, como muitos outros, que tinham sido mortos cerca de 200 mil timorenses. Mas esse número descomunal não foi capaz de tocar a consciência colectiva com a força que umas imagens tiveram: dois minutos de vídeo valem mais que duzentos mil mortos.
É que as injustiças só existem se forem denunciadas e publicitadas. Caso contrário, só existem para quem as sofre. Por isso, é uma obrigação moral de todos e de toda a sociedade estas denúncias não só áudio mas também visuais e multimédia que mostrem a realidade da injustiça nas suas múltiplas formas.
Por isso, os Bispos reunidos em Sínodo em 1971 faziam um veemente apelo para que as comunidades cristãs sejam a voz das vítimas silenciosas e silenciadas: “A nossa acção deve ter como objectivo em primeiro lugar aqueles homens e nações que devido a formas diversas de opressão e por força da índole própria da sociedade actual são vítimas silen­ciadas da injustiça e, mais ainda, vítimas da injustiça sem direito a voz” (JM 20).

2008-07-18

Espírito Santo

A segunda razão porque amo a Igreja católica é porque acredito que ela é guiada pelo Espírito Santo. Não tenho dúvidas que Ele também guia todas as outras Igrejas. Mas eu fui “criado e educado na Igreja católica” e é a ela que procuro manter-me fiel.
Gosto muito do Espírito Santo, porque é o anarquista por excelência. As traduções portuguesas de Jo 3,9 dizem: “O vento (pneuma) sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes para onde vem nem para onde vai”. A Vulgata e muitos exegetas traduzem: “O Espítito (pneuma) sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes para onde vem nem para onde vai” (Tolentino Mendonça). É que no grego a palavra pneuma tanto significa vento como Espírito. Talvez por causa desta anarquia, o Espírito Santo fosse o grande esquecido na Igreja católica latina. Era perigoso para uma ordem estabelecida e muito regulamentada e ordenadinha. E muito perdemos com isso.
O Concílio Vaticano II veio repor as coisas e só cito duas passagens “revolucionárias”. Afinal não é só a hierarquia que é assistida pelo Espírito Santo:
A totalidade dos fiéis, que receberam a unção do Santo, não pode enganar-se na fé; e esta sua particularidade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do Povo todo, quando este, ‘desde os Bispos até ao último dos fiéis leigos’, manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes… Além disso, este mesmo Espírito Santo não só manifesta e conduz o Povo de Deus por meio dos sacramentos e ministérios e o adorna com virtudes, mas distribuindo a cada um os seus dons que lhe apraz, distribui também graças especiais entre os fiéis de todas as classes, as quais os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos, proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja” (LG 12).
E mais: “o Espírito Santo não poucas vezes se antecipa à acção dos que governam a vida da Igreja” (AdG 29).
A propósito da importância do Espírito Santo na condução da Igreja não resisto a contar uma das histórias do Decameron, que, como é sabido, foi escrito por Bocácio, como crítica impiedosa aos costumes da Itália do século XIV. Passa-se entre dois comerciantes que se admiravam mutuamente. É a “segunda novela”, que terei de resumir dada a sua extensão.
O católico Giannotto preocupado com a salvação da alma do seu amigo judeu Abraão, insistia muito com ele para aceitar a fé cristã. Mas ele resistia a tudo. Até que um dia lhe disse: “Agrada-te que eu me faça cristão e estou disposto a fazer-te a vontade. A prova é que quero ir primeiro a Roma ver aquele a quem chamas o Vigário de Deus na terra, observar a vida que leva, as suas maneiras e igualmente a dos seus irmãos, os cardeais”.
Giannotto ficou preocupadíssimo, pois sabia dos comportamentos pouco cristãos que por lá se praticavam e tentou demovê-lo da viagem. Mas ele queria era o argumento de Roma e não desistiu. E lá foi. Viu, observou e tirou as suas conclusões. E regressou à sua terra, Paris. Uns dias depois, receoso do veredicto mas morto de curiosidade, Giannotto lá foi visitar o amigo. E ficou aflitíssimo quando ele começou a fazer o seu relato: “O que penso deles? … A meu ver, o vosso pastor e, por conseguinte, todos os outros que vêm depois dele parecem consagrar todos os esforços a reduzir a nada e a expulsar do mundo a religião cristã, de que deviam ser o alicerce e os responsáveis. Mas, como vejo que tal finalidade não foi atingida e que a vossa religião se vai estendendo dia a dia, projectando uma luz cada vez mais deslumbrante, julgo compreender que o Espírito Santo é, com toda a justiça, o seu alicerce e o seu responsável, porque ela é mais santa e verdadeira do que qualquer outra. Por isso mesmo, se me mantive surdo e insensível aos teus pedidos, recusando fazer-me cristão, digo-te agora com a maior franqueza que nada me impedirá de me converter à tua fé. Vamos, pois, à igreja e faz-me baptizar segundo os princípios habituais da vossa santa religião”.
Depois disto não valeria a pena perguntar pelo futuro da Igreja. Mas os tempos actuais sugerem que diga alguma coisa sobre isso.

2008-07-17

Jesus Cristo (II)

Amo Jesus, em segundo lugar, porque me deu a conhecer o que é possível conhecermos sobre Deus, porque ele é o exegeta do Pai (J0 1,18) e porque “quem me vê a mim vê aquele que me enviou” (Jo 12,45) e “se ficaste a conhecer-me, conhecereis também o Pai e já o conheceis porque estais a vê-lo” (Jo 14,7).

Deus é amor
Descobri isso sobretudo na parábola do filho pródigo que li dezenas de vezes. Aquele Pai que tudo suporta, tudo aceita até a degradação física e moral do filho valdevimos. Esse Pai, todos os dias vai para o pátio na esperança de ver surgir o filho no horizonte. E quando ele chega faz uma festa de arromba, que causa profunda revolta ao irmão que sempre se tinha comportado bem. Já repararam que ainda hoje é assim que nós, os bons comportados, tratamos os marginais, que são os filhos pródigos de hoje?

Deus é o Senhora da história
Por isso, com avanços e recuos, com fracassos e vitórias resultante do diálogo dialéctico entre a vontade dos homens e mulheres e a vontade Deus, a história é globalmente linear e cada vez mais se vai aproximando da plenitude do Reino de Deus. E esta é uma certeza libertadora, mobilizadora, inimiga do desespero e um desafio constante e a uma intervenção contínua, persistente e confiante na construçã da história.
Daí que Deus tenha um projecto para cada um de nós. Projecto que, infelizmente, de um modo geral não encaixa nos nossos e por isso, temos tanta dificuldade em aceitá-lo, porque isso implicaria uma revolução profunda na vida de cada um de nós. O espantoso diálogo entre Moisés e Deus (Ex 3,11-4,17) é o exemplo paradigmático da dificuldade dos que procuram ouvir Deus. Mas a generalidade não ouve, não quer ouvir ou não pode ouvir essa exigência.

Deus quer precisar de nós
Deus podia intervir na história e pôr tudo em ordem sempre que quisesse. Mas ele respeita absolutamente a vontade de cada um: propõe, até pode insistir, mas se não convence, não obriga.
Este querer que sejamos nós sejamos os seus instrumentos.
Foi para mim uma descoberta carregada de consequências, de que recordo apenas duas.
Primeira: percebi que as minhas acções libertadoras, que supunha individuais e anónimas, não são “apenas” acções minhas; eram e são respostas ao desafio de Deus que quer que eu, EU, também seja construtor da história, seja seu instrumento nessa tarefa ingente e continuada. Porque apenas sou instrumento seu, as minhas acções, por insignificantes que sejam, ganham uma dimensão universal. Daí a minha responsabilidade em agir positivamente e não desperdiçar a minha vida em acções anti-projecto de Deus. Bonitas palavras, mas tão triste o meu comportamento nas muitas ocasiões que traio este projecto de Deus a meu respeito.
Segunda: as acções libertadoras de todos os outros, crentes ou não, são também acções de Deus que, por seu intermédio, quer fazer avançar a história. “Deus não faz acepção de pessoas” (Act 10,34; Rom 2,11; Gal 2,6; Ef 6,9; Col 3,25) e não fica à espera que os católicos, por vezes tão entretidos, e tantas vezes de modo tão passadiço (diacronicamente, porque agarrados às variadas soluções dos séculos passados, e sincronicamente, porque hoje o fazem de forma bonzai e soft), com os seus problemas internos e tão pouco preocupados com o avanço da história. Por isso DEus "reve" que se socorrer de pessoas como Marx, Darwin, Freud e tantos outros, que os católicos olham de soslaio, como se serviu também de tantos cristãos também eles comprometidos num futuro melhor e também muitos deles olhados de soslaio por muitas comunidades de crentes.
“Deus não julga pelas aparências nem profere sentenças só pelo que ouve dizer, mas julgará com justiça e com equidade” (Is 11,3-4) e “julga, sem parcialidade, cada um segundo as suas obras” (1Pedr 1,17).

2008-07-16

Jesus Cristo

Como referi ontem a razão fundamental por que amo a Igreja é ter-me dado a conhecer Jesus Cristo.
Em primeiro lugar porque me deu um rumo e um sentido profundos à minha vida. E facilmente entenderão que o meu maior drama seja e é não ter sido suficientemente fiel a eles.
Num primeiro tempo, em que já tinha catequese dada por especialistas, insistia-se muito na dimensão transcendental de Jesus, uma espécie de monofisismo (uma só natureza) que não me satisfazia de todo. Foi, então, que li o livro de N. Kazantzaki, “A Última Tentação”, que me encheu a alma, porque me mostrou a outra dimensão: um Jesus profundamente humano, demasiado humano para muitos teólogos, mas que me serviu para equilibrar os “exageros” da dimensão transcendental. Devo acrescentar que a primeira vez que o li, logo no Prefácio, chorei, talvez tanto como o autor, com a sua confissão de fé. Para quem só se ficou pelo filme aqui deixo uma passagem desse Prefácio, que descreve bem o conteúdo do livro e o quanto o livro me marcou.
Nunca segui com tanto terror a sua marcha sangrenta até ao Gólgota (Calvário), nunca vivi com tanta intensidade, com tanta compreensão e amor, a Vida e a Paixão de Cristo, como durante os dias e noites em que escrevi A Última Tentação. Ao escrever esta confissão da angústia e da grande esperança dos homens, sentia-me tão emocionado que os meus olhos se embaciavam de lágrimas. Nunca, até então, sentira, com tal doçura, com tal sofrimento, o sangue de Cristo tombar, gota a gota, no meu coração.
Porque Cristo, para subir ao alto do sacrifício, para subir à Cruz, ao cimo da materialidade, a Deus, passou por todas as provas do homem que luta. Todas, e é por isso que o seu sofrimento nos é tão familiar, é por isso que sofremos com ele, é por isso que a sua vitória final nos parece a nossa vitória futura. Tudo o que Cristo tinha de profundamente humano nos ajuda a comprendê-Lo, a amar e a seguir a sua Paixão, como se fosse a nossa. Se não houvesse Nele o calor deste elemento humano, nunca poderia ter tocado os nossos corações, tão profunda e suavemente, nunca poderia ter-se tornado um modelo para as nossas vidas. Lutamos, vemo-Lo lutar como nós e tomamos coragem. Compreendemos que não estamos sós no Mundo e que Ele luta ao nosso lado.
Cada momento da vida de Cristo é uma luta e uma vitória. Ele triunfou do irresistível encanto das simples alegrias humanas, ele triunfou da tentação: transformou, sem cessar, a carne em espírito e prosseguiu a sua ascensão, chegou ao Gólgota e subiu à Cruz.
Mas o seu combate não terminou ali; na Cruz esperava-O outra tentação, a última Tentação. Num clarão rápido, o espírito do Mal colocou perante os olhos desfalecidos do Crucificado a visão pérfida de uma vida pacífica e feliz: enveredara – foi a ilusão que teve – pelo caminho uniforme e fácil do homem, casara, tivera filhos, os homens amavam-no e estimavam-no; e agora, já velho, estava sentado na frente da sua casa, lembrando-se das paixões da juventude e sorrindo, satisfeito. Como procedera bem! Que sensatez, a de ter seguido o caminho dos homens, e que loucura, se tivesse querido salvar o Mundo! Que alegria, o ter escapado aos sofrimentos, ao martírio e à Cruz!
Foi esta a última tentação que, pelo espaço de um relâmpago, perturbou os derradeiros instantes do Salvador.
Mas, bruscamente, Jesus sacudiu a cabeça, abriu os olhos e viu claro: não, não, não tinha traído, louvado seja Deus, não tinha desertado, tinha cumprido a missão que Deus lhe confiara, não se casara, não vivera feliz, chegara ao cimo do sacrifício e estava pregado na Cruz.
Fechou os olhos, satisfeito. Então, ouviu-se o grito triunfante: Tudo se cumpriu!
Sim, eu cumpri o meu dever, fui crucificado, não cedi à tentação.
Fim de citação com uma lágrima ao canto do olho.
Quando comecei a escrever não fazia a mais pequena ideia de citar Kazantzaky. Mas o pensamento e a escrita muitas vezes empurram-nos para caminhos que já só temos no sub-consciente ou no inconsciente e expõem-nos à luz da nossa reflexão "imediata". Mas penso que valeu a pena fazer esta tão longa cotação, que foi tão marcante para a minha vida e para um melhor conhecimento de Jesus Cristo. Espero que também seja reconfortante para alguém!
Por isso terei de retomar o tema amanhã. Porque Jesus também me deu a conhecer Deus.

2008-07-15

Por que amo a Igreja?

A história da Igreja católica é uma história como a de qualquer instituição humana. Apesar de instituição divina é ela também humana e como tal formada por homens e mulheres que são capazes de praticar as acções mais sublimes mas também de cair em baixezas demasiado indignas. Estas últimas são mais conhecidas e badaladas do que as muitas outras que envolveram avanços, espectaculares mesmo, na evolução da humanidade.
Houve papas com comportamentos humanos indignos como houve muitos mais que estiveram na frente da luta pela dignidade humana. Houve muitos momentos “obscuros” do próprio Magistério, como houve papas com uma clarividência profética e revolucionária para a sua época. Mas, como recordava João Paulo II, “pela força do Evangelho, ao longo dos séculos, os monges cultivaram as terras, os religiosos e as religiosas fundaram hospitais e asilos para os pobres, as confrarias, bem como homens e mulheres de todas as condições, empenharam-se a favor dos pobres e dos marginalizados, convencidos de que as palavras de Cristo: «Cada vez que fizestes estas coisas a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes» (Mt 25, 40), não deviam permanecer um piedoso desejo, mas tornar-se um compromisso concreto de vida” (CA 57).
Também se deve ao cristianismo um contributo fundamental para abrir na história do mundo uma das brechas mais porofundas em favor dos direitos humanos: pela primeira vez, pessoas percorreram o mundo inteiro proclamando abertamente que todos os homens e todas as mulheres são irmãos e irmãs, filhos e filhas do mesmo Pai, sem qualquer distinção e que, por isso, merecem igual respeito independentemente da sua cor, do seu credo, da sua língua. E há outros pontos que se poderiam acrecsentar (G. Rémond): o conceito de universalimo e o de pessoa, a laicidade, o primado da moral
Portanto, a história da Igreja é, como a de qualquer instituição humana, marcada por pontos fracos e pontos fortes.


Mas não é especialmente por isto ou nem é por causa disto que amo profundamente a Igreja.
A razão fundamental do meu amor pela Igreja é ter-me dado a conhecer Jesus Cristo. De tal modo estou agradecido à Igreja que sinto necessidade de dizer como um teólogo que já não recordo o nome: “Eu perdoo tudo à Igreja porque me deu a conhecer Jesus Cristo”.
Não fosse a Igreja, eu supostamente nunca o teria conhecido. Conheci-o, como todos os outros, através de uma cadeia credível de testemunhos que começou com os apóstolos e terminou… na minha mãe. É que eu vivi os primeiros anos num local isolado – uma central eléctrica – onde a única catequista que tive foi a minha mãe, uma mulher analfabeta de letras, a quem não deixaram frequentar a escola como à maior parte das raparigas do seu tempo. Mas tinha uma grande sabedoria de vida e sobretudo uma fé de arrasar montanhas, com um amor ilimitado a Jesus Cristo e à Igreja, apesar de sofrer com atitudes que ela não conseguia perceber mas que lhe pareciam quase impossíveis num Deus bondoso. Por exemplo, como era possível que todos os dias milhares de almas caíssem no inferno. Afirmação que ela ouvia tantas vezes nas homilias mas também nas palavras que Nossa Senhora disse aos pastorinhos. Dramas insolúveis que uma pastoral do medo, tão do agrado da Igreja noutros tempos (e às vezes ainda hoje nalguns púlpitos), colocava a pessoas que tinha uma garnde fé em Deus, mas um Deus Amor e não um Deus vingativo.
E com estas histórias não respondi à pergunta inicial. Mas um dia não são dias e ainda há muito espaço no blog para escrever.
Termino recapitulando. Penso que amo profundamente a Igreja porque me deu a conhecer Jesus Cristo e porque acredito que o Espírito Santo está com ela até ao fim dos tempos.

2008-07-13

A Igreja minha mãe

É bem possível que quem tenha lido os meus últimos comentários me julgue um católico (o que já não é muito bom!) marginal e azedo com a Igreja.
Mas quero dizer solenemente que tal não corresponde à verdade. Como mostrarei mais tarde devo quase tudo à Igreja e estou-lhe muito grato por isso. Mais. Penso que amo profundamente a Igreja, embora seja difícil ser juiz em causa própria. Magoa-me, como católico, que a maior parte dos cristãos não conheçam, não leiam nem sobretudo meditem os documentos do concílio Vaticano II. Magoa-me, como católico, que a maior parte dos cristãos desconheça os documentos da doutrina social da Igreja. Magoa-me, como católico, que a maior parte se contente com uma catequese feita há décadas ou mais recentemente, mas que continua muito sacramentalista e normativa. Magoa-me, como católico, que haja ainda muitos que pensam que compram o céu indo à missa ao domingo ou peregrinando a Fátima, esquecendo aquelas palavras: “Não é o que diz Senhor, Senhor que entrará no reino dos céus, mas o que cumpre a vontade de meu Pai” (Mt7,21).
É que todo esta situação impede ou dificulta que a Igreja possa ser numa sociedade plural e aberta uma voz que tem coisas importantes para a vida e sobretudo propostas de esperança para tantos que vivem a crise do desespero, dificuldades de todo o tipo, falta de sentido de vida ou de futuro.
Foi de algum modo contra este estado de coisas que tomei a decisão, com apoio familiar, de, há cerca de vinte anos, me reformar na esperança de poder dar um minúsculo contributo na luta contra este analfabetismo religioso que retira tanta qualidade ao testemunho cristão. Bem sabia e agora melhor que na altura que era uma utopia, quase me apetecia dizer uma “parvoíce humana”, mas é o sonho que tem que comandar a vida. É também possível que alguém, e devo aceitá-lo com toda a humildade, olhe para este meu gesto como um pecado de orgulho, de quem se considera o salvador da Igreja.
Mas nada mais falso, porque a primeira regra da minha vida, que e é mais um drama interior que regra, é procurar descobrir em cada momento qual o plano de Deus a meu respeito. E não é nada fácil discernir o que Deus quer de cada um de nós. De qualquer modo foi apenas por esta razão que na altura tomei a decisão da reforma.
Procurei, por isso, servir um pouco mais a Igreja quer em grupos de trabalhos quer sobretudo pela escrita e pela palavra. Nunca me preocupei em avaliar os frutos (embora sempre me procurasse por avaliar as minhas acções e palavras ), porque, como diz Jesus: “Um é o que semeia, outro o que colhe” (Jo 4,37).
Mas houve também uma outra regra a que nunca pude renunciar, por respeito por mim próprio mas também pela própria Igreja. Encontrei-a numa frase, creio que de Chesterton: “Quando entram na i(I)greja os católicos são convidados a tirar o chapéu mas não a tirar a cabeça”.
Se repararam nas minhas observações anteriores nunca pus em causa o “núcleo duro” das verdades essenciais da fé cristã. Apenas comentei, dando alguma fundamentação, aspectos secundários, muito deles meros frutos do tempo, de tempos passados e que hoje só atrapalham a missão essencial da Igreja que é testemunhar, de modo actualizado e credível, Jesus Cristo e os valores do Reino. Nisto "apenas" me sinto fiel às palavras do Concílio: “Enquanto Cristo, santo inocente e imaculado, não conheceu o pecado mas veio expiar os pecados do povo, a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação” (LG 8; o sublinhado é meu).
Mas não cheguei a dizer por que amo tanto a Igreja.
Pode ficar para amanhã.

2008-07-12

A bispa anglicana

Sou dos que acreditam, como um dogma de fé, que “Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele o criou homem e mulher” (Gn 1,27).
Sou também dos que estão convictos de que todo o ser humano tem uma dignidade ontológica, que não confundo com a dignidade moral que decorre das acções de cada um.
E, portanto, sou dos que acreditam que há uma igualdade radical entre o homem e a mulher, independentemente das diferenças acidentais de mentalidade, cor, estatuto social, etc..
Por isso, tudo o que contribua para reforçar esta igualdade e ir eliminando diferenças injustificadas é motivo de alegria e um processo na evolução moral da humanidade.
Por isso, é muito bom ver mulheres ministras, gestoras, empresárias; como é também muito bom vê-las como padres ou bispos, como agora aconteceu na Igreja anglicana.
É sinal de que as mulheres pelo menos nalgumas confissões religiosas superaram o seu estatuto de “mulheres a dias”. Aliás já várias vezes sugeri às mulheres católicas que fizessem um ano de greve a todas as suas actividades na Igreja: catequistas, cozinheiras, lavadoras de roupa, etc. Mas bastaria um mês para que os hierarcas percebessem o que realmente fazem (d)as mulheres na Igreja.

Imagino que foi e está certamente a ser uma situação muito difícil para uma Igreja decidir que a mulher possa ser ordenada bispo. Há razões históricas, culturais, sociais, pastorais pesadíssimas.
Já tenho alguma dificuldade em entender a posição da Igreja católica. Todos sabemos o quanto lhe é desagradável esta decisão. Mas a Igreja católica também toma (ou) decisões que podem ser desagradáveis a outras. Contudo, o problema é mais de fundo. Dá a ideia que no subconsciente dos responsáveis da Igreja católica ainda há resquícios do tempo da cristandade, do “regresso dos irmãos separados”. Ora a Igreja católica não é dona nem guia de nenhuma outra. A sua grande preocupação deve ser encontrar formas actualizadas, inteligíveis e credíveis de testemunhar Jesus Cristo e os valores do Reino.
Dizer que "a ordenação episcopal de mulheres constitui um obstáculo para a unidade com a Igreja Católica" significa o quê? Que os anglicanos não deviam ter tomado esta decisão? Ora esta não é uma posição séria sobre ecumenismo. Ou nos sentamos em igualdade de condições à mesa do ecumenismo e do diálogo inter-religioso ou então esse diálogo corre o risco de ser uma farsa.

2008-07-11

Diem perdidi

Ontem dispus-me a sentar-me em frente à televisão para acompanhar o “Estado da Nação” e ficar a saber mais alguma coisinha para lá das leio nos jornais. Por isso, as minhas expectativas eram muitas.
De Sócrates esperava naturalmente que fosse elencar o conjunto de obras, leis e reformas que o governo está a fazer para tornar o país mais justo, mais desenvolvido, etc., etc.. Dele não esperava muito mais para lá do elogio so governo e a culpabilização da crise internacional.
Lá aguentei a hora de Sócrates, que disse o esperado, mais a mais, já o fizera em recente entrevista com mais algumas novidades das que achei interessante o passe escolar, por exemplo. Ouvi muitas outras onde se falam das centenas de portugueses que iam ser beneficiados.
Até porque a minha esperança vinha da oposição que ocupa o Parlamento, cuja missão é fiscalizar e interpelar seriamente e em profundidade a acção do governo. E se há questões a colocar…
Pois ao fim de duas horas estava perfeitamente decepcionado. Dando o benefício da dúvida a Paulo Rangel, que fazia a sua estreia, que tristeza de imagem deram aqueles nossos deputados, a elite dos nossos deputados, que nos custam rios de dinheiro em ordenados e em reformas e que pouco ou nada fizeram para que as grandes questões fossem abordadas: afirmações vagas, perguntas mal colocadas e sobretudo mal fundamentadas, gráficos e observações que se encontram em qualqure jornal, dossiers mal preparados ou nem sequer estudados, chavões mais que conhecidas. Será possível que não tenhamos deputados que merecem o nome de servidores da nação? O que estão eles lá a fazer?
Mas o momento mais incomodativo para mim foi aquela história ridícula dos IVAs do Paulo Portas. O homem, para lá de se ver que já não é nada, mesmo nada, do que era, veio pôr uma questão verdadeiramente idiota. Em 2000, com IVA a 21%, uma dada factura pagou 9,5€; em 2008, com o IVA a 20%, a mesma quantidade de produto pagou de IVA 10,5€. Como era possível tal roubalheira? Será que ele não percebeu que em 8 anos os preços aumentaram e sendo o IVA uma percentagem dos preços, a sua pergunta era mesmo idiota?! Valeu-lhe a caridade de um ministro que apenas lhe sugeriu que comprasse um livro de Matemática que poderia até ser do 5º ano!

Um país para poder desenvolver-se precisa de um governo decido, inovador, capaz de prever situações de crise e de imaginar respostas possíveis. Mas precisa tanto ou mais de uma oposição que não o deixe fazer o que quer e sobretudo que tenha propostas sobretudo num tempo de crise como o nosso, em que possivelmente ninguém, nem o governo, sabe muito bem o que há-de fazer.
A “política é uma arte nobre e difícil” (GS 75) e "é uma maneira exigente se servir os outros" (OA 46). Por isso precisa de uma preparação séria, honesta, cuidada dos seus servidores. O país tem o direito de o exigir.
Ou teria… porque com a falta de cidadania e de consciência do bem comum que há no nosso país, onde a esmagadora maioria dos cidadãos cada um apenas pensa em si e nos seus interesses, seria de esperar outra coisa?
Não saem os nossos deputados do meio deste povo egoísta e corporativista?!

2008-07-10

Começo do fim do protagonismo da Mulheres

O problema da crescente diminuição do protagonismo das mulheres nos primeiros séculos é um processo complexo e com muitas causas. F. R. Ribaque, de um modo simplificado, alinha quatro razões, que poderia resumir assim:
- como vimos, na análise de Rom 16, muitas mulheres ricas ofereciam a sua casa para as reuniões cúlticas e catequéticas. Ora a casa é o lugar por excelência da mulher como a praça pública o é do homem. Com o andar dos tempos, o aumento de conversões obrigou à passagem de um espaço comunitário “pequeno”, porque centrado na “casa particular”, para um âmbito mais público (“a casa da Igreja”) e a mulher deixou de estar no “seu meio”;
- a liderança comunitária centra-se cada vez mais na figura do epíscopos (bispo), cujo modelo é o paterfamilias (o pai “romano”). Veja-se esta passagem tão significativa de Inácio de Antioquia, que morreu em 110, na sua Carta aos Esmirnenses: “Segui todos o bispo, como Jesus Cristo seguiu o Pai, e o colégio dos anciãos, como aos Apóstolos; quanto aos diáconos reverenciai-os como ao mandamento de Deus. Que ninguém, sem a concordância do bispo, faça nada de quanto diga respeito à Igreja. Só deve considerar-se válida a Eucaristia que for celebrada pelo Bispo e por quem dele tenha autorização. Onde aparecer o bispo, aí está o povo, tal como onde estiver Jesus Cristo, aí está a Igreja universal. Sem a concordância do bispo, não é lícito baptizar nem celebrar a eucaristia; só aquele que ele aprovar. É isso que é agradável a Deus, a fim de que quanto fizerdes seja correcto e válido” (VIII, 1-2).
- as críticas dos pagãos quanto a este protagonismo que implicavam para as mulheres cristãs mudanças no seu comportamento; por exemplo, saídas à noite para assistir a reuniões ;
- as críticas ao casamento, quer por parte de certos movimentos ascéticos radicais, como os encratitas (que, entre outras coisas, exigiam que todos os cristãos deviam abster-se não só dos prazeres da carne mas sobretudo do casamento), quer pela proclamação crescente da superioridade da virgindade.

É significativo que já nos próprios Evangelhos se pode intuir um pouco a evolução deste apagamento do papel das mulheres, nomeadamente de Maria Madalena:
- Mateus: quando Maria Madalena e a outra Maria já se afastavam, tristes, do sepulcro vazio, Jesus apareceu-lhes: “Salve! Não temais. Ide anunciar aos meus irmãos que partam para a Galileia. Lá me verão” (28,1-10): Jesus aprece-lhes em primeiro e manda-as “evangelizar” os apóstolos;
- Marcos: Jesus “aparece primeiro a Maria de Madalena”, que foi anunciá-lo aos seus companheiros, mas eles não acreditaram; depois apareceu a dois deles e finalmente aos Onze, “a quem Jesus censurou a incredulidade e a dureza de coração por não acreditarem naqueles que o tinham visto ressuscitado” (16,9-14);
- Lucas fala da aparição não de Jesus mas de dois anjos às mulheres (Lc 24,1-11: “Lembrai-vos do que ele vos falou, quando ainda estava na Galileia”). Elas foram contar tudo isto aos Onze e a todos os restantes. Mas, como as mulheres não eram dignas de grande crédito, Pedro foi confirmar. Nesse mesmo dia aparece aos discípulos de Emaús, que, depois de reconhecerem Jesus, voltaram a Jerusalém, disseram aos Onze e aos seus companheiros: “Realmente o Senhor ressuscitou e a apareceu a Simão” (Lc 24,34). A aparição às mulheres foi ignorada e foi acrescentada a aparição a Pedro;
- João: as mulheres já não recebem o anúncio pascal junto sepulcro: vão ao sepulcro e quando viram a pedra retirada, correm para informar Pedro, que conjuntamente com o discípulo amado, foi verificar o sepulcro vazio (Jo 20,1-10). Entretanto, Maria Madalena ficou junto ao sepulcro a chorar até que, mais tarde, Jesus lhe aparece e ela foi anunciar aos discípulos: “Vi o Senhor!”. E contou o que Ele lhe tinha dito” (20,11-18).

2008-07-09

Epístola aos Gálatas 3,28

Os versículos 3,26-28 não são de S. Paulo pois faziam parte de uma fórmula baptismal pré-paulina. Mas o importante é que S. Paulo os retoma e os valoriza numa secção (2,26-4,11) em que quer destacar a condição de livres dos filhos e das filhas de Deus: até Cristo, a Lei era o nosso pedagogo (24); mas só a fé em Cristo nos torna verdadeiramente livre: “somos filhos de Deus em Cristo Jesus mediante a fé; fomos baptizados em Cristo e deveis revestir-vos de Cristo mediante a fé” (25-27). E depois vem o célebre v. 28: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre; não há homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus”.
Esta é uma afirmação verdadeiramente revolucionária ao afirmar a novidade de uma humanidade sem discriminações numa sociedade tão hierarquizada e meritocrática como a sociedade greco-romana ou tão discriminatória como a judaica (até os pastores eram impuros porque podiam contactar animais impuros; e no entanto foram eles os primeiros a quem foi anunciada a boa nova do nascimento de Jesus!)
Esta afirmação é tão revolucionária que a esmagadora maioria dos cristãos nunca a deve ter levado a sério, incluindo a alta hierarquia, como passo a mostrar.
O Concílio cita este versículo numa passagem riquíssima no capítulo sobre os leigos no documento sobre a Igreja, que não resisto a citar apesar de um pouquinho longa: “Um só é, pois, o Povo de Deus: um só Senhor, uma só fé, um só Baptismo; comum é a dignidade dos membros, pela regeneração em Cristo; comum a graça de filhos, comum a vocação à perfeição; uma só salvação, uma só esperança e uma caridade indivisa. Nenhuma desigualdade, portanto, em Cristo e na Igreja, por motivo de raça ou de nação, de condição social ou de sexo, porque não há judeu nem grego, escravo nem homem livre, homem nem mulher: com efeito, em Cristo Jesus, todos vós sois um” (LG 32).
Repare-se: “Nenhuma desigualdade, portanto, em Cristo e na Igreja, por motivo de … sexo”. É o que lá está escrito e este documento sobre a Igreja foi aprovado, no dia 21.Nov.1964, com 2151 placet (a favor) e 5 non placet!!!
Depois destas palavras, por que razão as mulheres são discriminadas na Igreja, nomeadamente quanto à ordenação. Devo dizer que uma decisão destas precisava de uma adequada preparação pedagógica do povo de Deus, mas o que está em causa é que as mulheres não possam ser ordenadas e com argumentos que me parecem dever pouco à inteligência e talvez menos à teologia.
Passo a dar a minha opinião sobre três aspectos.

O argumento do in persona Christi: o padre está na pessoa de Cristo; ora Cristo foi homem e não mulher, como pode uma mulher estar na pessoa de um homem? Será que o conceito de pessoa se esgota na genitalidade? Apesar de uma riquíssima doutrina sobre a dignidade humana, há algumas “incoerências romanas” como esta. Por exemplo, a recusa de contraceptivos parece partir da ideia de que a mulher é um conjunto de hormonas cuja produção não pode ser alterada: a perspectiva antropológica é preterida pela biológica! Mas demos a palavra a quem sabe do assunto, o teólogo Legrand: “Por um lado, a cristologia patrística, mesmo vendo em Cristo o novo Adão, dá um significado decisivo ao facto de ele ter assumido a natureza humana sem se preocupar com a condição masculina desta natureza. Por outro, dado que o ministério ordenado deve determinar-se cristológica e, ao mesmo tempo, pneumatologicamente, a representação de Cristo requer a mediação eclesial. Só se poderia representá-lo, se se representasse a fé e a comunhão da Igreja. Não poderia uma mulher representar plenamente a fé e a comunhão da Igreja? Se pode estar in persona ecclesiae no sentido indicado, não poderia estar também in persona Christi?

O argumento de que as mulheres não podem ser “ordenadas” porque Jesus não quis chamá-las para o grupo dos Doze (MD 26) terá um peso tão decisivo? E mais, será legítimo a alguém afirmar que Jesus, se não escolheu mulheres para o Colégio Apostólico, é porque não as queria lá? Mas aceitando que assim seja, vejamos mais uma “incoerência romana”. Então por que razão é recusada a ordenação de homens casados, quando Jesus escolheu um homem casado para cabeça dos Doze? Repare-se que, no caso dos homens casados, a atitude de Jesus foi pela afirmativa, portanto, ninguém pode pô-la em causa, enquanto no caso das mulheres foi por omissão, o que não permite interpretações absolutas!

Sendo o Baptismo o sacramento fundamental que nos “incorpora em Cristo, nos constitui em Povo de Deus e nos faz participantes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo” (LG 31), por que razão os homens têm direito a um Baptismo de primeira, pois lhes dá acesso aos restantes seis sacramentos e as mulheres só têm direito a um Baptismo de segunda, que apenas dá acesso a cinco sacramentos? Tem a Igreja poder para esta discriminação sacramental? Em que passagem bíblica se fundamenta tal atitude?

2008-07-08

S. Paulo e as Mulheres

Vou apenas fazer uma pequena análise de duas passagens: Rom 16; Gal 3,28.

Rom 16
S. Paulo seguiu o estilo epistolar, com uma introdução, seguida por vezes de uma acção de graças a Deus ou a alguém em especial, o desenvolvimento ou mensagem e uma saudação final. Por exemplo, é duma destas conclusões que a Liturgia retirou esta oração tão bonita com que abrimos a celebração eucarística: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito estejam com todos vós” (“Cor 13,13).


Na Carta aos Roamnos, S. Paulo enumera muitos cristãos e cristãs que trata pelo nome. Vou falar apenas das mulheres.

A nossa irmã Febe, diaconisa (diákonos) da igreja de Cêncreas” (1)
Tratava-se de uma mulher materialmente abastada que podia, por isso, reunir a comunidade em sua casa. O livro dos Actos dos Apóstolos fala de muitas conversões, de homens e mulheres de todas as classes sociais incluindo escravos, destacando, pelo menos em duas ocasiões, “senhoras das mais distintas” (17, 4.12) e acusando “os judeus de incitaram as senhoras devotas mais distintas” (Act 13,50). Estas mulheres vão ter um papel fundamental na difusão do cristianismo: os seus bens suportavam os custos da evangelização, protegem os cristãos (Rom 16, 1-2), de que o próprio Paulo beneficiou (Ac 16,4), as suas casas serviam de acolhimento e de local de reunião (Act 16,5.14. Act 16,14 fala da casa de Lídia, vendedora de púrpura), verdadeiras “igrejas domésticas”.
Paulo chama-lhe diákonos, tal como aplica a si próprio essa palavra quando defendia a sua autoridade (2Cor 3,6; 6,4) ou mencionava os seus títulos de honra (2Cor 11,21-23).
Por outro lado, trata-a como “nossa irmã”, o que não é simplesmente uma expressão de fraternidade, mas um título particular para os que ocupavam um lugar especial na comunidade, como colaboradores directos dos apóstolos. Este título foi usado, por exemplo, com Timóteo (2Cor 1,1; Flm 1) e Sóstenes (1Cor 1,1).

Prisca e Áquila, meus colaboradores em Cristo Jesus” (3).
Este casal é muitas vezes citado (Act 18,2; 18,18.26;1Cor 16,19-20; 2Tim 4,19), mas o mais interessante é que aqui quem vem em primeiro lugar é a mulher Prisca (ou Priscila como aparece noutras passagens), o que poderá significar que seria ela que presidia às reuniões em sua casa.

Maria (6), Trtifena eTrifosa e Pérside (12).
Estas quatro mulheres têm em comum a utilização por S. Paulo de um verbo técnico – kopiao – com o qual ele caracteriza o seu próprio trabalho missionário e apostólico (1Cor 15,10; Gal 4,11; Fil 2,16; Col 1,29) e que aplica a outros missionários (1Cor 116,16; 1Tes 5,12; 1Tim 5,17).

O curioso é que este verbo é sempre aplicado a colectivos, excepto aqui que é aplicado a cada uma desta mulheres.

Andrónico e Júnia, que são apóstolos insignes” (7)
A dificuldade que colocava o facto de uma mulher, "Júnia", ser “apóstolo” nos séculos posteriores levou a que alguns convertessem a mulher “Júnia” no homem “Junias”.
Passo a citar R. Aguirre: “Rapidamente o preconceito androcêntrico considerou intolerável que se chamasse apóstolo a uma mulher e os comentaristas frequentemente converteram Júnia num homem, o que não é sustentável. Outras vezes, quando aceitavam que se tratava de uma mulher, diziam que é apóstolo mas ‘em sentido amplo’”.
Como se vê, aqui, as mulheres, em vez de serem discriminadas e apesar das pressões culturais da sua época, na prática tinham amplas possibilidades de intervir na Igreja a todos os níveis e o seu empenho e esforço era não só reconhecido como foram recordadas por Paulo com todo carinho.

É que na altura, todos, homens e mulheres, estavam igualmente preocupados em servir e os mais qualificados presidiam à causa comum: o Evangelho de Cristo. O problema do poder apareceu mais tarde... mas não muito mais!!!

Deixo para amanhã Gal 3,28.

2008-07-07

Mudar de mentalidade e de atitude

Embora ainda queira fazer mais dois comentários sobre as mulheres na Bíblia, resolvi fazer uma interrupção para reproduzir aqui o meu artigo sobre os tempos difícies que vivemos, já que eles exigem de todos e cada um de nós duas mudanças profiundas:
- de mentalidade de meninos mimados que só fazemos o que nos petece;
- de atitudes que não podemos manter já que estamos a viver acima das nossas posses.

VIVER COM ESPERANÇA ESTES TEMPOS NOSSOS
Este tempo que somos chamados a viver não é um tempo fácil. É certo que sempre temos tendência a supor que as nossas dificuldades são maiores que as de outros tempos, como se no passado tudo fosse facilidades. Contudo, bastará recordar, já no meu tempo de “trabalhador profissional” um ano em que recebemos apenas meio subsídio de Natal e Portugal não deixou de ser nação nem de se ir integrando numa Europa que se vai construindo aos soluços.
Acho que um dos méritos que se poderá atribuir ao governo de Sócrates foi ter feito com que as pessoas percebessem que vivíamos realmente um período difícil, que os tempos não estavam para brincadeiras e que todos tínhamos de tomar consciência dessa realidade. Já há muito se falava de crise, mas era uma palavra sem conteúdo e sobretudo sem repercussões na realidade concreta do dia a dia.
Mas não conseguiu efectivamente convencer as pessoas de que a crise era uma realidade cuja solução teria de passar pelo contributo de todos e não apenas de alguns. De repente todos passaram a vestir a camisola do clube “Os outros que paguem a crise”. Assistimos então ao que assistimos: ameaças corporativas, manifestações quase imorais de egoísmos grupais na defesa dos ditos “direitos adquiridos”, verdadeiros privilégios discriminatórios. Mas lá fomos vivendo. Pior que isso, foi a recusa em alterar comportamentos individuais. Assim assistimos hoje a um crescente endividamento das famílias: qualquer coisa como 130%! Pessoas e famílias vivemos muito acima das nossas possibilidades. Vamos no canto das sereias dos bancários que distribuem cartões a rodos, propõem “compre agora e pague com o próximo ordenado” e até há os que depositam sem autorização do próprio o ordenado do mês seguinte para o cliente poder continuar a endividar-se: sempre haverá uma casa ou um carro para enriquecer o património bancário! Outro exemplo: apesar dos aumentos contínuos da gasolina, quantos foram os que deixaram de andar de carro particular? As estatísticas falam de 8%, o que tendo algum significado está muito longe de corresponder ao volume das queixas. Mais um exemplo se poderá encontrar visitando os restaurantes e até parece que quanto mais caros mais cheios!
Outra ideia, que não foi possível desmontar na maioria dos cidadãos, é a de que o Estado é uma entidade autónoma, que nada tem a ver com os cidadãos e que além disso tem todo o dinheiro que quer. Daqui decorre várias consequências graves. A primeira é a de, sendo assim, o cidadão só não foge aos impostos se não puder. E agora que o fisco decidiu perseguir os faltosos estamos sempre mais prontos a valorizar os excessos e até injustiças cometidas (e é um exercício de cidadania não deixar cometê-los) do que a louvar essa “perseguição” exigida pela justiça social. E em vez de impostos, poderia falar na praga das “baixas” fraudulentas. Mas há outras consequências. Sempre que algum grupo, justa ou injustamente, vem reclamar dinheiros ao Estado esquece que não são do Estado, mas dos contribuintes: o Estado não tem uma máquina de fazer dinheiro para dar sempre que alguém pede. A sua função é gerir os dinheiros de todos com proporcionalidade e justiça social sempre ao serviço do bem comum. Isto é o que temos o dever de exigir do Estado. Mas esta exigência não acarreta apenas responsabilidades para os governantes que devem fazer o melhor uso possível de um dinheiro que não é seu; traz também responsabilidades para os cidadãos que devem, também em espírito de solidariedade e até subsidiariedade, aceitar e até exigir discriminações positivas para aqueles grupos ou pessoas que estão mais carenciadas ou são vítimas da nossa má organização social. E aqui o egoísmo dos cidadãos é proverbial: os mais carenciados somos sempre nós. Por isso se torna aqui particularmente exigente o papel do Estado numa atenção privilegiada aos mais necessitados, que neste momento começam a alargar-se à classe média (há já quem peça comida por mail), porque, como já dizia Leão XIII, os ricos sempre resolvem bem as suas dificuldades.
Finalmente, nestes nossos tempos difíceis que não acabaram, seria bom que todos tomássemos consciência de que esta situação exige o contributo de todos. Do Estado espera-se uma gestão dos nossos dinheiros públicos inovadora e com novos paradigmas (não tenhamos ilusões: os paradigmas passados já não servem!), o desenvolvimento de políticas ousadas e criativas nos vários âmbitos social, habitacional, laboral, familiar, educacional, sanitário e também a capacidade de transmitir um espírito realista de optimismo e confiança no futuro.
Mas também aos cidadãos é pedido que deixem de ser meninos mimados, exigindo birrentamente tudo o que lhes apetece, que mudem hábitos e costumes, que aceitem que têm de fazer sacrifícios. No fundo que ganhem juízo, se tornem adultos responsáveis e se disponham a dar o seu contributo para a construção de um país mais justo, mais solidário, mais humano.
Os tempos difíceis não se superam com pessimismos e lamentações, mas com a certeza de que todos juntos somos capazes. E sobretudo com muita esperança. Basta acreditar. Basta todos querermos, dando cada um o contributo que lhe compete. Até porque um país com quase nove séculos de história já passou por muita coisa e já venceu muitas crises. Também vamos vencer esta. Porque we can, como dizia Obama.

2008-07-06

Jesus e as Mulheres

Basta percorrer os Evangelhos para ver a grande quantidade de mulheres com que Jesus se relaciona. Gostaria de referir duas delas.

Jesus e a Samaritana (Jo 4,1-42)
É um episódio longo e muito instrutivo a vários níveis mas vou-me fixar apenas em dois ou três.
Um primeiro motivo de alguma estranheza passa despercebido nas traduções portuguesas demasiado soft: “Convinha-lhe atravessar a Samaria” ou “Tinha de atravessar a Samaria”. Jesus estava na Galileia e queria passar para a Judeia. Realmente passando pelo meio da Samaria era o caminho mais curto, demorava menos tempo mas era muito mais perigoso, pelo que o habitual era evitar a Samaria e descer pelo vale do Jordão. Contudo, o verbo grego usado (deo) tem subjacente a ideia de necessidade, de qualquer coisa que devia ser obrigatoriamente feita e não de uma mera decisão conjuntural. Poderá estar ligado a um propósito evangelizador, como aliás o resto do relato confirma. “Era preciso” passar pela Samaria. É este mesmo verbo que aparece por eeplo na parabóla do filho pródigo, quando o Pai justifica ao filho mais velho todo revoltado: "Nós tínhamos que fazer uma festa e alegrar-nos porque o teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado" (L 15 32)
Também as traduções portuguesas não ajudam a perceber uma aspecto muito importante do relato: “Como é que tu, sendo judeu, me pedes de beber a mim que sou samaritana?”. Também aqui o grego tem um cambiante importante para a esta reflexão: em vez de “samaritana”, no original está “mulher e samaritana” ambas com artigo definido (e guné e Samarítis). E destaco isto, prque o original refere uma dupla discriminação: ela não só era mulher mas era também samaritana. Contudo, Jesus não teve qualquer problema em falar com ela.
Além disso, para lá de os homens não se poderem dirigir às mulheres em público, os rabis nunca o faziam porque a mulher era absolutamente incapaz de perceber as coisas de Deus.
Portanto, Jesus coloca a mulher, independentemente da sua dupla marginallização, em igualdade com qualquer homem que se sentasse com ele à beira do poço.
A gravidade da situação devia ser tal que os próprios discípulos, ao chegarem da cidade, “ficaram admirados por ele estar a falar com uma mulher. Mas, acrescenta o Evangelho, ninguém ousou perguntar-lhe a razão desta sua atitude. Infelizmente ainda hoje é assim: a hierarquia manda e nós obedecemos, incapazes de questionar e “usar a cabeça” quanto mais não seja em nome da nossa vocação baptismal.
Finalmente, bastou uma meia-hora de conversa com esta mulher (supostamente pouco inteligente e incapaz de entender as coisas de Deus) para ela se converter em verdadeira apóstola de Jesus. Imediatamente deixa a bilha na beira do poço e corre para a cidade a anunciar a boa nova de ter encontrado o Messias. E deve ter sido tal o seu entusiasmo e a força persuasiva das suas palavras que, apesar de ser uma mulher pouco recomendada na terra, todos vieram ver Jesus e ouvi-lo. Só então eles disseram à mulher: “Agora já não é por causa do que nos disseste que acreditamos, pois nós próprios ouvimos e sabemos que ele é o Salvador do mundo” (42).
Mas o primeiro anúncio foi desta dupla excluída da sociedade que Jesus considerou uma pessoa com iguais direitos e deveres e com capacidade para ser sua apóstola.

Jesus e a mulher com fluxo de sangue (Mt 9,20-22)
O episódio é suficientemente conhecido, pelo que me limito a duas pequenas notas.
1. A força e a coragem desta mulher para se aproximar de Jesus e tocá-lo em segredo. Em segredo, porque ela não podia publicitar a sua doença, pois era uma mulher impura e tornava impuro tudo o que trocasse e, portanto devia viver isolada, quase como os leprosos: “Quando uma mulher tiver hemorragias frequentes fora ou depois da menstruação, ficará impura como na menstruação, enquanto durarem as hemorragias” (Lev 15,25).
Por outro lado era uma mulher de uma confiança e de uma fé profundas: “Se eu o tocar, ainda que seja apenas no manto, serei curada”.
2. A resposta de Jesus é de acolhimento e libertação. Deixa-se tocar por uma mulher impura, não a denuncia, publicitando o seu mal, apenas lhe diz: “Tem confiança, filha. A tua fé te salvou”.
E talvez mais importante que tudo isso, Jesus não se sentiu impuro por ter sido tocado por ela. Ao agir assim, Jesus denuncia e rejeita a tradição judaica que considerava impura toda a mulher menstruada que, por essa condição, não podia aproximar-se dos lugares sagrados; como mais tarde não podia aproximar-se do altar.
Homem e mulher são iguais perante Deus, cada um com as suas funções e características próprias que resultaram do próprio acto criador de Deus e nunca poderão ser considerados impuros porque os seus corpos, nas suas potencialidades e nas suas limitações, correspondem ao plano original de Deus.

2008-07-04

Cântico dos Cânticos

Não há certamente nenhum livro bíblico onde a mulher tenha maior protagonismo. E ainda para mais, o livro que tem o título mais bonito: o melhor dos cânticos. Cântico dos cânticos é um superlativo, como o é “luz da luz”, “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”.
Neste livro que é um conjunto de poemas de amor, a mulher não tem qualquer pudor em manifestar o seu amor, recusando a ideia da mulher passiva, sempre à espera que alguém se lhe declare. O livro começa logo com um pedido:
Que ele me beije com beijos da sua boca!
As tuas carícias são melhores que o vinho
ao olfacto são agradáveis os teus perfumes.
O teu nome é como um bálsamo fragrante
e por isso se enamoram de ti todas as raparigas.
Arrasta-me contigo. Corramos
e conduz-me à tua alcova, ó meu rei,
para celebrar contigo a nossa festa
e recordar as tuas carícias melhores que vinho
(1,2-4).
Há uma busca mútua e uma mútua troca de piropos, cada um deles dizendo as coisas mais bonitas do outro.
Ela toma a iniciativa sem quaisquer pruridos: não o sentindo na cama levanta-se percorre o jardim e a cidade à procura do seu amado:
Na minha cama, toda a noite,
Procurei o amor da minha alma;
Procurei-o mas não o encontrei.
Vou levantar-me dar voltas pela cidade:
Pelas praças e pelas ruas procurarei
Aquele que o meu coração ama
(3,2-2).
Há aqui uma dialéctica de encontros e desencontros, um movimento de ida e volta, numa construção numa acabada, mas sempre recomeçada, como é todo o amor que se quer sério. Mas no final, vence o amor:
porque forte como a morte é o amor,
implacável como o abismo é a paixão;
os seus ardores são chamas de fogo,
são labaredas divinas.
Nem as águas caudalosas conseguirão
apagar o fogo do amor,
nem as águas torrenciais o podem submergir.
Se alguém quisesse comprar o amor
com todas as riquezas da sua casa
seria objecto do maior desprezo
(8,6-7).

Esta linguagem tão profana, erótica mesma, assustou os primeiros exegetas que logo concluíram que só poderia tratar-se de uma alegoria sobre o amor entre Deus e Israel. Aliás a imagem conjugal é frequente para representar este amor (Os 1-3; Is 54-62; Jer 2-3; 31; Ez 16,23). Como se o amor físico só pudesse ser um assunto indigno de Deus. Parece que não leram a primeira página da Bíblia onde Deus cria o ser humano como um ser sexuado chamado a reproduzir-se e oljando para a sua obra concluiu que tudo aquilo era “muito bom”.
Por isso é que só mais tarde se aceitou sem reservas que se tratava daquilo “que realmente é: um epitalâmio, canto de admiração e de um grande amor entre uma mulher e um homem, onde o desejo e o corpo fazem parte do jogo de sedução e fruição” (Difusora Bíblica).
Neste contexto interpretativo, parece-me importante recordar o comentário de Bento XVI na sua encíclica Deus caritas est (a primeira vez que este livro bíblico terá sido citado numa encíclica, segundo a minha ignorância):
Como deve ser vivido o amor, para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina? Uma primeira indicação importante, podemos encontrá-la no Cântico dos Cânticos, um dos livros do Antigo Testamento bem conhecido dos místicos. Segundo a interpretação hoje predominante, as poesias contidas neste livro são originalmente cânticos de amor, talvez previstos para uma festa israelita de núpcias, na qual deviam exaltar o amor conjugal. Neste contexto, é muito elucidativo o facto de, ao longo do livro, se encontrarem duas palavras distintas para designar o «amor». Primeiro, aparece a palavra «dodim», um plural que exprime o amor ainda inseguro, numa situação de procura indeterminada. Depois, esta palavra é substituída por «ahabà», que, na versão grega do Antigo Testamento, é traduzida pelo termo de som semelhante «ágape», que se tornou, como vimos, o termo característico para a concepção bíblica do amor. Em contraposição ao amor indeterminado e ainda em fase de procura, este vocábulo exprime a experiência do amor que agora se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o carácter egoísta que antes claramente prevalecia. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, procura-o até (6).

2008-07-03

Igualdade radical entre a mulher e o homem

Ontem fiz uma pequena lista de mulheres heroínas, profetizas, juízas, todas elas tão libertadoras do povo de Israel como alguns homens.
Hoje gostaria de destacar três ou quatro passagens onde é manifesta a afirmação da radical igualdade entre a mulher e o homem

Gn 1,27
Criou Deus o ser humano (´adam) à sua imagem,
à imagem de Deus o criou,
macho (zakar) e fêmea (neqebah) os criou.

Duas notas:
1) Enquanto nas cosmogonias vizinhas, o homem foi criado pelos deuses para os servir, isto é, alimentá-los e oferecer-lhes sacrifícios e oferendas, e também para uma função teológica mais subtil, a de servir de bode expiatório para livrar os deuses do “pecado”, pois eles odiavam-se e assassinavam-se, tal como os mortais, como se pode ver no Enuma Elish (Poema babilónico da criação), na Bíblia o ser humano (‘adam) é criado à imagem e semelhança de Deus, para o representar neste mundo e para cultivar e guardar o jardim que é a terra (Gn 2,15).
2) O ser humano é logo, no próprio acto criador, criado como homem (zakar significa qualquer coisa como “penetrar”) e mulher (neqebah, significa “ser rasgada”). Portanto mulher e homem são ambos igualmente criados à imagem e semelhança de Deus; ambos, sem qualquer prioridade. Podia ainda referir-se que a sexualidade "pagã" está muito ligada à prostituição sagrada (hierogamia) nas religiões cananeias, enquanto na Bíblia é um elemento fundamental para o desenvolvimento e estruturação da pessoa humana.

Num 27, 1-11
Esta passagem pouco conhecida conta um episódio interessante. Como se sabe, as mulheres não tinha direito a herdar bens familiares. Quando das divisão das terras, aconteceu que Maala, Noa, Helga, Melca e Tersa, filhas de Salffad, ficaram sem nada porque o seu pai tinha morrido e Moisés não lhes distribuira terras porque eram mulheres. Então elas foram queixar-se a Moisés, que “levou a causa à presença do Senhor”, que lhe deu a seguinte resposta: “É justo o que dizem as filhas de Salfaad, dá-lhes uma propriedade entre os irmãos de seu pai e passa-lhes a herança deles”. E a partir deste caso, o Senhor estabeleceu uma regra geral: “Morrendo alguém sem deixar filhos varões, passareis a herança às filhas. Se não tiver filhas, passará para os irmãos. Se o pai não tiver irmãos, passará para os irmãos de seu pai…”
Esta norma “será para os filhos de Israel uma regra de direito, como ordenou o Senhor a Moisés”.
Afinal, por decisão de Deus, as mulheres podem herdar exactamente como os homens.

Para não me alongar muito hoje, retomo o tema amanhã.

2008-07-02

As mulheres na Bíblia

Neste fim de semana, as mulheres reuniram-se em congresso. Não vou discutir as propostas nem as opiniões, mas pereceu-me um exercício interessante recordar algumas mulheres das muitas que povoam as páginas da Bíblia. Amanhã referirei algumas passagens significativas que mostram a igualdade radical que Deus desde a primeira página estabeleceu entre o homem e a mulher.
Irei destacar sobretudo mulheres libertadoras.
Séfora e Fua foram as parteiras que encontraram maneira de desobedecer ao faraó recusando-se a matar os bebés hebreus masculinos, quando todo o povo gemia sob o peso da esravidão (Ex 1, 15-20)
A astúcia de Joquebed, mãe de Moisés (Ex 6,20), que conseguiu salvá-lo da morte metendo-o numa cesta que a filha do faraó recolheu e depois educou (Ex 2,3-10).
Séfora, a mulher de Moisés, que no difícil regresso ao Egipto, foi ela que circuncidou o seu filho, um ritual que era pertença dos homens, mas que Moisés possivelmente angustiado deve ter descuidado, o que levou Deus a “ameaçar matá-lo” (Ex 4,24-26).
Maria, irmã de Moisés, profetiza, a primeira a exerce funções públicas, a quem se deve um dos mais antigos cânticos da Bíblia: “Cantai ao Senhor porque soberbamente triunfou / precipitou no mar cavalo e cavaleiro” (Ex 15, 20-21).
Raab, a prostituta de Jericó, que protegeu os espiões enviados por Josué, despistando os enviados do rei (Jos 2,1-6).
Débora, profetiza (Jz 4,4) e também “juíza” não só porque dirimia as causas mas porque conduziu os seus concidadãos contra os inimigos.
A viúva de Sarepta dos sidónios que dá tudo o que tem para sustentar o enviado de Deus, o profeta Elias (1Rs17,9-24).
Holda, profetiza, que anunciou as calamidades que viriam para o povo por ter queimado incenso aos deuses cananeus, o que levou o rei e os seus súbditos a “rasgar as vestes” e a fazer penitência (2Rs 22,14-20).
Judite, que usando a sua beleza seduziu Holofernes, general de Nabucodonosor que invadira Israel, e cortou-lhe a cabeça acabando com a ameaça (Jud 13)
A mãe dos Macabeus, a mãe coragem, que animou e estimulou os seus filhos a lutar corajosamente até à morte contra os costumes helénicos impostos por Antíoco: “Mas sobremaneira admirável e digna de eterna memória é a mãe que, amparada pela esperança no Senhor, soube portar-se corajosamente diante dos sete filhos mortos num só dia. Cheia de nobres sentimentos, associando a ternura materna com uma coragem varonil, exortava-os um a um” (2Mac 7,20-21).
Quantas mais poderiam aqui ser recordadas. Uma lista muito mais extensa pode encontrar-se em C. L. SEABRA, Mulheres bíblicas, São Paulo, Lisboa 1996.

Como foi possível aos exegetas judaicos, logo seguidos dos cristãos, ter varrido para debaixo do tapete da história estas mulheres profetizas, juízas, condutoras de exércitos, mulheres corajosas para lutar contra tanto o genocídio físico no Egipto como o genocídio cultural imposto pelos helenistas!

2008-07-01

Um gesto tão humano

A nível local, sobretudo de freguesia, tem havido vários gestos que devem ser valorizados: desde incentivos às mulheres para engravidar à criação de condições para fixar as pessoas em meios nem sempre fáceis.
Vem hoje nos jornais mais um gesto que poderia bem ser repetido por outras juntas de freguesia. Passo a citar a notícia do JN
Cerca de metade do orçamento mensal da Junta de Freguesia da Glória, em Aveiro, é utilizado em benefício de algumas dezenas de famílias carenciadas. A autarquia ajuda a pagar medicamentos, a luz e a água. E ainda contribui para a alimentação. Mas é o pagamento de medicamentos que mais preocupa estas pessoas.
"Tentamos sempre dar prioridade às famílias mais carenciadas da freguesia. Não nos podemos esquecer que temos um bairro social e que 40 por cento da nossa população mora lá. Na sua maioria trata-se de pessoas idosos, aos quais não podemos fechar os olhos", refere Fernando Marques, presidente da Junta.
Todos os meses é feita uma avaliação das necessidades das famílias e "mediante critérios, vamos ajudando muita gente. A nossa prioridade é sempre para os medicamentos e nem todos os meses conseguimos ajudar as mesmas pessoas. A ajuda acaba, muitas vezes, por ser alternada para que possamos chegar a todos", sublinha Marques. Mediante as facturas que são apresentadas, a Junta encarrega-se de pagar directamente às entidades, num encargo social que "leva" metade do orçamento da autarquia.
Gestos simples mas tão humanamente libertadores.
A humanidade fica mais rica com gestos de solidariedade sobretudo para com os seus membros mais carenciados.